Desconfiança
nos brancos e ameaças fazem indígenas Ka’apor resistirem com suas próprias
regras
Rubi Ka’apor tem 21 anos e está
aprendendo a pilotar drone. Ele quer ser engenheiro e trabalhar com mapeamento
para ajudar na defesa de territórios, buscando identificar, por exemplo, focos
de incêndio. Territórios como o que Rubi vive, a terra indígena Alto Turiaçu,
no Maranhão.
Ali, o drone faz parte do cotidiano dos Ka’apor, assim
como o cachimbo de barro de Inês da Conceição, de 46 anos, e o fogo feito pelos
jovens com uma madeira chamada tatay. Os Ka’apor vivem a ancestralidade e
suas tradições ao mesmo tempo que reforçam sua autonomia para decidir como
proteger suas terras e seu modo de vida. Mas nem sempre foi assim.
Essa autonomia começou a se fortalecer a partir de
2013, após muitas decepções com o “projeto saracura”, como eles chamam as
políticas dos homens brancos. A revolta se fortaleceu dois anos depois, quando
Eusébio Ka’apor foi assassinado em uma emboscada, e o crime ficou
impune.
A partir daí, especialmente na aldeia Ararorenda, os
Ka’apor começaram a implementar a chamada autogestão, na qual desenvolveram uma
estrutura de governança e leis próprias.
Para o tuxa [cacique] Itahu Ka’apor, a autogestão é o
pilar fundamental da vida em comunidade do seu povo e reflete um compromisso
profundo com a autonomia, a preservação de práticas ancestrais e a reafirmação
dos direitos indígenas.
“Nós somos povo
Ka’apor, nós temos outra cultura, outra organização e quem manda é indígena.
Nós temos acordo de convivência, nós temos lei, nós temos guarda Ka’apor, nós
temos justiça comunitária”, disse Itahu.
A independência e autogestão dos Ka’apor não significa
que não haja luta por direitos nas esferas governamentais. Itahu destaca que
eles buscam seus direitos em termos de saúde, educação e justiça, mas sem
depender totalmente das instituições estatais. A autogestão, para eles, é
sinônimo de autonomia, onde a comunidade toma decisões e se organiza sem
intermediários.
Exemplo disso foi uma decisão tomada em agosto deste
ano, durante o 4º Encontro Integrado de Autogoverno na comunidade Ararorenda,
onde o Tuxa Ta Pame – como é conhecido o conselho de gestão Ka’apor – decidiu
ignorar as eleições municipais, assim como decidiram fazer com outras eleições também.
“Não podemos entregar o nosso poder, nossa arma para o
inimigo. Não acreditamos nas eleições porque nosso projeto de vida não cabe nas
urnas. Se votar mudasse nossa vida, não teria invasão do nosso território,
[nem] ameaças, perseguições, mortes”, dizia a nota assinada pelo
conselho.
Segundo o antropólogo José Mendes, que trabalha junto
aos Ka’apor há mais de 10 anos, a situação da etnia é agravada pela conivência
de agentes do estado com agressores como madeireiros e garimpeiros ilegais. “O
estado não é visto como um garantidor de direitos, mas como aliado dos
agressores. Isso nos coloca em uma situação de permanente pressão psicológica”,
afirma.
As ações de fortalecimento da autonomia de governança
do território, promovidas pelo conselho Tuxa Ta Pa Me, acabam enfrentando
oposição de grupos indígenas dissidentes, que têm o apoio de empresas e
políticos locais. “O que incomoda é a construção de um projeto autônomo, que
pensa no bem-viver e na preservação da floresta. Isso desestabiliza interesses
econômicos e coloniais”, destaca o antropólogo.
Além da autogestão, outro pilar dos Ka’apor para
reafirmar sua autonomia é a agrofloresta, prática na qual são cultivados
alimentos diversos em meio à floresta, ajudando a preservá-la.
“Muito tempo atrás, existia a agrofloresta. Só
que o branco chegou e acabou com ela”, afirmou Itahu. Os indígenas veem esse
sistema de plantio como uma retomada essencial das práticas agrícolas
ancestrais que foram interrompidas pela chegada dos não-indígenas e consideram
que a monocultura de mandioca imposta pelos colonizadores não representa a
verdadeira diversidade de suas terras. No Alto Turiaçu, hoje eles plantam
banana, feijão, açaí, abacaxi, pequi, mandioca branca, manga, entre outros
cultivos.
·
A resistência entre o fogo e
os invasores
No fim de outubro deste ano, estava marcado um evento
chamado “Oca de Saberes”, com aulas e atividades para fortalecer a
biodiversidade, como troca de sementes. O agricultor Marcelo Rodrigues de
Sousa, de 39 anos, que foi convidado para apresentar a atividade “Frente de
Trabalho Cuidado com a Terra e Território”, uma ação focada na preservação da
biodiversidade.
O agricultor busca reconectar as pessoas com a terra
por meio de práticas que promovem a soberania alimentar. “A troca de sementes entre
as comunidades fortalece a resistência dos povos tradicionais, pois nos conecta
ao passado e ao futuro, criando uma rede de saberes que garante a nossa
sobrevivência”, diz.
Sousa criticou a dependência de monoculturas promovidas
pelo agronegócio. “Não podemos aceitar viver à base de três ou quatro tipos de
alimentos produzidos para nos tornar dependentes”, afirmou.
Ele também apontou o fortalecimento da agricultura
familiar como uma solução para driblar esse problema: “Plantar para comer, e
não só para vender, é uma forma de garantir a segurança alimentar com
qualidade”, disse, acrescentando que o agronegócio também destrói espécies
nativas locais, como o pequi e o açaí.
Mas as aulas foram interrompidas pelos incêndios.
Estudantes indígenas foram obrigados a parar suas atividades para combater as
chamas. Sousa foi combater o fogo junto aos Ka’apor.
Em novembro, o Intercept
Brasil mostrou como, diante da falta de ação dos órgãos do
governo, os Ka’apor precisaram combater o fogo por conta própria, de maneira
precária, tendo de usar até regador de jardim para conter as chamas. Após o
caso vir à tona, o Prevfogo finalmente foi até à área de proteção
Ararorenda.
Na terra dos Ka’apor, as ameaças vêm de todos os
lados.
Além dos incêndios – muitos provocados –, grupos
criminosos entram na terra indígena para derrubar árvores e roubar madeira,
garimpeiros que se instalaram em áreas vizinhas (especialmente após a tentativa
de se aprovar uma lei que liberava a mineração em terras indígenas, durante o
governo Bolsonaro), além de conflitos fundiários em todo o entorno do Alto
Turiaçu.
O próprio Itahu vem sendo uma voz ativa na denúncia
dessas violações socioambientais em seu
território e em toda a região, o que fez com que ele sofresse ameaças graves e,
por isso, teve de entrar para o programa de proteção.
Em maio de 2022, o tuxa Sarapó Ka’apor foi encontrado
morto, sangrando pela boca. Apesar de o crime nunca ter sido solucionado, a
suspeita é a de que ele tenha sido envenenado ao consumir peixes tambaquis
doados por brancos. Desde a década de 1980, quando a etnia teve suas terras
demarcadas, houve outros casos de mortes e desaparecimentos de indígenas
que não foram sequer investigados.
As invasões de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros
que tentam se apropriar do território indígena do Alto Turiaçu também são
constantes. Durante nossa estada no local, flagramos uma cerca de uma fazenda
vizinha se sobrepondo ao território, que precisou ser retirada para que os
indígenas pudessem fazer o trabalho de vigilância com drone na busca por focos
de incêndio.
O biólogo Marcos Pereira, que desenvolve com os
Ka’apor um mapeamento da região para que os próprios indígenas possam fazer a
gestão e proteção territorial, explicou que esses marcos encontrados em
fazendas e assentamentos são marcos geodésicos, implantado por um profissional
credenciado pelo Incra, usados para delimitar a fronteira entre a terra
indígena e o assentamento federal vizinho.
Esse tipo de marco serve como ponto de referência
físico e preciso para identificar os limites legais de diferentes territórios.
“Esse marco é essencial para sabermos onde termina o assentamento e começa a
terra indígena. Durante o mapeamento participativo, identificamos que muitos
colonos avançaram suas cercas e pastos para dentro do território indígena,
desrespeitando esses limites. A geolocalização nos ajuda a confirmar essas
invasões e a garantir que os limites sejam respeitados”.
·
Novos aprendizados em prol da
soberania
A violência, as ameaças e a dor pela impunidade seguem
cercando os Ka’apor. Dois anos depois de sua morte, os filhos de Sarapó, Jandai
Putyr, de 20 anos e Janay ka’apor, de 29 anos, ainda buscam por respostas sobre
sua morte, enquanto vivem a vida simples que o pai desejou para ambos. Janay
quer ser médico.
Os desejos e resistências seguem movendo os Ka’apor,
como Rubi e outros jovens da aldeia, que querem aprender além dos saberes
ancestrais, trazer novos aprendizados para o território e avançar ainda mais na
soberania e autogestão.
Ximboel Ka’apor, de 23 anos, também está aprendendo a
ser operador de drone. Ele está no Ensino Médio e sonha em ser professor
para ensinar os mais novos.
Sonhos individuais de uma juventude que já consegue
enxergar a autonomia de seu povo aliando o conhecimento do ensino superior aos
saberes ancestrais, graças aos sacrifícios dos mais velhos que lutam ou lutaram
para preservar o passado Ka’apor para que possa haver futuro.
Fonte: Por João
Paulo Guimarães, em The Intercept
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