quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

A comunidade cristã que vivia em cavernas na Espanha na Idade Média e sobreviveu a conquistas e epidemias

Em um novo estudo, sequenciamos o genoma de vários indivíduos de uma comunidade cristã na Península Ibérica medieval, no que hoje é Espanha e Portugal.

Esses indivíduos viviam em cavernas artificiais escavadas em uma rocha.

Este assentamento, conhecido como Las Gobas, está localizado na província de Burgos, no condado de Treviño, no norte da Espanha, e é uma das mais notáveis ​​comunidades rupestres medievais da Península Ibérica.

Os arqueólogos há muito debatem por que estes grupos preferiam as cavernas aos assentamentos mais convencionais. Embora seja tentador especular sobre eremitas ou grupos religiosos, há poucas evidências que apoiem tais teorias.

Nosso estudo, que combinou arqueologia e genética, revelou segredos íntimos desta comunidade: uma história marcada por endogamia, episódios ocasionais de violência e doenças ao longo de um período fascinante.

A julgar pelas marcas de violência nos esqueletos analisados, é possível que alguns dos primeiros habitantes tivessem experiência militar, embora não esteja claro se eram soldados profissionais.

O povoado existiu entre os séculos 6 e 11, aproximadamente. Las Gobas possui um cemitério que foi utilizado continuamente do século 7 ao 11.

Na primeira fase (séculos 7 a 9), esta comunidade vivia em cavernas.

No século 10, os moradores se mudaram para uma aldeia convencional próxima, embora tenham continuado a utilizar a igreja-caverna, também escavada na rocha, e o cemitério até ao século 11.

O início da Idade Média foi um período dinâmico e tumultuado em muitas partes da Europa, especialmente na Península Ibérica.

Durante parte deste período, por volta do século 6, a comunidade de Las Gobas viveu em um perigoso território fronteiriço que separava o reino visigodo das tribos bascas mais ao norte.

A partir do século 8, a situação ali não ficou muito melhor. A depender da época, eles se encontravam mais ou menos perto da fronteira que separava os reinos cristãos do norte da Península Ibérica dos territórios vizinhos controlados pelos muçulmanos.

O reino visigodo entrou em colapso após a conquista dos exércitos muçulmanos que vieram do norte da África no ano 711.

Este acontecimento estabeleceu um território conhecido como Al-Andalus que, na sua maior extensão, abrangia grande parte da Península Ibérica.

Mas os reinos cristãos persistiram no norte da península e aos poucos recuperaram território.

Muito do que sabemos sobre este período nesta parte do mundo é dominado por acontecimentos nas principais cidades da Península Ibérica da época, como Toledo, Granada e Córdoba. Esses locais eram centros de comércio, diplomacia e poder.

O sítio rural de Las Gobas, no norte de Espanha, oferece uma visão de uma vida longe dos centros urbanos, em uma das mais peculiares comunidades rochosas conhecidas desta época.

·        O que dizem as análises de DNA?

Escavações arqueológicas no cemitério local descobriram os restos mortais de 41 pessoas.

Foram realizadas análises genéticas em 39 deles — e, em 33 indivíduos, foi possível obter DNA suficiente para identificar o sexo (eram 22 homens e 11 mulheres) e realizar pesquisas mais avançadas.

As análises genéticas revelam entre os indivíduos níveis relativamente baixos de ascendência do Norte de África e do Oriente Médio em comparação com outras pessoas da época medieval na Península Ibérica.

E também não foi observado um aumento significativo nesta ascendência após a conquista islâmica da Península Ibérica, apesar da proximidade da região com o extremo norte do território Al-Andalus.

A análise de DNA está alinhada com os registros históricos, que indicam uma influência genética limitada das populações norte-africanas na parte norte da Península Ibérica durante a Idade Média.

No entanto, houve sim algum contato entre esses povos, como sugerido pela presença de vários indivíduos com um pouco de ascendência norte-africana após a conquista muçulmana.

·        Golpes de espada

Dois dos indivíduos mais antigos, cuja análise revela que tenham vivido entre os séculos 6 e 7, apresentam sinais de violência, provavelmente por golpes de espada. Vale citar que eles eram parentes também.

Esses indivíduos, no entanto, provêm de uma época anterior à invasão muçulmana — portanto, os ferimentos não foram causados ​​por conflitos ao longo da fronteira de Al-Andalus.

Outra característica notável dessa comunidade são os altos níveis de endogamia (união entre dois familiares próximos) observados: aproximadamente 61% dos indivíduos com dados genômicos suficientes para esse tipo de estudo apresentaram sinais de endogamia.

Isso sugere que a população daquela época tinha essa prática, ou seja, eles casavam-se apenas entre si.

Juntamente com a evidência de endogamia, podemos ver que, durante o primeiro período, vários dos homens tinham algum grau de parentesco — e a grande maioria apresenta variações relativamente pequenas no cromossomo Y (material genético que é passado de pai para filho).

Isso levanta a possibilidade de no século 7 o local ter sido povoado por um pequeno grupo patrilocal (em que novos casais se instalam na casa ou comunidade do marido) e, ainda, endogâmico.

Eles podem ser, por exemplo, membros de um grupo com experiência militar.

·        Infecções

Nas duas fases do povoamento de Las Gobas, mas especialmente no período inicial, detectamos a presença da bactéria Erysipelothrix rhusiopathiae em vários indivíduos.

Esse micro-organismo, que causa doenças de pele por meio da contaminação de feridas abertas, geralmente infecta humanos pelo contato com animais domésticos.

Comumente encontrada em porcos, essa bactéria sugere que a criação desses animais era uma parte essencial do estilo de vida da comunidade.

Além disso, um dos indivíduos infectados com E. rhusiopathiae também carregava Yersinia enterocolitica, uma bactéria conhecida por infectar humanos por meio de carne estragada ou água insalubre.

A endogamia foi uma característica importante ao longo de toda a história da comunidade, mesmo quando ela saiu das habitações em cavernas para um assentamento rural mais típico no século 10.

Nesta última fase, foi detectado material genético do vírus da varíola em um dos indivíduos.

Alguns pesquisadores sugerem que a varíola, com a sua elevada taxa de mortalidade (30% quando não há vacinação), chegou à Península Ibérica com a conquista muçulmana.

No entanto, a cepa de varíola de Las Gobas está relacionada com aquelas encontradas em locais como Escandinávia, Rússia e Alemanha durante o mesmo período.

Portanto, parece que o patógeno pode ter chegado à península através de alguma outra rota europeia.

O aumento da mobilidade, exemplificado pela crescente importância da cidade de Santiago de Compostela para os peregrinos cristãos nos séculos 9 e 10, pode ter facilitado a propagação do vírus da varíola nessa região.

Nosso estudo revela uma comunidade marcada pela endogamia, pelo isolamento e pela continuidade genética ao longo de cinco séculos — e oferece uma visão detalhada da vida e da saúde em pequenas comunidades rurais durante a Idade Média.

 

Fonte: Anders Götherström e Ricardo Rodriguez Varela, para The Conversation

 

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