terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Obesidade: uso indevido de medicamentos levanta discussão sobre retenção de receita

Mais de 60% dos brasileiros estavam com excesso de peso em 2023, conforme dados do Ministério da Saúde. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2025, serão 2,3 bilhões de adultos ao redor do mundo acima do peso, 700 milhões deles com obesidade. A tendência preocupa especialistas e traz impactos para a saúde pública, e também mobilizou a indústria farmacêutica. Hoje, o mercado conta com diversos medicamentos para emagrecer. A popularização do uso e a venda indiscriminada, especialmente das canetas emagrecedoras, levantou o debate sobre a necessidade de prescrição médica e retenção de receita. 

O assunto foi discutido na quarta-feira, 11, na Câmara dos Deputados que analisou o caso dos remédios análogos ao GLP-1, como semaglutida, liraglutida e tirzepatida, princípios ativos presentes em fármacos como Wegovy, Ozempic, Rybelsus, Mounjaro e Saxenda, indicados para o tratamento de obesidade e diabetes. Na ocasião, os convidados foram unânimes na importância e eficácia dos fármacos, no entanto divergiram em relação a possíveis mecanismos de controle para diminuir o uso off label, fora da recomendação da bula.  

Atualmente, esses medicamentos são classificados como tarja vermelha, ou seja, devem ser prescritos por um profissional de saúde e devem ser vendidos sob apresentação da prescrição médica. No entanto, a retenção de receita não é obrigatória para os remédios mencionados, o que pode levar a menor exigência das farmácias nas vendas.

Para o representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), Raphael Câmara Medeiros Parente, os remédios apresentam muitos benefícios, mas, por não serem isentos de efeitos colaterais e exigirem uma utilização prolongada, é preciso aumentar o controle. “O CFM defende a recomendação para que as entidades médicas façam ampla campanha de divulgação do uso consciente desses medicamentos com prescrição e dos efeitos colaterais e pedimos que haja retenção de receita. Em teoria a tarja vermelha é para ter prescrição médica, mas na prática ninguém pede”, afirma Parente. 

Segundo os especialistas, a popularização desses medicamentos entre celebridades e na mídia promove o seu uso para fins estéticos. O aumento significativo das vendas indica um possível crescimento do uso por pessoas sem indicação médica adequada. Por exemplo, a farmacêutica Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, fechou a sua receita de 2023 em R$3,7 bilhões com o fármaco e outros remédios à base de semaglutida como principais representantes, um crescimento de 52% em relação ao ano anterior. Além disso, conforme relatório da GlobalData, o mercado mundial do GLP-1 pode atingir US$125 bilhões, com 7 milhões de pacientes, até 2033. 

Durante a audiência, a gerente de Farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Flávia Neves Rocha Alves, apresentou que 32,2% das principais notificações de suspeitas de eventos adversos de medicamentos contendo semaglutida recebidas pela agência entre 2019 e 2024 são de uso não prescrito em bula e indicação não aprovada. Conforme Alves, em outros países essas notificações são de cerca de 10%. “Isso chama muita atenção e demonstra uma característica do nosso mercado em que todo mundo consegue ir à farmácia e comprar esse medicamento sem a receita”, disse a gerente.

Segundo Alves, em novembro deste ano, a diretoria colegiada da agência recebeu uma proposta de alteração de duas normas para incluir a necessidade de retenção de receita para esses medicamentos, do mesmo modo que é feito com os antibióticos. “Seria uma retenção da receita em duas vias, que exige um controle maior. Na reunião houve um pedido de vistas do processo, mas esse tema deve voltar em breve. As medidas de retenção de receita têm como finalidade o fortalecimento do controle e utilização dentro das indicações aprovadas”, complementa.

·        Canetas emagrecedoras: setor farmacêutico se posiciona contra a retenção 

Durante a discussão na sessão da Câmara, entidades do setor farmacêutico se mostraram contra a possibilidade de retenção de receita e entendem não ser a saída para melhorar o controle. O presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, acredita que a classificação da tarja vermelha deve ser mantida e que a inclusão de determinadas categorias para retenção de receita não vai funcionar. Para ele, alterações parciais têm pouca chance de darem certo. Ele argumenta que, para mudar o cenário, é preciso de um novo marco regulatório, visto que o assunto exige uma mudança de cultura.

“Hoje virou um comércio aberto de medicamentos, tudo precisa de prescrição, mas aqui não se exige. Isso é um problema cultural e de fiscalização, por isso precisamos olhar o arcabouço normativo com muita transparência. Se fizermos uma fiscalização de receita retida vai ter um aumento da falsificação. Precisamos de uma fiscalização maior do uso de medicamentos no país de forma geral”, enfatiza o presidente. 

Essa posição é compartilhada pelo presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Alencar Porto, que pontua que o tema exige cuidado para não desmontar o sistema de controle atual. “O problema está na dispensação. Temos que fazer com que o farmacêutico exerça a sua responsabilidade de exigir a prescrição. Essa decisão de avaliação de riscos não é simples, precisamos reeducar e não nos prendermos no processo. O nosso alvo tem de ser o uso adequado por quem precisa”, afirma. 

Durante a audiência, o presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), Bruno Halpern, destacou que a associação defende a apresentação de receita, mas possui preocupações com uma eventual retenção de receita. É possível que a alteração possa aumentar a estigmatização desses medicamentos. “O tratamento da obesidade ainda enfrenta barreiras como acessibilidade e preconceito. Quando pensamos em receituário especial, temos que pensar se estamos trabalhando para minimizar isso também. Propomos que seja criado um mecanismo novo de fiscalização para evitar o uso indiscriminado”, relata. 

Os representantes farmacêuticos e da Abeso também ressaltaram que é preciso pensar na extensão da validade da receita para melhorar a acessibilidade. “O período de validade dessa receita precisa ser prolongado por no mínimo 6 meses, para diminuir a necessidade de voltar ao médico. Exigir que o paciente volte ao médico a cada 3 meses diminui o acesso, e um produto de uso crônico não pode valer só dois ou três meses”, disse o presidente da Abeso. 

·        Política Nacional de Prevenção e Tratamento da Obesidade

Em meio às discussões sobre o uso dos medicamentos análogos ao GLP-1, tramita na Câmara o Projeto de Lei 3886/23 que dispõe sobre a criação de uma Política Nacional de Prevenção e Tratamento da Obesidade para o Sistema Único de Saúde (SUS). Aprovada em novembro pela Comissão de Saúde, a proposta tem como objetivo priorizar ações de prevenção e tratamento eficaz, a estruturação de uma linha de cuidados na atenção primária e a definição de um programa de educação permanente para profissionais de saúde. O PL ainda segue em votação em outras instâncias da Câmara e, para virar lei, também deve ser aprovado no Senado Federal. 

O texto inicial incluía na proposta o fornecimento gratuito de medicamentos de combate à obesidade e especificava a distribuição do Wegovy no SUS. Essa medida foi retirada pela comissão devido a existência de outras opções medicamentosas. Além disso, apesar desses fármacos estarem aprovados na Anvisa, eles não foram incorporados para utilização no sistema público. Para isso, eles devem passar por avaliação na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). 

Apesar da supressão do item, a médica endocrinologista e especialista da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) Lívia Lugarinho Corrêa concorda que o tratamento medicamentoso é essencial para o combate da obesidade, por isso acredita que opções devem ser incluídas no sistema público. “Apesar de existirem cinco classes de medicações aprovadas pela Anvisa, não temos tratamento medicamentoso e vemos essa carência. Temos drogas mais caras como a semaglutida, que seriam insustentáveis de manter, mas também temos outras opções mais baratas e eficazes”, comenta a médica. 

O médico especialista em cirurgia bariátrica e presidente da ONG Obesidade Brasil, Carlos Schiavon, diz que atualmente o SUS conta com a cirurgia bariátrica como tratamento para a obesidade, mas que ela só é destinada a uma parcela de pacientes e tem uma fila de espera muito grande. Nesse sentido, o tratamento medicamentoso seria a melhor alternativa. “O projeto de lei é bem vindo, incluir uma opção de remédio é bom, mas me soa estranho falar em nome comercial e especificar a droga. Sabemos que é economicamente complicado oferecer essa medicação, visto que o SUS não oferece nem as mais simples”, reflete. 

Especialistas explicam que uma política nacional seria de grande importância para estabelecer principalmente uma linha de cuidado para a obesidade. Para a médica endocrinologista e coordenadora de advocacy da Abeso, Maria Edna Melo, as diretrizes atuais são muito frágeis e não trazem recomendações específicas. “A estrutura é quase inexistente. Não temos uma estratégia adequada na atenção primária e nem na especializada. É necessário um programa intensivo com seguimento constante e poderíamos até mesmo incluir a telemedicina para isso”, sugere Melo. 

A linha de cuidado mais estruturada no sistema público é para a parte nutricional, com o Guia Alimentar para a População Brasileira, produzido pelo Ministério da Saúde para orientar a escolha alimentar dos brasileiros, contudo o tratamento da obesidade exige atuação em diversas frentes. Schiavon acredita que poucos profissionais fazem uso do guia e que seria necessário uma integração entre endocrinologistas, nutricionistas e psicólogos. “É um desafio muito grande, precisamos capacitar a atenção básica até para aumentarmos o número de diagnósticos e assim ter uma forma de encaminhar os pacientes aos especialistas. Hoje a orientação nas UBS é fazer dieta e exercício e isso acaba sendo até uma forma de desanimar o paciente, porque eles sabem que não funciona”, afirma o cirurgião.

Fora os problemas de saúde, a obesidade ocasiona efeitos econômicos. Um levantamento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apontou que o SUS gastou cerca de R$1,5 bilhões em 2019 com o tratamento da obesidade. Além disso, o excesso de peso está associado e pode agravar diversas outras doenças como problemas cardíacos, diabetes e câncer, o que torna seu impacto ainda maior. No seu conjunto, isso pode contribuir para a sobrecarga do sistema público de saúde.

Para a médica Melo, o reflexo financeiro pode ser ainda maior devido aos gastos sociais e econômicos. Nesse sentido uma política nacional também poderia contribuir para mensurar o problema e auxiliar na procura de soluções. “Temos um impacto econômico, algumas pessoas acabam se aposentando mais cedo, faltam mais no trabalho para ir ao médico ou até mesmo não conseguem exercer a sua função na sua total capacidade. Por isso é difícil calcular os impactos da obesidade”, explica. 

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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