Os grandes avanços
da humanidade que teriam sido impossíveis sem a cola
Sem a cola, a vida
moderna literalmente desmoronaria.
Dos telefones e
aviões até os edifícios e calçados, grande parte do nosso mundo se mantém unido
graças aos adesivos.
Não é exagero dizer
que a cola foi a base de muitos dos nossos maiores avanços tecnológicos. Ao lado do
domínio do fogo e das ferramentas de pedra, a capacidade de produzir adesivos
foi uma das grandes conquistas dos nossos antepassados.
Nós usamos a cola
há muito tempo. "Ela está presente desde a pré-história", destaca a
professora Geeske Langejans, da Universidade de Delft, na Holanda.
"Os usos mais
antigos são para produzir ferramentas, como uma folha fixada a um cabo para
fazer uma faca", explica ela. "Uma ferramenta com cabo é mais precisa
e pode gerar mais força."
Mas os adesivos
podem fazer muito mais do que isso. "Alguns deles são impermeáveis, de
forma que poderiam ser aplicados sobre um cesto, servindo de reforço e
impermeabilização."
A cola também
participou das primeiras formas de arte. "Se você tivesse um pigmento e
quisesse aderi-lo à parede da caverna, precisaria acrescentar algo... uma
resina ou amido", explica a professora.
A cola também
ajudou os povos pré-históricos a brincar.
"Os adesivos
também podem ser grossos, como a argila ou massa, de forma que permitiam
produzir objetos – e sabemos que os jogos de mesa pré-históricos, às vezes,
incluíam peças feitas de resina."
A cola mais antiga
conhecida tem cerca de 190 mil anos, segundo Langejans. "Ele foi
encontrado na Itália, em duas lascas de pedra muitos simples. São objetos
feitos por neandertais."
O fascinante é que
pesquisar rastros como estes não só revela informações sobre a forma de uso
desses materiais, mas também oferece uma visão de como eram esses primeiros
hominídeos.
·
Quem
éramos?
A cola encontrada
nas lascas de pedra era alcatrão de bétula, uma massa preta e pegajosa.
Para sua produção,
é preciso aquecer a casca da árvore sob temperaturas muito altas. "O
problema é que as pessoas da Idade da Pedra não tinham recipientes à prova de
fogo", explica Langejans.
·
Então,
como fizeram nossos antepassados?
"Eu e minha
equipe fizemos experiências e um método simples é enrolar a casca na forma de
um cigarro muito grande, colocá-la em um buraco no solo, acender e
esperar", prossegue ela.
Este processo
requer habilidades cognitivas para manipular materiais usando o calor, de forma
a criar adesão deliberadamente. Será que eles tinham noção de temperatura ou
talvez alguma forma de passar adiante esta tecnologia?
"Existem
colegas que opinam que fazer alcatrão é um processo difícil", segundo a
professora, "e que este é um sinal de que os neandertais eram muito
inteligentes."
"Mas isso é
objeto de debate. Eu diria que é preciso ter algum tipo de compreensão de
conceitos muito abstratos, como o tempo, mas existem arqueólogos que não estão
de acordo."
E estas não são as
únicas pistas sobre nossos antepassados que foram deixadas pela cola.
Por muito tempo, só
conseguíamos imaginar as respostas a perguntas como: quem eles eram? que
aspecto eles tinham?
Mas,
surpreendentemente, o alcatrão de bétula também contém rastros físicos dos seus
usuários, que foram conservados por milhares de anos.
"À medida que
encontrávamos peças com cola em diferentes sítios arqueológicos, observamos que
havia marcas, indicando que elas foram mastigadas", explica o professor
Hannes Schroeder, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.
Não sabemos ao
certo por que eles mastigavam, mas o benefício deixado para as gerações futuras
é claro. "O alcatrão de bétula é como uma cápsula do tempo, pois ele
realmente protege o DNA", explica o professor.
Com isso, Schroeder
conseguiu extrair material genético do alcatrão pré-histórico.
"A primeira
peça que observamos veio de sítios do início do Neolítico, na ilha de Lolland,
na Dinamarca", ele conta. "Cerca de 6 mil anos atrás, alguém mastigou
alcatrão, cuspiu nos juncos do litoral e, uma década atrás, um arqueólogo
encontrou aquilo."
Os cientistas
conseguiram obter o DNA, que foi usado para decifrar o código genético da
pessoa que recebeu o nome de "Lola". Pela primeira vez, foi extraído
o genoma humano antigo completo de algo que não fosse um osso.
Eles revelaram que
Lola tinha pele escura, cabelo castanho escuro e olhos azuis. E que ela havia
comido pato e avelãs.
Os pesquisadores
também extraíram DNA de micróbios capturados naquele chiclete pré-histórico.
Eles encontraram, entre diversos vírus e bactérias, patógenos que causam
mononucleose infecciosa e pneumonia.
Por isso, a cola
pode ser uma fonte de informações sobre as pessoas que a usaram. E os artefatos
pré-históricos demonstram que, realmente, os adesivos nos acompanham desde os
primórdios da civilização.
Eles fizeram parte
fundamental do nosso desenvolvimento, tanto nas frias terras onde Lola morava,
quanto nos locais mais tropicais do continente americano.
·
Substância
milagrosa
Quando os colonizadores
espanhóis chegaram à América do Norte e Central, eles encontraram um material
maravilhoso, que não se parecia com nada que eles tivessem visto antes.
Com ele, os povos
locais haviam criado a faixa elástica e uma bola que saltava nos seus jogos cerimoniais,
além de sandálias resistentes para proteger os pés.
Estes objetos eram
feitos com látex, a seiva pegajosa da seringueira. Ela era usada pelo menos
desde 1600 a.C., quando o povo olmeca desenvolveu os seus segredos.
Os olmecas moravam
na região que hoje forma o centro-sul do México.
"Na sua forma
bruta e natural, é um adesivo muito bom, projetado pela natureza", afirma
o cientista de materiais Michael Tarkanian, do Instituto Tecnológico de
Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos. Ele é especialista
no uso da borracha pelos povos mesoamericanos.
"Mas, além de
utilizar o látex na sua forma natural bruta, os antigos mesoamericanos
aprenderam a modificá-lo e alterar suas propriedades", segundo ele.
Para os
colonizadores, aquele material elástico era uma curiosidade. Eles o levaram
para a Europa, sem conseguir vislumbrar como poderiam incluí-lo na tecnologia
do continente.
Mas isso começou a
mudar no século 18, quando o cientista e filósofo britânico Joseph Priestley
(1733-1804) percebeu a utilidade do látex para apagar as marcas de lápis no
papel.
Outros
pesquisadores se dedicaram a procurar mais usos. Um deles foi o químico
britânico Charles Mackintosh (1766-1843), inventor de um processo de colocação
de camadas de borracha tratada entre folhas de tela, desenvolvendo a capa de
chuva Mackintosh.
Mas os artigos de
borracha apresentavam defeitos importantes. Eles ficavam quebradiços sob
temperaturas abaixo de zero. E, com o calor, eles ficavam pegajosos e exalavam
mau cheiro.
Até que um inventor
norte-americano resolveu estes problemas, abrindo o vasto potencial da
borracha. Seu caminho até o sucesso foi longo, difícil e, muitas vezes,
perigoso. Seu nome era Charles Goodyear (1800-1860).
"Ele ficou
fascinado e se dedicou a uma busca de vários anos, com grandes prejuízos para
si próprio, entrando e saindo da prisão de devedores, além de vários anos de
sofrimento. Mas ele se manteve firme", conta Charles Slack, autor do livro Noble
Obsession ("Nobre obsessão", em tradução livre), que conta a
história do inventor.
"Ele fez
experiências com diferentes substâncias. Esteve a ponto de se matar, inalando
uma nuvem de ácido nítrico", segundo Slack.
Mas, finalmente, a
obsessão de Goodyear pela borracha trouxe seus frutos. E, um dia, ele fez um
grande avanço por acidente.
"Conta a
história que, em 1839, ele misturou borracha e enxofre", prossegue o
autor. "E, de alguma forma, a mistura entrou em contato com uma estufa
quente."
"Quando ele
voltou, mais tarde, a borracha havia se transformado. Ela estava endurecida,
mas continuava sendo flexível. E era resistente aos efeitos do calor e do frio.
Foi o seu momento heureca."
"Não havia
ocorrido a ninguém aplicar calor como solução porque o calor era o grande
inimigo da borracha", explica Slack. "Mas, em combinação com o
enxofre, acabou sendo a resposta mágica."
Mas esta solução
mágica era tudo, menos nova. Os antigos mesoamericanos misturavam o látex
elástico com suco de uma trepadeira local, a Ipomoea alba, que contém
enxofre.
Os europeus haviam
levado a substância mágica, mas não o seu segredo. Eles levaram séculos para
elucidar a questão.
De posse da sua
descoberta, Goodyear começou a desenvolver uma forma de processar a borracha,
conhecida como vulcanização. Com isso, ele transformou o material no sonho dos
engenheiros.
Em uma nova era
industrial de maquinaria que implorava por amortecedores, lacres herméticos e
tubos flexíveis, a borracha se tornou indispensável. E, hoje, ela é tão
onipresente que, muitas vezes, não a valorizamos.
As solas de
borracha dos nossos calçados amortecem os nossos passos e se aderem ao
pavimento para que não tropecemos.
A borracha
hermética nos permite flutuar em um colchão de ar, enquanto andamos de
bicicleta ou de carro. Ela evita o gotejamento das nossas torneiras e a
infiltração da umidade pelas nossas janelas. E também mantém no lugar a nossa
roupa de baixo.
Se você acha que
nada disso é pegajoso, lembre-se de que o ajuste, na verdade, é um tipo de
adesão reversível. Ele provém da capacidade da borracha de se modelar em cantos
e fendas da superfície e se aderir temporariamente a eles.
·
Vamos
voar!
Os pneumáticos
alteraram completamente nossa forma de transporte. Mas os adesivos nos
permitiram fazer algo ainda mais notável: voar.
Ao longo da
história da aviação, os adesivos promoveram o desenvolvimento de projetos
radicalmente novos. Eles permitiram que os aviões voassem mais rápido, mais
alto e mais longe do que nunca.
E, no centro desta
viagem, está um material familiar, discreto e maravilhoso: o compensado de
madeira colada – um sanduíche composto por uma pilha de pedaços de madeira
superfinos, colados entre si.
O compensado
existe, pelo menos, desde a época do Egito Antigo. Este material elimina um
problema essencial da carpintaria: as alterações da umidade, que causam
expansão ou contração da madeira. E a cola faz com que ela fique mais estável.
O compensado é
usado há vários séculos. Mas foi no século 20 que ele realmente decolou.
Diversas pessoas
tiveram a brilhante ideia de usar madeira compensada em aviões porque as chapas
finas são leves, de fácil movimentação e podem ser modeladas.
Em 1912, foi criada
na França uma fuselagem de madeira compensada moldada, que deu origem ao avião
mais rápido do mundo na época.
Este material teve
grande influência no projeto dos aviões, especialmente após o início da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918).
E tudo isso só foi possível graças aos novos tipos de cola, que possibilitaram
a fabricação do compensado de madeira resistente à água. Foram os primeiros
adesivos sintéticos da história.
Na década de 1930,
aviadores como a norte-americana Amelia Earhart (1897-1937) estabeleceram
recordes em aviões de madeira compensada colada. Mas, apesar do seu enorme
sucesso, estas aeronaves caíram em desgraça.
Por razões
culturais (não tecnológicas), a madeira foi abandonada pelos compradores
militares no período entre guerras. Eles a consideravam um material antiquado
para os aviões, que representavam o futuro e exigiam o uso de metal.
Ocorre que a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945)
causou escassez de metal.
Em Londres, o
engenheiro Geoffrey de Havilland (1882-1965) ofereceu ao Escritório da Guerra a
construção dos aviões necessários de forma muito mais rápida e barata do que as
aeronaves de metal que estavam sendo encomendadas.
De Havilland
desenvolveu um avião excepcionalmente veloz, que poderia voar mais rápido do
que qualquer caça alemão da época. Ele era chamado de Mosquito.
O projeto do
Mosquito foi um sucesso. Um avião de combate, de reconhecimento e bombardeiro,
tão rápido que nem precisava de metralhadoras defensivas. Ninguém o alcançava.
Seu legado foi
percebido depois do término da guerra. Ele trouxe nova vida para os compensados
de madeira no pós-guerra.
O compensado
finalmente deixou de ser considerado uma alternativa inferior à madeira maciça
e muitos projetistas usaram o que haviam aprendido na fabricação de aviões para
criar alguns dos móveis mais famosos das décadas de 1940 e 1950.
Atualmente, é
possível encontrar madeira compensada em toda parte, das cozinhas até os
patinetes.
Mas a indústria
aeronáutica substituiu a madeira por ligas de alumínio, que são fortes, rígidas
e resistentes à corrosão, mas densas demais para criar um avião com uso
eficiente de combustível. Por isso, quando começou a surgir uma nova classe de
materiais leves, os engenheiros aeroespaciais ficaram entusiasmados.
Eles combinaram o
poder de aderência de um novo adesivo – as resinas epóxi – com a resistência
das fibras de alto rendimento, criando compostos que permitem a fabricação de
estruturas muito eficientes.
Se você esteve em
um avião nos últimos tempos, terá provavelmente voado em uma estrutura
composta. O desafio de fazer da aviação uma
atividade ambientalmente sustentável trouxe para os adesivos um papel
central no desenvolvimento dos aviões, agora e no futuro.
·
Feridas
de guerra
Os adesivos nos
ofereceram o poder de voar até o outro lado do mundo em questão de horas. E
também o poder supremo de salvar vidas.
A descoberta
acidental do superadesivo cianoacrilato, conhecido como supercola instantânea
ou pela marca Super Bonder ou Loctite, foi causada por um erro do químico
norte-americano Harry Wesley Coover Jr. (1917-2011).
Em 1942, Coover
trabalhava com filmes químicos para visores transparentes de armas, quando um
instrumento óptico de alto custo foi arruinado pela substância que ele estava
testando.
Mas, em vez de se
lamentar, o químico teve a ideia genial de observar sua assombrosa capacidade
de aderência e rapidez. Até então, a maioria dos adesivos precisava de horas
para secar.
Mas estes novos
compostos eram quase instantâneos e conseguiam colar quase qualquer coisa –
incluindo tecidos de seres vivos, como muitos descobriram com seus próprios
dedos.
Isso indicava
possíveis aplicações médicas. Mas, inicialmente, elas não eram viáveis, já que
a supercola poderia ser irritante e até tóxica.
Até que uma nova
receita demonstrou ser mais adequada para o tratamento de feridas. Ela
despertou rapidamente o interesse do Exército dos Estados Unidos.
Equipamentos
cirúrgicos com cianoacrilato em aerosol foram enviados para a Guerra do Vietnã (1955-1975),
para uso em soldados com feridas mais graves, que os cirurgiões eram incapazes
de tratar com as técnicas convencionais.
Eles recorreram à
aplicação de supercola diretamente sobre os órgãos com sangramento, com
resultados milagrosos.
Apesar do sucesso
em situações de combate, não estava claro se os superadesivos poderiam ser
usados em tratamento médico de rotina. E existia a preocupação de que eles
pudessem causar câncer.
Mas, depois de
novas pesquisas e estudos clínicos, eles foram considerados seguros.
Atualmente, os superadesivos são empregados para fechar feridas em hospitais de
todo o mundo.
Os adesivos médicos
atuais transformaram as técnicas de cura. E existem pesquisas em andamento para
criar uma nova geração de adesivos para tecidos, inspirados em secreções viscosas e pegajosas do mundo
natural.
Mas há uma outra
questão que precisamos aprender com a natureza. Trata-se de algo vital para o
nosso futuro: como descolar.
·
Hora
de descolar
Os adesivos
modernos são tão poderosos que as uniões podem ser mais fortes que os materiais
colados. Isso é genial... até certo ponto.
Este fabuloso poder
de aderência traz um problema: as conexões não podem ser descoladas.
Os aparelhos
eletrônicos atuais contêm mais cola do que nunca. Ela serve para manter todos
os elementos no seu lugar e para torná-los resistentes, impermeáveis e mais
estilizados.
Mas isso dificulta
muito seu conserto ou reciclagem. Por isso, o mais provável é que eles acabem
no lixo.
É verdade que, em
alguns casos, é possível usar parafusos, mas esta solução não é universal.
O uso de adesivos
quase impossibilita o reparo ou reciclagem dos calçados modernos, aumentando
imensamente a quantidade de resíduos plásticos no mundo. E, neste caso, os
parafusos não resolvem.
Por isso, estão
sendo estudados adesivos reversíveis, que possam ser desativados pressionando
um interruptor. Eles são o próximo objetivo da humanidade para dominar a
adesão, o que traria imensos benefícios para a sustentabilidade.
Parece ficção, mas
passamos milhares de anos criando adesivos para resolver problemas – e os
adesivos tornaram possível o impossível.
Fonte: Por Mark
Miodownik, cientista de materiais da BBC Rádio 4, série "Glued Up: The
Sticky Story of Humanity"
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