Argentina: a
Igreja Católica move suas peças
A Igreja Católica argentina, majoritária e de grande peso –embora com
perda de membros– nesse país sul-americano, vem reiterando suas críticas ao
governo de Javier Milei pela explosiva exclusão social. Uma visão com a qual o
Vaticano também parece concordar.
Como contexto, os insultos históricos de Milei ao seu compatriota, o
Papa Francisco: "Ele tem uma afinidade com ditadores de esquerda...; ele
está do lado de ditaduras sangrentas", disse ele em setembro de 2023,
quando era candidato, pouco antes das eleições presidenciais. Ele também o
acusou de ser o "representante do maligno (o diabo) na terra" e de
promover o comunismo. Meses depois, já eleito, Milei baixou o tom de seus
ataques, tentou normalizar as relações com o Papa, o visitou no Vaticano e o
convidou formalmente a visitar seu país de origem em curto tempo.
Um ano após o início do novo governo, tudo indica que "Francisco,
que tem uma enorme experiência política, não quer romper com o governo e que
também não quer polarizar as relações", explica Washington Uranga,
jornalista do diário argentino Página 12 e um dos analistas
mais reconhecidos sobre questões eclesiais latino-americanas. No entanto, há
fatos claros que o Papa não fica calado quando é necessário falar:
"Francisco foi muito claro ao denunciar a repressão contra as várias
mobilizações que ocorreram no ano passado na Argentina; recorda a vigência do
tema Memória-Verdade-Justiça, e insiste repetidamente na necessidade de
priorizar a justiça social". Às vezes, acrescenta Uranga, Francisco fala
diretamente, protegendo, assim, os bispos nacionais. Outras vezes, envia
mensagens críticas por meio deles e, quando procede dessa maneira, "é
evidente que em alguns casos gera um claro incômodo ao governo, que, por outro
lado, paga o preço de não ter quadros de primeira linha para administrar as
relações com a Igreja Católica. Não tem sequer funcionários importantes ligados
aos setores conservadores da mesma, o que constitui um déficit evidente. Talvez
a vice-presidenta Victoria Villarruel seja a única que teria esse perfil, mas
dadas as profundas contradições que tem com Milei, ela não pode assumir o papel
oficial de diálogo com a hierarquia católica".
A Igreja Católica argentina –como reflexo da política do Vaticano–
reiterou repetidamente a necessidade de priorizar as questões sociais, olhando
nos olhos de um governo que com seu plano econômico aumentou a pobreza, um
cataclismo social que hoje afeta mais de 55% dos quase 47 milhões de
habitantes.
·
Tipo de xadrez: mover peças com
estratégia
Ao mesmo tempo, o Papa Francisco continua fazendo nomeações ou propondo
nomes de um peso simbólico muito particular. Em novembro passado, por exemplo,
com o voto democrático de seus pares, os bispos argentinos, o arcebispo da
cidade de Mendoza, Marcelo Colombo, foi eleito presidente da Conferência
Episcopal daquele país. Conhecido por seu compromisso social e influenciado em
sua formação por Jorge Novak, um dos poucos prelados que, entre 1976 e 1983, se
opôs abertamente à última ditadura militar.
Quase ao mesmo tempo, Gustavo Carrara, ligado aos padres de favelas que
trabalham nos bairros mais marginalizados do país, foi nomeado para chefiar a
poderosa Caritas nacional. O Vaticano também o consagrou arcebispo de La Plata,
capital da Província de Buenos Aires, que com mais de 18 milhões de habitantes
constitui a maior concentração populacional do país.
A nomeação de Ángel Rossi como arcebispo da cidade de Córdoba, segundo o
analista Uranga, "significou uma verdadeira revelação". Recompensa a
prática social desse jesuíta, que pouco depois foi consagrado cardeal pelo
Papa.
Para Uranga, a evidência de que o Papa "vem reconfigurando o
cenário da Igreja na Argentina" não termina com essas nomeações, tão afins
à sua própria visão: por exemplo, entre outras, "a nova geração de bispos,
particularmente na área metropolitana de Buenos Aires, que são bergoglianos,
muitos deles relativamente jovens e com muito compromisso social", não
deixam dúvidas sobre o projeto de renovação e atualização geracional da
hierarquia argentina como um compromisso com o futuro assumido por Roma.
Essa visão é compartilhada pelo sacerdote Marcelo Ciaramella, da diocese
de Florencio Varela (na Província de Buenos Aires), e membro ativo do Grupo de
Sacerdotes na Opção pelos Pobres. Para o padre Ciaramella, "não há dúvida
de que Francisco tentou com algumas de suas nomeações marcar uma linha
social".
·
Voz profética
A pergunta ao padre Ciaramella tenta saber o real peso que essa visão de
compromisso social tem hoje na Igreja Católica argentina, em uma situação
marcada pelo aumento exponencial da miséria e da exclusão.
Sem pretender cálculos matemáticos ou medir porcentagens, o religioso
reconhece que "há uma Igreja mais próxima do povo na prática pastoral, na
proximidade com os sofrimentos do povo, na ajuda solidária apoiando projetos de
inclusão e assistência". Mas, que também existem "notórias
contradições entre setores e interpretações sobre o papel da Igreja no meio do
povo". E ele avalia que são poucos os religiosos que tendem a "tomar
partido público em defesa do povo sofredor". Ou seja, aqueles que "assumem
verdadeiramente uma voz profética diante das flagrantes injustiças que vivemos
tanto na esfera econômica e social quanto em termos de crimes ambientais que
são cometidos em detrimento dos trabalhadores e dos grupos mais empobrecidos de
nossa sociedade".
Uma realidade que se reflete, segundo Ciaramella, no episcopado, que em
geral "tende a usar uma linguagem enigmática e tardia ou que não é
pronunciada de forma alguma". Assim passa com muitos outros religiosos,
cuja ignorância da doutrina social da Igreja é impressionante. Com a
circunstância agravante de que essa doutrina está repleta de princípios
teóricos que, embora muito válidos, não integram uma análise profunda da
realidade nem incidem nesses princípios para que se convertam em prática
pastoral.
BOX - Parte 2
<><> Desafios da nova liderança católica na Argentina - Sergio Ferrari
O padre Marcelo Ciaramella, além de seu compromisso político e social
diário nas bases, tem uma visão analítica –histórica e atual– da Igreja
Católica argentina, à qual serve há 40 anos, aniversário que acaba de comemorar
em 15 de dezembro. Em 2021, a Universidade Nacional de Quilmes (província de
Buenos Aires) publicou sua tese que resume uma parte dessa visão intitulada
"As Cumplicidades Eclesiásticas do Genocídio Econômico da Ditadura (1976-1981).
Igreja e neoliberalismo na ditadura", dissertação de seu mestrado em
Ciências Sociais e Humanas com foco em economia.
·
A eleição do arcebispo Marcelo
Colombo como presidente da Conferência Episcopal Argentina (CEA) pode ser
interpretada como um passo em direção a um maior compromisso social por parte
da hierarquia?
Marcelo Ciaramella (MC): A priori
pode ser interpretado como um sinal a favor de uma pastoral social comprometida
com os pobres, mas estou convencido de que a única verdade é a realidade. Daqui
a um tempo, poderemos ver o que nos diz essa realidade, que nesse momento é
bastante sombria e humilhante para o povo argentino. Conheço muito bem o
Marcelo Colombo. Somos amigos, quase contemporâneos, e compartilhamos muitos
momentos juntos. Quando ele foi nomeado bispo, em 2009, foi uma celebração
muito sincera, que experimentei quase em primeira pessoa. Naquela época, ele
atualizou a figura de nosso amado bispo Jorge Novak, fundador e prelado
histórico da popular diocese de Quilmes, na Província de Buenos Aires, e um
duro oponente da ditadura argentina. Marcelo e eu fomos ordenados por Novak.
Ele nos transmitiu seu testemunho de serviço e amor pelos pobres, a valorização
inegociável dos direitos humanos e a comunhão fraterna com outras perspectivas
religiosas, o que popularmente chamamos de ecumenismo.
·
O novo presidente da CEA será
capaz de manter essa visão progressista em uma posição sujeita a tantas
pressões eclesiais e políticas?
MC: Acho que ele vai tentar. Ele é
uma pessoa honesta e comprometida com o Evangelho. Sei que não será fácil para
ele articular a burocracia institucional e o Evangelho em um organismo tão
complexo. Mas, há o ensinamento de Dom Novak, que nunca renegou a colegialidade
episcopal ou falou mal em público de seus colegas, mas que nunca deixou de
dizer em voz alta o que sua consciência cristã e pastoral exigia dele, com
palavras diretas, julgamentos precisos e sem se deixar intimidar pelo poder. Em
uma das primeiras e mais recentes entrevistas após ser eleito presidente dos
bispos argentinos, Marcelo foi claro ao afirmar que toda reforma econômica deve
ser feita com a inclusão do povo, ou seja, sem excluir socialmente os mais
necessitados e frágeis
·
Quais são os desafios mais
complexos do novo presidente da CEA em um contexto político-social tão
polarizado?
MC: O arcebispo Colombo tem dito
claramente que respeitará a institucionalidade democrática e as autoridades
eleitas pelo povo, mas que não deixará de apontar as situações que afetam a
vida da sociedade. Esse é o grande desafio: ser profetas, denunciar a injustiça
e o pecado estrutural ao lado das vítimas. Ou seja, além de caminhar e edificar
a Igreja a partir dos pobres, ser profeta e sempre proclamar o Evangelho,
denunciando a injustiça e os crimes econômicos, sociais e culturais de governos
como o atual, de Javier Milei.
¨ Guerrilha colombiana ELN anuncia trégua para as
festividades
O grupo colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) anunciou, neste
domingo (22/12), um “cessar-fogo unilateral” por conta da proximidade do Natal.
A ideia da guerrilha seria suspender as ações durante o período de fim
de ano, de acordo com comunicado divulgado por lideranças dos combatentes e
pelo governo Gustavo Petro, com o qual o ELN reiniciou as negociações de paz no
mês passado.
Segundo as informações divulgadas pela guerrilha na rede social X
[antigo Twitter], a trégua terá início a 0h [2h no horário de Brasília-DF]
desta segunda-feira (23/12) e segue até à 0h de 3 de janeiro.
O grupo afirma que a iniciativa seria um “gesto de paz com o povo colombiano”
por conta do período natalino e que sua tropa estaria instruída a “não realizar
operações militares ofensivas contra as Forças Armadas do Estado”. A decisão
não é inédita, tendo sido tomada pelo ELN também em anos anteriores.
O presidente colombiano também comentou o assunto por meio de sua conta
no X, afirmando que “o fim da guerra é o propósito nacional para 2025”.
A retomada das tratativas entre Petro e a guerrilha havia sido suspensa
em setembro, quando um grupo de rebeldes atacou uma base militar e deixou três
soldados mortos e 28 feridos.
A iniciativa foi vista como uma espécie de ápice das disputas que
envolvem o Poder Executivo e o grupo armado, que reúne uma média de 5.800
combatentes na Colômbia.
As tratativas entre ambas as partes começaram no segundo semestre de
2022, quando Petro assumiu a presidência no país, mas os diálogos vivem
constante instabilidade política.
¨ A disputa sobre galeão San José e outros tesouros
submersos
O fundo do mar
esconde inúmeros tesouros engolidos pelas águas. Durante séculos, cargas de
navios que tiveram a infelicidade de naufragar ficaram inacessíveis. Arquivos
de navegação e lendas atiçaram fantasias sobre essa riqueza submersa.
À medida que a
tecnologia gradualmente vem possibilitando esses achados, surgiu o dilema de
seu destino: quem pode reivindicá-los? Eles pertencem ao descobridor? Ao estado
em cujas águas costeiras o naufrágio se encontra? Ao país da bandeira do navio?
Ou às pessoas de quem a carga preciosa que ele contém foi saqueada?
Esse é o dilema do
galeão espanhol San José, considerado o maior
tesouro naufragado do mundo – afundou em águas colombianas há mais de 300
anos, contém ouro saqueado de povos indígenas e foi localizado por empresas de
caça ao tesouro. Uma delas, a Sea Search Armada, processou o Estado colombiano
perante a Corte Permanente de Arbitragem, argumentando que foi ele quem deu a
posição e as coordenadas do galeão, em 1982.
<><> "Política,
caçadores de tesouros e poderosos"
Naquele ano, a
Colômbia concedeu à Sea Search Armada os direitos sobre seu conteúdo, pelos
quais a empresa agora reivindica 10 bilhões de dólares, o equivalente à metade
do tesouro do San José. A empresa argumenta que nunca conseguiu prosseguir com
a extração do tesouro por obstáculos impostos por governos colombianos
posteriores.
Em 2015, o governo
de Juan Manuel Santos anunciou a
localização dos destroços graças a uma empresa contratada. "A
questão sempre se moveu entre a política, os caçadores de tesouros e os
interesses de pessoas poderosas dentro e fora do país", disse à DW Juan
Guillermo Martín, arqueólogo colombiano e professor da Universidad del Norte.
Gustavo Petro
instou seu governo a recuperar o tesouro de San José antes do fim de seu
mandato em 2026, uma urgência que alarmou a comunidade científica. "No
primeiro momento, Petro deu a ordem à Marinha Nacional para remover o conteúdo
do galeão San José, ignorando as implicações técnicas de tal extração a uma
profundidade de 600 metros. E ignorando um aspecto muito mais importante, que é
o aspecto legal", enfatiza Juan Guillermo Martín, que considera ruim a
gestão que o atual governo colombiano faz do San José, depois de investir cerca
de 4 milhões de dólares.
De acordo com o
especialista colombiano, o que foi feito até agora pode ser resumido a uma
classificação, por meio de vídeo, de pouco mais de mil artefatos. Ele critica
que o vídeo mostra pessoas inexperientes avaliando "o que acontece com
eles [artefatos] ao ar livre". Além disso, agora foi dito que o navio não
afundou por causa de uma explosão, mas por causa de um reparo mal feito.
<><> Implicações
legais
"A diplomacia
cultural necessária para lidar com um contexto arqueológico como esse deveria
ter sido feita antes de qualquer outra coisa, acima de tudo garantindo a
segurança jurídica do galeão San José e de seu conteúdo", diz Martín.
A extração de
qualquer objeto do naufrágio teria implicações legais importantes. Não só o
processo da Sea Search Armada está em andamento, mas também o dos povos
indígenas, como os Qhara Qhara, perante a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, que reivindicam o conteúdo do naufrágio para si, argumentando que ele
foi saqueado pela colônia. Por outro lado, há a Espanha, proprietária de um
navio de Estado, protegida pelo princípio da imunidade soberana, e que também
se encontra em um contexto funerário, já que quase 600 tripulantes e
passageiros morreram no acidente naval.
"Antes de
realizar qualquer atividade, a primeira coisa que precisa ser resolvida é a
questão jurídica, pois há insegurança jurídica em várias frentes. Desde a Rede
Universitária de Patrimônio Cultural Submerso, temos insistido que é necessário
um projeto que envolva todas as partes e que sejam assinados acordos
legais", afirma Martín.
<><> "Patrimônio
coletivo"
Os debates atuais
sobre patrimônio submerso vão além da propriedade exclusiva. A Convenção
da Unesco de 2001 tomou
uma posição sobre a questão, argumentando que os destroços pertencem ao país
cuja bandeira o navio está hasteando. Graças ao princípio da imunidade
soberana, a Espanha obteve uma importante vitória legal na batalha pela
propriedade de um tesouro de 500 milhões de dólares resgatado das águas do
Atlântico pela empresa Odyssey na fragata "Nuestra Señora de las
Mercedes".
"O princípio
de propriedade da Convenção da Unesco é muito parecido com o direito romano:
isso é meu", disse Carlos Ausejo, especialista em patrimônio marítimo e
subaquático, à DW do Peru. "Do meu ponto de vista, o Estado espanhol no
século 17 inclui muitos países das Américas hoje. Consequentemente, esse
patrimônio também é nosso, porque fazíamos parte de um Estado espanhol",
sustenta Ausejo.
As moedas feitas
com ouro de uma região boliviana podem ter sido cunhadas em vários lugares
diferentes do vice-reinado. "É um patrimônio compartilhado, e a Unesco
também diz isso", diz Ausejo. "Há uma produção, uma construção humana
desses materiais. E aí estou indo contra os Qhara Quhara, que dizem que o ouro
é deles."
Para Ausejo, a
perspectiva que deveria prevalecer é de que o valor dos tesouros submersos não
é econômico, mas cultural. "Aceito que o navio seja espanhol, mas o
conteúdo é uma mistura do patrimônio de todos aqueles que estiveram envolvidos
de uma forma ou de outra na construção desses objetos, e não apenas as moedas.
Todo o conhecimento que podemos aprender sobre como os navios eram construídos,
como era a vida no navio. Esse patrimônio é coletivo."
Fonte: Por Sergio
Ferrari, em Brasil 247/Opera Mundi/DW Brasil
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