Obesidade: uso indevido de
medicamentos levanta discussão sobre retenção de receita
Mais de 60% dos brasileiros
estavam com excesso de peso em 2023, conforme dados do Ministério da Saúde. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2025, serão 2,3 bilhões de adultos ao redor do mundo acima
do peso, 700 milhões deles com obesidade. A tendência preocupa
especialistas e traz impactos para a saúde pública, e também mobilizou a indústria farmacêutica. Hoje, o mercado conta com diversos
medicamentos para emagrecer. A popularização do uso e a venda
indiscriminada, especialmente das canetas emagrecedoras, levantou o debate
sobre a necessidade de prescrição médica e retenção de receita.
O assunto foi discutido na
quarta-feira, 11, na Câmara dos Deputados que analisou o caso dos remédios
análogos ao GLP-1, como semaglutida, liraglutida e tirzepatida, princípios
ativos presentes em fármacos como Wegovy, Ozempic, Rybelsus, Mounjaro e
Saxenda, indicados para o tratamento de obesidade e diabetes. Na ocasião, os
convidados foram unânimes na importância e eficácia dos fármacos, no entanto
divergiram em relação a possíveis mecanismos de controle para diminuir o
uso off label, fora da recomendação da bula.
Atualmente, esses
medicamentos são classificados como tarja vermelha, ou seja, devem ser
prescritos por um profissional de saúde e devem ser vendidos sob apresentação
da prescrição médica. No entanto, a retenção de receita não é obrigatória para
os remédios mencionados, o que pode levar a menor exigência das farmácias nas
vendas.
Para o representante do
Conselho Federal de Medicina (CFM), Raphael Câmara Medeiros Parente, os
remédios apresentam muitos benefícios, mas, por não serem isentos de efeitos
colaterais e exigirem uma utilização prolongada, é preciso aumentar o controle.
“O CFM defende a recomendação para que as entidades médicas façam ampla
campanha de divulgação do uso consciente desses medicamentos com prescrição e
dos efeitos colaterais e pedimos que haja retenção de receita. Em teoria a
tarja vermelha é para ter prescrição médica, mas na prática ninguém pede”,
afirma Parente.
Segundo os especialistas, a
popularização desses medicamentos entre celebridades e na mídia promove o seu
uso para fins estéticos. O aumento significativo das vendas indica um possível
crescimento do uso por pessoas sem indicação médica adequada. Por exemplo, a
farmacêutica Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, fechou a sua receita de 2023 em R$3,7 bilhões com o fármaco e outros
remédios à base de semaglutida como principais representantes, um crescimento
de 52% em relação ao ano anterior. Além disso, conforme relatório da GlobalData, o mercado mundial do GLP-1 pode atingir US$125 bilhões, com 7 milhões
de pacientes, até 2033.
Durante a audiência, a
gerente de Farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), Flávia Neves Rocha Alves, apresentou que 32,2% das principais
notificações de suspeitas de eventos adversos de medicamentos contendo
semaglutida recebidas pela agência entre 2019 e 2024 são de uso não prescrito
em bula e indicação não aprovada. Conforme Alves, em outros países essas
notificações são de cerca de 10%. “Isso chama muita atenção e demonstra uma
característica do nosso mercado em que todo mundo consegue ir à farmácia e
comprar esse medicamento sem a receita”, disse a gerente.
Segundo Alves, em novembro
deste ano, a diretoria colegiada da agência recebeu uma proposta de alteração
de duas normas para incluir a necessidade de retenção de receita para esses
medicamentos, do mesmo modo que é feito com os antibióticos. “Seria uma
retenção da receita em duas vias, que exige um controle maior. Na reunião houve
um pedido de vistas do processo, mas esse tema deve voltar em breve. As
medidas de retenção de receita têm como finalidade o fortalecimento do controle
e utilização dentro das indicações aprovadas”, complementa.
·
Canetas
emagrecedoras: setor farmacêutico se posiciona contra a retenção
Durante a discussão na
sessão da Câmara, entidades do setor farmacêutico se mostraram contra a
possibilidade de retenção de receita e entendem não ser a saída para melhorar o
controle. O presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos
(Sindusfarma), Nelson Mussolini, acredita que a classificação da tarja vermelha
deve ser mantida e que a inclusão de determinadas categorias para retenção de
receita não vai funcionar. Para ele, alterações parciais têm pouca chance de darem
certo. Ele argumenta que, para mudar o cenário, é preciso de um novo marco
regulatório, visto que o assunto exige uma mudança de cultura.
“Hoje virou um comércio
aberto de medicamentos, tudo precisa de prescrição, mas aqui não se exige. Isso
é um problema cultural e de fiscalização, por isso precisamos olhar o arcabouço
normativo com muita transparência. Se fizermos uma fiscalização de receita
retida vai ter um aumento da falsificação. Precisamos de uma fiscalização maior
do uso de medicamentos no país de forma geral”, enfatiza o presidente.
Essa posição é compartilhada
pelo presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa
(Interfarma), Renato Alencar Porto, que pontua que o tema exige cuidado para
não desmontar o sistema de controle atual. “O problema está na dispensação.
Temos que fazer com que o farmacêutico exerça a sua responsabilidade de exigir
a prescrição. Essa decisão de avaliação de riscos não é simples, precisamos
reeducar e não nos prendermos no processo. O nosso alvo tem de ser o uso
adequado por quem precisa”, afirma.
Durante a audiência, o
presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome
Metabólica (Abeso), Bruno Halpern, destacou que a associação defende a
apresentação de receita, mas possui preocupações com uma eventual retenção de
receita. É possível que a alteração possa aumentar a estigmatização desses
medicamentos. “O tratamento da obesidade ainda enfrenta barreiras como
acessibilidade e preconceito. Quando pensamos em receituário especial, temos que
pensar se estamos trabalhando para minimizar isso também. Propomos que seja
criado um mecanismo novo de fiscalização para evitar o uso indiscriminado”,
relata.
Os representantes
farmacêuticos e da Abeso também ressaltaram que é preciso pensar na extensão da
validade da receita para melhorar a acessibilidade. “O período de validade
dessa receita precisa ser prolongado por no mínimo 6 meses, para diminuir a
necessidade de voltar ao médico. Exigir que o paciente volte ao médico a cada 3
meses diminui o acesso, e um produto de uso crônico não pode valer só dois ou
três meses”, disse o presidente da Abeso.
·
Política
Nacional de Prevenção e Tratamento da Obesidade
Em meio às discussões sobre
o uso dos medicamentos análogos ao GLP-1, tramita na Câmara o Projeto de Lei 3886/23 que dispõe sobre a criação de uma Política Nacional de Prevenção e
Tratamento da Obesidade para o Sistema Único de Saúde (SUS). Aprovada em
novembro pela Comissão de Saúde, a proposta tem como objetivo priorizar ações
de prevenção e tratamento eficaz, a estruturação de uma linha de cuidados na
atenção primária e a definição de um programa de educação permanente para
profissionais de saúde. O PL ainda segue em votação em outras instâncias da
Câmara e, para virar lei, também deve ser aprovado no Senado Federal.
O texto inicial incluía na
proposta o fornecimento gratuito de medicamentos de combate à obesidade e
especificava a distribuição do Wegovy no SUS. Essa medida foi retirada pela
comissão devido a existência de outras opções medicamentosas. Além disso,
apesar desses fármacos estarem aprovados na Anvisa, eles não foram incorporados
para utilização no sistema público. Para isso, eles devem passar por avaliação
na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec).
Apesar da supressão do item,
a médica endocrinologista e especialista da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia (SBEM) Lívia Lugarinho Corrêa concorda que o
tratamento medicamentoso é essencial para o combate da obesidade, por isso
acredita que opções devem ser incluídas no sistema público. “Apesar de
existirem cinco classes de medicações aprovadas pela Anvisa, não temos
tratamento medicamentoso e vemos essa carência. Temos drogas mais caras como a
semaglutida, que seriam insustentáveis de manter, mas também temos outras
opções mais baratas e eficazes”, comenta a médica.
O médico especialista em
cirurgia bariátrica e presidente da ONG Obesidade Brasil, Carlos Schiavon, diz
que atualmente o SUS conta com a cirurgia bariátrica como tratamento para a
obesidade, mas que ela só é destinada a uma parcela de pacientes e tem uma fila
de espera muito grande. Nesse sentido, o tratamento medicamentoso seria a melhor
alternativa. “O projeto de lei é bem vindo, incluir uma opção de remédio é bom,
mas me soa estranho falar em nome comercial e especificar a droga. Sabemos que
é economicamente complicado oferecer essa medicação, visto que o SUS não
oferece nem as mais simples”, reflete.
Especialistas explicam que
uma política nacional seria de grande importância para estabelecer
principalmente uma linha de cuidado para a obesidade. Para a médica
endocrinologista e coordenadora de advocacy da Abeso, Maria Edna Melo, as diretrizes
atuais são muito frágeis e não trazem recomendações específicas. “A estrutura é
quase inexistente. Não temos uma estratégia adequada na atenção primária e nem
na especializada. É necessário um programa intensivo com seguimento constante e
poderíamos até mesmo incluir a telemedicina para isso”, sugere Melo.
A linha de cuidado mais
estruturada no sistema público é para a parte nutricional, com o Guia Alimentar para a População
Brasileira, produzido pelo Ministério da Saúde para orientar
a escolha alimentar dos brasileiros, contudo o tratamento da obesidade exige
atuação em diversas frentes. Schiavon acredita que poucos profissionais fazem
uso do guia e que seria necessário uma integração entre endocrinologistas,
nutricionistas e psicólogos. “É um desafio muito grande, precisamos capacitar a
atenção básica até para aumentarmos o número de diagnósticos e assim ter uma
forma de encaminhar os pacientes aos especialistas. Hoje a orientação nas UBS é
fazer dieta e exercício e isso acaba sendo até uma forma de desanimar o
paciente, porque eles sabem que não funciona”, afirma o cirurgião.
Fora os problemas de saúde,
a obesidade ocasiona efeitos econômicos. Um levantamento da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) apontou que o SUS gastou cerca de R$1,5 bilhões
em 2019 com o tratamento da obesidade. Além disso, o excesso de peso está
associado e pode agravar diversas outras doenças como problemas cardíacos,
diabetes e câncer, o que torna seu impacto ainda maior. No seu conjunto, isso
pode contribuir para a sobrecarga do sistema público de saúde.
Para a médica Melo, o reflexo
financeiro pode ser ainda maior devido aos gastos sociais e econômicos. Nesse
sentido uma política nacional também poderia contribuir para mensurar o
problema e auxiliar na procura de soluções. “Temos um impacto econômico,
algumas pessoas acabam se aposentando mais cedo, faltam mais no trabalho para
ir ao médico ou até mesmo não conseguem exercer a sua função na sua total
capacidade. Por isso é difícil calcular os impactos da obesidade”,
explica.
Fonte: Futuro da
Saúde
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