Reviravolta na
Síria, novas agressões israelenses e Ucrânia: os impactos dos conflitos em 2024
Enquanto a atuação
de potências ocidentais incendeia ainda mais o barril de pólvora que afeta
tanto as populações do Oriente Médio, a queda do governo de Bashar al-Assad na
Síria nos últimos dias do ano deixa a situação ainda mais incerta na região.
Confira a análise de especialistas ao podcast Mundioka na retrospectiva de
2024.
Aos 45 minutos do
segundo tempo, uma verdadeira reviravolta na Síria, que vive uma guerra civil
há quase 14 anos, derrubou o governo de Bashar
al-Assad,
que precisou sair às pressas do país. Aliada à continuidade dos hostilidades de
Israel na Faixa de Gaza, a situação deixa o futuro do Oriente Médio ainda
mais incerto em um ano marcado por intensas dificuldades na região e até o
risco de uma guerra total entre duas das principais potências da região: Irã e Israel.
Para o graduado em
ciência política, consultor autônomo em assuntos geopolíticos e roteirista do
canal História Islâmica, Ali Abdul Hakam, o ex-presidente sírio não
soube aproveitar a aproximação do país com o Irã, a Liga Árabe e a
Rússia para melhorar a situação econômica do fragilizado país. Isso abriu
espaço para a oposição armada tomar o poder.
"Basicamente,
Assad foi arrastando a situação com a barriga e o que ocorreu foi uma
dilapidação total do Estado sírio, principalmente das tropas. Além disso, se
desenhou uma divisão militar interna. A Força Tiger, liderada pelo General
Hassan, tendia a preferir os russos, enquanto a Guarda Republicana, liderada
pelo irmão do Bashar al-Assad, o Maher al-Assad, preferiu os iranianos. O
presidente alienou totalmente a força Tiger do processo de tomada de decisão na
Síria, e isso gerou uma divisão operacional, tática e estratégica, que
tornou o exército incapaz de operar", explica ao podcast Mundioka, da
Sputnik Brasil.
Outro ponto crucial
que afetou drasticamente o poder de reação das Forças Armadas da
Síria foi
a baixa remuneração dos soldados, que, conforme o especialista, não ultrapassa
US$ 10 (R$ 61,80) por mês.
"Isso fez com
que a maior parte deles, os mais competentes, fossem para o comércio, para a
agricultura ou até as máfias locais, porque a Síria se tornou um grande
entreposto de contrabando, tanto de drogas quanto de armas. E, assim, a
situação foi se dilapidando."
O especialista
lembra ainda que existem diversos grupos armados na Síria, tanto ligados a
organizações extremistas quanto moderados e nacionalistas.
"Mas o que
está se desenhando é que vai se coordenar um novo pacto social na Síria. Até
agora não houve violência sectária nos moldes do que ocorreu há dez anos. Na
verdade, o que está ocorrendo é muita violência política contra algumas figuras
do antigo regime e tal, mas violência sectária, perseguição a minorias ainda
não aconteceu. Eu creio que isso ocorre porque Turquia e Rússia estão ajudando
a costurar a situação", argumentou.
·
Qual
o motivo do conflito de Gaza?
Em outra área do
Oriente Médio, há mais de um ano, Israel segue com intensos ataques por ar
e terra na Faixa de Gaza, território onde vivem mais de dois milhões de
palestinos e praticamente toda a infraestrutura já foi destruída. Por diversas
vezes, a Organização das
Nações Unidas (ONU) classificou
a situação no enclave como "apocalíptica".
Ali Abdul Hakam
pontua que Israel tem mostrado que a estratégia na região é "matar o maior
número possível de civis para criar um pavor psicológico e impedir a
insurgência de atuar.
"Vimos o
retorno de várias doenças em Gaza, colonos israelenses impedindo a chegada de
ajuda humanitária. Porém, do ponto de vista tático do conflito, o que o
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fez foi um tiro no pé. Não é possível
operar tanques e fazer movimentações de brigadas em um cenário onde
se destruiu toda a infraestrutura. Israel, assim como os Estados Unidos
fizeram no Vietnã, deu trincheiras para seus inimigos. É muito fácil armar
emboscada e sair pelas rotas de fuga, no caso do Hamas e os outros 17 grupos
insurgentes que existem dentro da Faixa de Gaza. E é por isso que estamos vendo
essa guerra se arrastando", analisa.
Além disso, o ano
no Oriente Médio também foi marcado pelo aumento das tensões entre Israel
e Irã, duas das principais potências militares da região.
"O último
ataque iraniano danificou a base aérea de Netzarim, onde ficam os F-35
israelenses, e foi bem forte, tanto que se vocês verem a filmagem do Benjamin
Netanyahu logo depois, ele está com as mãos tremendo, porque não esperava
um ataque com mísseis hipersônicos desta monta. Mas Israel atacou, a informação
que eu tenho é que Israel atingiu 20 alvos dentro do Irã, não foi um ataque
muito pesado, porque o Irã é gigantesco. Com 20 alvos você não acaba nem com a
capacidade de produzir mísseis e drones do Irã nem com a capacidade, nem com as
defesas antiaéreas do Irã", resume.
·
Reconfiguração
do front na Ucrânia
Já na Europa, o ano
foi de intensas reconfigurações nos campos de batalha que consolidaram ainda
mais as derrotas sucessivas de Kiev no conflito ucraniano. É o que apontou
ao podcast Mundioka o analista militar e autor do livro "Guerra na Ucrânia:
análises e perspectivas: o conflito militar que está mudando a geopolítica
mundial", Rodolfo Laterza. Para piorar a situação ucraniana, o regime de Vladimir
Zelensky ainda
contabiliza uma fracassada tentativa de invasão contra a região de Kursk, na
Rússia, onde estimativas apontam que o país perdeu mais de 40 mil soldados.
"Toda essa
dinâmica explica os substanciais avanços russos neste ano, além de um acúmulo
de baixas ucranianas que fez com que as melhores unidades
fossem prejudicadas, sacrificadas, degradadas e depreciadas. Embora a
Ucrânia ainda tenha massa crítica humana para mobilizar, sabemos que o
recrutamento compulsório e forçado está levando cidadãos absolutamente
despreparados, inaptos para o combate, sem o devido treinamento para a linha de
frente, e a taxa de sobrevida tem sido muito diminuta", explica.
Já o ataque que
terminou neste mês com a morte do tenente-general Igor
Kirillov,
chefe das Tropas de Defesa Radiológica, Química e Biológica das Forças Armadas
da Rússia, reforça mais uma vez uma atuação pelo regime de Kiev típica de um
ato terrorista, acrescenta o especialista.
"E também
teria sido impossível que o serviço secreto da Ucrânia pudesse planejar e
executar um ataque com tamanha precisão sem um suporte de coordenação,
controle e financiamento de outro serviço estrangeiro. É insustentável a
Ucrânia com seu serviço de segurança realizar esse atentado isoladamente",
diz.
O analista militar
lembra ainda que, entre os países aliados da Ucrânia, as insatisfações da
sociedade com
o financiamento do conflito são cada vez maiores.
"Temos uma
situação também na Bulgária, que parcela da população está cansada desse apoio.
Temos a vitória de Robert Fico na Eslováquia, crítico do apoio da União
Europeia à Ucrânia. A manutenção e consolidação de Viktor Orbán na
Hungria, que é um crítico voraz ao apoio à guerra na Ucrânia, que tenta
promover iniciativas de paz, porém é criticado. Porém, temos situações também
contraditórias, como a Finlândia, que sofreu um esvaziamento econômico com a
adesão à OTAN, porém as elites políticas estão cada vez mais engajadas em
permitir bases da OTAN e exercícios militares próximos à Federação da Rússia,
usando a Finlândia".
Diante da derrota
para o republicano Donald
Trump na
disputa à Casa Branca, o presidente Joe Biden, principal fiador do regime de
Zelensky no conflito, também tem aproveitado o final do governo para
"fazer de tudo para manter e até aumentar o fluxo financeiro para a
Ucrânia". O objetivo, segundo Laterza, é prejudicar ao máximo qualquer
tentativa de negociação entre a futura gestão Trump e a Rússia na busca pela
paz na região.
"Os Estados
Unidos têm uma profunda influência no seu establishment institucional, que
compõe o Departamento de Estado, Departamento de Defesa, o Pentágono,
que muitas vezes molda a política norte-americana, em detrimento de a
política americana moldar essas instituições. Portanto é muito difícil você prever
que uma simples mudança de governo vá gerar uma reconfiguração", finaliza.
¨ Forças
leais a Assad matam agentes do novo regime na Síria
Um dia após ser alvo de
emboscada e perder 14 agentes, as forças de segurança da Síria deflagraram uma operação nesta quinta-feira (26/12) para
"neutralizar um número determinado" de homens armados leais ao
ditador deposto Bashar al-Assad, informou a
Sana, agência de notícias estatal do país.
O confronto de quarta-feira
entre as forças de segurança e "milícias" ocorreu na província de
Tartus, segundo observadores e o novo ministério sírio do Interior, durante
operação para prisão de um ex-funcionário de Assad acusado de cometer crimes
relacionados à prisão de Sednaya.
O oficial teria, segundo o
Observatório Sírio para Direitos Humanos, entidade com sede no Reino Unido,
"emitido penas de morte e julgamentos arbitrários contra dezenas de
prisioneiros". Apesar da emboscada, diversas prisões foram feitas.
Os agentes de segurança
mortos pertenciam ao grupo islamista Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que liderou a
ofensiva rebelde que pôs fim ao regime de Assad no início deste mês.
Em postagem na rede social
Telegram, o novo ministro do Interior, Mohammed Abdel Rahman, prometeu reprimir
duramente "qualquer um que ouse prejudicar a segurança da Síria ou pôr em
risco a vida de seus cidadãos".
<><> Alauitas
protestam
Milhares de
muçulmanos alauitas, grupo étnico-religioso minoritário do qual o
ex-presidente faz parte, saíram às ruas da Síria para protestar após o
surgimento de um vídeo nas redes sociais que supostamente comprovaria a
vilipendiação de um santuário religioso. A autenticidade do material não pôde ser
comprovada de forma independente.
Autoridades sírias, que têm
se esforçado para convencer a comunidade internacional de que estão
comprometidos com uma transição pacífica de poder e com o respeito às minorias,
insistem que o vídeo que despertou a ira dos manifestantes é antigo.
Os protestos também são
motivados pela revolta com relatos de que alauitas teriam sido alvo de
violência recentemente.
Essas manifestações
aconteceram em cidades ao longo da costa do Mediterrâneo, que concentram a
maioria dos alauitas – uma delas era Tartus, palco do confronto da noite desta
quarta-feira com as forças de segurança do novo regime.
Em Homs, no centro do país,
o Observatório Sírio afirma que uma pessoa foi morta e outras cinco foram
feridas após "forças de segurança (...) abrirem fogo para dispersar"
a multidão.
Os alauitas perfazem cerca
de 9% da população síria, segundo o especialista em Oriente Médio Fabrice
Balanche, da Universidade Lumiere Lyon 2, na França.
"Os alauitas eram
bastante próximos do regime de Assad. A associação deles ao regime pode
torná-los alvo de uma revanche coletiva – principalmente porque islamistas os
consideram hereges", disse o estudioso à agência de notícias AFP.
¨ Ataques israelenses em aeroporto no Iêmen deixam mortos
e feridos
Ataques da Força
Aérea israelense em diferentes pontos do Iêmen deixaram vários mortos e
feridos, nesta quinta-feira (26). O diretor-geral da Organização Mundial da
Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, estava em um avião, quando começou o
bombardeio.
Tedros disse que o
ataque aéreo danificou prédios que estavam a poucos metros do avião, onde
também estava uma delegação da ONU. Um membro da tripulação ficou ferido.
De acordo com um
fonte da Sputnik, pelo menos quatro pessoas morreram no aeroporto:
"Quatro
morreram e 16 ficaram feridos, incluindo o comandante de um jato particular da
ONU, como resultado dos ataques aéreos israelenses na pista, na torre de
controle de tráfego e no saguão de embarque do Aeroporto Internacional de
Sanaa", disse a fonte do aeroporto.
A Força Aérea
israelense declarou que seus alvos foram o aeroporto internacional na capital,
as usinas de energia de Hezyaz e Ras Kanatib, e infraestrutura nos portos de
Hodeida, Salif e Ras Kanatib, na costa.
O primeiro-ministro
israelense, Benjamin Netanyahu, alertou que Israel agiria contra os
houthis com
a mesma força que usou contra o Irã, o que parece indicar o início de uma
campanha intensificada contra o grupo, depois que um míssil balístico atingiu
um parquinho em Tel Aviv.
Mais cedo,
um prédio escolar de vários andares em Ramat Gan desabou após ser
atingido pela ogiva de um míssil balístico parcialmente interceptado, depois de
ser disparado contra Israel pelos houthis.
Os houthis lançaram
mais de 200 mísseis e 170 drones contra Israel no último ano. As Forças de
Defesa de Israel (FDI) anunciaram que a grande maioria não chegou a Israel ou
foi interceptada pelos militares e aliados israelenses na região.
O grupo também
realizou ataques repetidos com mísseis e drones contra cerca de 100 navios
mercantes que tentavam atravessar o mar Vermelho, paralisando o transporte
marítimo mundial.
Os houthis reivindicaram
a responsabilidade, na manhã de sábado (21), por um ataque noturno com foguete contra
Tel Aviv,
que feriu levemente 16 pessoas.
Israel e os Estados
Unidos, por sua vez, atacaram repetidamente várias instalações no Iêmen.
Desde meados de dezembro, os Estados Unidos e seus aliados realizam uma
operação na região oceânica próximo ao Iêmen, que inclui bombardeios em solo
iemenita, para dissuadir os houthis de ataques a navios
mercantes e
garantir a liberdade de navegação.
O embate entre os
houthis e Israel começou em outubro de 2023, quando eclodiu o conflito entre o
exército israelense e o movimento palestino Hamas, na Faixa de Gaza.
<><> Situação
em Gaza
Em 7 de outubro de
2023, militantes do grupo palestino Hamas invadiram o território de Israel a partir
da Faixa de Gaza e abriram fogo contra
militares e civis e fizeram mais de 200 reféns. Segundo as autoridades, cerca
de 1,2 mil pessoas morreram do lado israelense.
Em resposta, as
Forças de Defesa de Israel (FDI) lançaram ataques a alvos civis e anunciaram um
bloqueio total da Faixa de Gaza, impedindo o fornecimento de água,
eletricidade, combustível, alimentos e medicamentos. Mais de 45 mil
pessoas já morreram do lado
palestino até
o momento.
¨ Conflitos e guerras que tiveram cessar-fogo por ocasião
do Natal
A época de Natal
tem provado que, historicamente, é um período que sensibiliza governantes e a
sociedade a buscarem mais humanidade e fraternidade, mesmo em tempos de guerra.
A Sputnik Brasil
identificou alguns conflitos ocorridos ao longo dos séculos que
tiveram cessar-fogo temporário durante o período natalino.
<><> Guerra
de Independência dos Estados Unidos (1775–1783)
Durante o Natal de
1776, embora não tenha havido um cessar-fogo oficial, pausas nos combates em
algumas áreas foram relatadas. No entanto, a famosa travessia de George
Washington do rio Delaware na noite de Natal para atacar tropas hessianas
mostra que nem todas as ações pararam.
<><> Primeira
Guerra Mundial (1914–1918)
Um dos exemplos
mais famosos e inusitados de cessar-fogo no Natal, a trégua da Primeira Grande
Guerra,
em 1914, foi não oficial e teve até troca de presentes entre soldados alemães e
britânicos no front ocidental. Houve relatos de sobreviventes de que os então
inimigos cantaram canções natalinas e até jogaram futebol. Fotos da época
comprovam o clima amistoso e festivo, que, infelizmente, foi breve.
<><> Guerra
do Vietnã (1959–1975)
Durante a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos
declararam um cessar-fogo de 30 horas no Natal, em 1965, que não foi totalmente
respeitado pelas partes.
<><> Guerra
Civil Angolana (1975–2002)
Durante a longa e
devastadora Guerra Civil Angolana, houve vários cessar-fogos temporários, e
alguns coincidiram com o período de Natal. Em 1991, por exemplo, uma trégua foi
anunciada com o objetivo de permitir que os civis recebessem ajuda humanitária,
mas não durou, pois os principais grupos envolvidos, MPLA (Movimento Popular de
Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de
Angola), não respeitaram o combinado.
<><> Guerra
da Bósnia (1992–1995)
A guerra envolveu
os três principais grupos étnicos na região em torno da independência da Bósnia
da ex-Iugoslávia: croatas, sérvios e bósnios. Teve um saldo de centenas de
milhares de mortos e refugiados e foi a maior guerra na Europa depois da
Segunda Guerra Mundial. Em 1994, as
Nações Unidas promoveram um cessar-fogo no Natal, quando foram entregues
mantimentos e houve ajuda humanitária nas regiões afetadas.
Fonte: Sputnik
Brasil/DW Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário