Isis
Mustafa: Governo Lula escolhe o lado dos ricos de novo com novo ajuste fiscal
Às vésperas do Natal, o governo
Lula escolhe cortar direitos da classe trabalhadora através do novo pacote de
ajuste fiscal, aprovado no apagar das luzes dos trabalhos no Congresso
Nacional. Com o objetivo de sinalizar positivamente para o capital financeiro,
essa política econômica é encabeçada pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad e
pretende economizar cerca de R$ 70 bilhões das receitas públicas nos próximos
dois anos.
A contenção de gastos é uma
medida para frear a “grande preocupação” do mercado acerca da chamada
responsabilidade fiscal, ou seja, o compromisso do estado brasileiro com a
estabilidade da dívida pública. Mas ainda que os representantes do mercado
sejam capazes de um alvoroço barulhento, falta clareza ao presidente e sua
equipe sobre a verdadeira força de um governo: seu povo, a grande maioria dos
explorados que confiaram seu voto com esperanças de viver dias melhores.
<><> Medidas que
retiram direitos do povo pobre
O pacote aprovado institui um
limite de 2,5% de aumento real no salário mínimo e afeta beneficiários de
programas de proteção social. Por um lado, com o objetivo de gerar uma economia
de R$109,8 bilhões entre 2025 e 2030, a limitação do salário mínimo vai
impactar principalmente aposentados, pensionistas e beneficiados por programas
sociais, reduzindo o poder de compra de milhões de brasileiros. É conveniente
lembrar que o valor atual, de R$ 1.412,00, corresponde a apenas 20% do salário
necessário para uma família brasileira sobreviver. Segundo o cálculo do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)
o salário mínimo deveria ser de R$
6.959,31 no
mês de novembro deste ano.
O pacote aprovado com o voto de
348 deputados contém outra medida absurda contra o povo: a revisão no Benefício
de Prestação Continuada (BPC), que é pago a pessoas a partir de 65 anos ou com
deficiência, com renda familiar per capita mensal menor que R$ 353,00. Para
economizar R$ 6,4 bilhões, as alterações no programa vão excluir pessoas com
grau de deficiência considerado leve e endurecer a avaliação dos
beneficiários.
A dona Maria José* é
beneficiária do BPC, moradora de um bairro periférico de Boa Vista (RR), tem 92
anos e se tornou uma pessoa com deficiência visual ao longo da vida. Sem o
auxílio, relata que é impossível custear os remédios. Já para Josy* de 53 anos,
moradora da Zona Oeste de São Paulo(SP) que é atendida pelo BPC desde que
descobriu a fibromialgia, o benefício foi a forma que encontrou para sair dos
abrigos da prefeitura e viver com mais dignidade. É sobre os ombros dessas
pessoas que recairá o ajuste fiscal.
<><> Lobos em pele
de cordeiro
Não demorou para os
oportunistas e reacionários se posicionarem sobre o tema com grande cinismo: a
ex-ministra de Bolsonaro e senadora Damares Alves (Republicanos), chegou a
encenar que faria um protesto se o BPC sofresse algum corte. Também criticou
com a mesma hipocrisia o golpista Nikolas Ferreira (PL), que destina grandes
montantes de emendas parlamentares para a cidadezinha mineira onde seu tio é
prefeito.
Não nos enganam, pois seus partidos são responsáveis por todas as medidas
anti-povo desde os governos Temer e Bolsonaro.
Ficamos com a coerência da
deputada Natália Bonavides (PT-RN), base do governo, que manteve seu voto
contrário à proposta nos dois turnos. Em nota, justificou seu posicionamento:
“Votamos contra a PEC do corte de gastos e não apoiaremos propostas que
diminuam o poder do governo de mudar a vida do nosso povo. O ‘mercado’ busca
chantagear o governo com seu tom de sempre: retirar direitos dos mais pobres e
manter privilégio dos de cima[…] Como não ganharam nas urnas sem golpe ou sem
ajuda do juiz ladrão, agora estão apostando na chantagem e na sabotagem. A
especulação financeira comete um crime contra a ordem econômica para fazer o
governo não dar certo e para sequestrá-lo. Querem fazer com que a agenda que
foi derrotada nas urnas seja adotada no nosso governo.”
<><> Benefícios
para os poderosos
Aqueles que acham esses cortes
são uma grande e necessária economia de dinheiro público fecham os olhos para
os volumosos recursos que deixam de ser arrecadados em renúncias fiscais
concedidas aos ricaços: em 2024 o montante em isenções fiscais que beneficiaram
grandes empresas no Brasil foi de R$ 546 bilhões. Por exemplo, a Braskem, empresa responsável pela tragédia de
Maceió,
deixou de pagar R$ 2,27 bilhões entre janeiro e agosto deste ano.
Vale lembrar que esses grandes
monopólios, bancos e multinacionais são os mesmos que financiaram a tentativa
de golpe de Bolsonaro e dos militares no Brasil, que sustentam os governadores
fascistas e se beneficiam das diárias políticas reacionárias aprovadas no
Congresso Nacional.
Não é possível “reconstruir o
Brasil” adotando a mesma política econômica que nos submete ao capital
estrangeiro e penaliza nosso povo há tantas décadas. Cada dia fica mais
evidente que é a classe trabalhadora quem vai mostrar o caminho da construção
de um país livre e soberano, desde já com mobilizações e greves contra os
cortes nos direitos sociais de toda ordem.
¨
Do que o mercado tem medo? Por
Pedro Faria
A escalada do dólar e a pressão
de agentes do mercado financeiro por mais ajustes fiscais dominou o noticiário
da última semana. A moeda americana passou de R$6,20, um recorde nominal (ou
seja, sem considerar a inflação). No noticiário da imprensa hereditária, tudo
se resume à situação fiscal: o suposto excesso de gastos estaria causando
incerteza nos mercados financeiros, expressa na subida do dólar. Cortes de
gastos mais ousados são necessários, eles dizem.
Mas será que há esse risco
todo? A jornalista Miriam Leitão – de credenciais liberais inquestionáveis –
chama atenção para as previsões do próprio mercado: no começo do ano, o mercado previa que, ao fim de 2024, a
dívida líquida do governo estaria em 64,25% do PIB e que o governo faria um
déficit de 0,8% do PIB. No último boletim Focus, os mesmos agentes preveem que
a dívida líquida fique em 63% do PIB e o déficit primário seja de 0,5% do PIB.
Em outras palavras: o próprio mercado acha que o ano vai terminar melhor do que
eles previam há onze meses.
Também cabe lembrar que o
ajuste fiscal votado nesta semana pelo Congresso tem pouco a ver com os
déficits de hoje. Sim, o objetivo é cortar gastos, mas o principal objetivo
de fundo do ajuste é limitar gastos obrigatórios (previdência e salários do
Judiciário, por exemplo) para que eles não diminuam o espaço limitado do
arcabouço fiscal para gastos discricionários, como as obras do PAC e as bolsas
de pesquisa científica.
Se a questão fosse apenas a
meta fiscal, Haddad poderia continuar fazendo o que já vem fazendo com muito
sucesso: cobrar mais impostos dos ricos. Mas o arcabouço fiscal impõe cortes
contra direitos dos trabalhadores (e alguns cortes de emendas e supersalários
do Judiciário, que já estão sendo desidratados pelo Congresso). Mesmo a
trajetória de longo-prazo dos gastos públicos poderia ser balanceada por uma
tributação justa dos super-ricos, que hoje pagam muito poucos impostos.
Se o problema não é fiscal,
qual é o problema? Primeiro, há um momento de grande incerteza mundial. A China
está tendo dificuldade de cumprir sua meta de crescimento do PIB de 5% (que
inveja…). Os Estados Unidos estão às vésperas do início do governo Trump, que
ninguém sabe quanto vai cumprir de suas promessas de tarifas e outras
insanidades. O resultado da incerteza é a valorização do dólar, com
investidores se refugiando nos ativos mais seguros. O DXY, índice que mede a
valorização do dólar contra a moeda de outros países ricos, está no maior valor
desde outubro de 2022.
Internamente, nosso único
problema real no momento é uma inflação acima da meta do Banco Central. Hoje,
temos uma inflação de custos mais alta, causada pelo aumento do dólar e por
problemas climáticos (excesso de seca e de chuva ao mesmo tempo). Essa
inflação afeta mais os mais pobres que, pela primeira vez no governo Lula,
voltaram a viver com inflação mais alta que os ricos.
Contudo, contra essa inflação
os juros altos são ineficazes. A solução aqui seria o uso de estoques
reguladores e política de preços setoriais, mas essas palavras são detestadas
por dez em cada dez economistas do mercado financeiro. Além disso, o problema
aqui é, na verdade, que a meta de 3% é muito baixa, mas essa conversa fica para
outro momento.
Além da inflação de custos mais
alta, hoje temos uma inflação de demanda crescente. Essa inflação se expressa
nos preços dos serviços, que também estão crescendo acima do limite de 4,5% da
meta do Banco Central. Essa é a inflação “do bem”: ela tende a favorecer os
mais pobres, pois aumento de preços de serviços, na prática, significa que o
cabeleireiro, a diarista e o garçom estão ganhando mais. Tolerar um pouco dessa
inflação nos permite aproveitar os frutos do crescimento
de longo-prazo.
Fora o pequeno problema da
inflação – que é pequeno mesmo, abaixo da média do Brasil desde a implementação
do sistema de metas de inflação – o outro problema “real” é que a economia está
indo muito bem. Por “economia” entenda-se o bem-estar econômico da maioria dos
brasileiros, trabalhadores e trabalhadoras. O desemprego está na mínima
histórica, a renda do trabalho está crescendo, as greves estão ganhando
aumentos acima da inflação, a pobreza e a pobreza extrema estão no menor
patamar em mais de dez anos.
No entanto, a economia que
importa estar bem é um problema para o andar de cima. Não por que eles estão
perdendo dinheiro, muito pelo contrário. Como escreveu o economista
Michael Kalecki, o problema é que um mercado de trabalho sem
trabalhadores desesperados ameaça o poder dos capitalistas e de seus representantes
políticos. Ainda que o governo seja de frente ampla e disposto a conciliar até
o que não deveria, o fato de um partido de centro-esquerda estar no poder e
liderar uma economia pujante ameaça o controle dos capitalistas sobre a
economia política. Essa combinação pode levar a uma reeleição em condições
políticas mais confortáveis, por exemplo.
E se existe uma coisa que os
capitalistas gostam mais do que lucro, esta coisa é o controle do poder
político. Um capitalista pode até tolerar prejuízos, mas ser forçado a
vender e ganhar dinheiro é demais para eles.
¨
Tavares, Delfim e o papel de economistas na vida social brasileira
O ano de 2024 foi marcado pela perda de dois gigantes
da economia brasileira: Maria da Conceição Tavares e Antônio Delfim Netto. Ambos
desempenharam papéis fundamentais na vida social do país desde meados do século
XX, com trajetórias acadêmicas e políticas de enorme relevância, não apenas
influenciando de forma decisiva os rumos da economia nacional, como também
contribuindo intensamente para sua compreensão.
Em termos acadêmicos, as contribuições de Tavares e
Delfim se destacam pela vastidão e profundidade, sempre abrangendo os temas
mais importantes da economia brasileira. A tese de professor livre-docente de
1959 de Delfim sobre a economia cafeeira permanece como referência
incontornável para a historiografia econômica do país e se destaca em sua
produção acadêmica, ao lado de outras análises sobre a economia agrícola, a
relação entre planejamento e desenvolvimento econômico, e sobre a política
monetária e o fenômeno inflacionário. A obra de Tavares é ainda mais vasta,
abrangendo temas que vão desde o colapso do modelo primário exportador até a
economia política internacional, passando por questões estruturais da
industrialização brasileira em contexto periférico, pela análise da dinâmica
cíclica da economia, pelo processo de financeirização e os desajustes
macroeconômicos a partir do final da ditadura.
Para além da contribuição acadêmica própria, ambos
tiveram voz ativa no debate público e foram fundamentais na produção e
reprodução do conhecimento das ciências econômicas, ajudando a formar diversas
gerações de economistas e sendo peças-chave no desenvolvimento institucional de
alguns dos principais centros de ensino do país. Delfim foi, indiscutivelmente,
personagem crucial na consolidação da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas da Universidade de São Paulo (FEA-USP), enquanto Tavares
contribuiu decisivamente para a criação dos programas de pós-graduação em
economia dos dois principais centros heterodoxos do país, na Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Se dentro dos muros da universidade a contribuição de
tais economistas foi ímpar, fora deles o destaque também foi imensurável. Para
além da vida acadêmica, Tavares trabalhou no Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE, atual BNDES), ajudando no planejamento e execução do Plano de
Metas, integrou os quadros da Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (CEPAL), foi da executiva nacional do MDB na década de 1980
(contribuindo inclusive para os trabalhos da Constituinte) e, a partir da
década de 1989, se filiou ao PT, partido pelo qual chegou a ser deputada
federal entre 1995 e 1998.
Delfim Netto, por sua vez, foi o todo poderoso Ministro
da Fazenda no período que ficaria conhecido como “Milagre Econômico”,
caracterizado pelas maiores taxas de crescimento da história do país. Depois de
um período como embaixador do Brasil na França, seria Ministro da Agricultura e
do Planejamento nos últimos anos da ditadura. Posteriormente, Delfim buscaria
se reinventar, sendo eleito para deputado federal diversas vezes e chegando a
assessorar diferentes presidentes da Nova República, sendo um interlocutor
importante de Lula.
O “Milagre”, inclusive, diz muito sobre nossos dois
personagens. Delfim, que o capitaneou, foi elemento central da ditadura
militar, tendo assinado o AI-5 e mantido a regra de correção salarial herdada
do governo Castelo Branco. Esta implicava clara tendência de queda dos salários
reais (o chamado “arrocho salarial”) e, consequentemente, em um forte processo
de concentração de renda. Tavares, por outro lado, apesar se extremamente
crítica a tal política e suas consequências sociais, não deixou que isso
contaminasse sua análise do processo, e no clássico “Além da estagnação”,
escrito com José Serra em 1971, mostrou como a concentração de renda não atrapalharia
o crescimento econômico do período (como afirmava a tese estagnacionista de
Celso Furtado de meados da década de 1960), mas poderia ser funcional à
dinâmica capitalista.
Desse modo, se a proeminência acadêmica e na vida
pública é um elemento comum a ambos, é fundamental destacar suas diferenças.
Delfim, envolvido em diversas denúncias de corrupção, foi partícipe central e
contribuiu ativamente para a ditadura em seu período mais autoritário, adotando
políticas que claramente favoreciam a classe capitalista e os estratos mais
abastados da sociedade. Por outro lado, Tavares – que chegou a ser presa por
esta mesma ditadura – sempre defendeu os interesses da classe trabalhadora, e
energicamente combateu a estratégia de Delfim que, no limite, é uma metonímia
do sistema capitalista. No “Milagre” – como no modo de produção capitalista em
geral – a economia cresceu de forma vigorosa, mas os frutos de tal crescimento
foram apropriados de forma extremamente (e crescentemente) desigual. O bolo
cresceu muito, mas sua divisão foi mesquinha.
Assim, as trajetórias de Tavares e Delfim evidenciam a
importância fundamental de economistas na sociedade, no sentido de desenvolver
as ciências econômicas, e também no de utilizá-las em favor do desenvolvimento
econômico brasileiro em diferentes direções possíveis. Neste sentido o legado
de Delfim Netto deve ser reconhecido e estudado de forma crítica; o de Maria da
Conceição Tavares celebrado e levado adiante.
Fonte: Opera Mundi/Le
Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário