Henri Acselrad: O clima dos
negócios
Como a questão do clima foi construída como um problema
público? Em fins do século XVIII, um precursor dos estudos de população,
Jean-Baptiste Moheau, sustentava que o clima deveria ser objeto de governo:
“Depende do governo mudar a temperatura do ar, melhorar o clima; dar curso às
águas estagnadas e às florestas queimadas que tornam morbígenos os cantões mais
sadios”. No início do século XIX, os efeitos da emissão de gases sobre a
temperatura da atmosfera, em particular, passaram a ser discutidos por
cientistas, porém sem maiores conexões com a esfera política. Foi após a II
Guerra que o clima passou a ser visto como elemento estratégico para as grandes
potências: nos EUA, pesquisas de geoengenharia atmosférica buscaram viabilizar
usos militares do desencadeamento de chuvas e do desvio de furacões.
Avanços nas tecnologias da computação e satélites
reforçaram a área dos estudos climáticos, favorecendo, nos anos 1970, que
questões do clima fossem introduzidas no espaço público. A expressão mudanças
climáticas passou a vir acompanhada de um repertório de termos relativos não
apenas à climatologia, mas ao campo dos desastres, como risco, vulnerabilidade,
emergência, alerta, resiliência. Evidências de rupturas nas relações
socioecológicas foram associadas ao aumento da frequência e intensidade de
eventos climáticos extremos; transformações graduais percebidas em biomas e
territórios foram atribuídas ao aumento das temperaturas.
Embora em anos recentes a questão do clima tenha se
tornado um eixo do debate ambiental, há que se observar, antes, o modo como ela
foi propriamente “ambientalizada”, ou seja, inscrita no campo do debate
ambiental. Nos anos 1970, movimentos ambientalistas levantaram temas como
inverno nuclear, poluição química, chuvas ácidas e buraco de ozônio,
integrando-os na questão dita “das implicações da ação humana sobre o clima e do
efeito de retorno do clima sobre as condições de vida na Terra”. Essa afirmação
esconde o fato que os responsáveis pelas alterações climáticas não são, de
forma alguma, os mesmos atores sociais que sofrem suas consequências.
Desmatadores e indústrias fósseis são comprovadamente apontados como
responsáveis maiores pela emissão de gases estufa, enquanto grupos sociais
não-brancos de baixa renda são mais do que proporcionalmente atingidos pelos
efeitos danosos destas emissões.
Desde uma outra perspectiva, que não descole a
sociedade de seu ambiente, podemos dizer que o clima é “ambientalizado” quando
é visto como mediador de efeitos cruzados das práticas espaciais dos diferentes
sujeitos entre si. Ou seja, quando se percebe que certas práticas de apropriação
do espaço produzem alterações climáticas que, por seus efeitos, comprometem as
condições ecológicas de exercício das práticas espaciais de terceiros. Em seu
texto sobre governamentalidade, Michel Foucault apontava como o Estado moderno,
a partir do final do século XVIII, passou a governar coisas pela economia
política e pessoas pela “biopolitica”. Podemos dizer que a questão ambiental
colocou em pauta um novo campo de ação: o do governo das relações entre os
humanos mediadas pelas coisas; em particular, pelo ar, águas e sistemas vivos,
dimensões compartilhadas e não mercantis do espaço material, com forte
potencial, portanto, de politização. Isto porque tais relações não são
passíveis de serem mediadas por transações de mercado e pelo sistema de preços.
Com este deslocamento analítico, podemos fazer aflorar três problemáticas: (a)
da legitimidade das distintas práticas espaciais – classificadas, por meio de
controvérsias, como ambientalmente benignas ou danosas –, (b) da
responsabilidade desigual dos sujeitos, segundo seus poderes respectivos de
ação sobre variáveis ambientais, neste caso, climáticas; e (c) da exposição
desigual dos sujeitos aos efeitos danosos dos eventos climáticos.
Naqueles anos 1970, tais problemáticas não haviam
aflorado porque a associação entre questões ambientais e sociais era ainda
débil ou inexistente. E também porque quando a questão da desigualdade
ambiental começou a se prenunciar, esforços de despolitização entraram em ação,
fazendo com que expressões como desigualdade ambiental, justiça climática ou
racismo ambiental, por exemplo, só se tornassem mais visíveis na cena pública
na segunda década de nosso século. É esse deslocamento analítico – que
introduz, na trama, os sujeitos políticos e que nos permite entender, por
exemplo, o discurso de movimentos indígenas explicando que seu combate às
mudanças climáticas é o combate contra os grandes projetos, contra os
monocultivos que assoreiam os igarapés, extinguem a flora e a fauna, assim como
contra a fumaça das termoelétricas que prejudicam as condições de vida nas
aldeias.
Este é o caso dos porta-vozes do Conselho Indígena de
Roraima, por exemplo, que assumem seu papel de sujeitos, desenvolvendo planos
de enfrentamento das mudanças climáticas – dizem eles – “por eles sofridas nas
terras indígenas”, apontando aqueles que eles acreditam estar em sua origem e
recusando o discurso corrente da adaptação às mudanças por não se considerarem
por elas responsáveis. Em sendo ambientalizado, por sua vez, o problema
climático foi construído, ao mesmo tempo, como um problema público global.
Questões ambientais foram sendo, de fato, globalizadas desde os anos 1960, a
partir de articulações em rede de cientistas, ONGs e instituições multilaterais.
Alguns de seus marcos foram o Programa Biológico Internacional lançado em 1964,
sucedido pelo programa Homem e Biosfera da Unesco, em 1971. Em meio ao discurso
sobre Mudanças Ambientais Globais, o tema do clima ganhou destaque numa
Primeira Conferência em Genebra, em 1979, e, em 1988, na Conferência “Atmosfera
em Mudança: implicações para a segurança global” realizada em Toronto, que
coincidiu, por sua vez, com a repercussão midiática do depoimento de um
ex-diretor de pesquisas ligado à Nasa, oponente ao uso do carvão, diante do
Senado dos EUA.
Esses momentos prepararam a criação do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, em 1988, e da Convenção da
ONU sobre Clima em 1992. A partir de então, o discurso científico prevaleceu,
ainda que sob o filtro exercido pelos Estados nos relatórios do IPCC e sob a
pressão dos lobbies das petroleiras nas Conferências das
Partes. Vimos então se desenrolarem estratégias de dramatização, por parte da
ciência, de autolegitimação ambiental, por parte das corporações, e de
despolitização por parte de Estados e instituições multilaterais.
O clima foi sendo assim incorporado às dinâmicas da
chamada “modernização ecológica do capitalismo”, a saber, sobre o tripé
proficiência técnica, eficiência energética e tecnologias verdes, com a adoção
de abordagens pragmáticas, centradas no mercado de carbono e em mecanismos de
compensação. Podemos falar talvez de um processo de “modernização
climatológica do capitalismo”, a saber, do modo pelo qual as instituições correntes
internalizaram uma questão climática, celebrando a economia de mercado, o
progresso técnico e o consenso político. Ou seja, uma operação discursiva que
vem buscando transformar o que é apontado como “/restrição técnica” à expansão
do capital em um mecanismo motor da própria acumulação, construindo um consenso
climático liberal e fazendo do clima uma oportunidade de negócios, de criação
de ativos financeiros e de autolegitimação ambiental das corporações. A esta
ambientalização do capitalismo, a que o antropólogo Alfredo Wagner chamou de
“ilusão lexical”, Nancy Fraser de “alquimia discursiva” e Ève Chiapello de
“financeirização dos motivos de indignação”, poderíamos acrescentar tratar-se
de um procedimento de “assédio vocabular” pela apropriação empresarial que é
feita do vocabulário crítico.
Toda esta trama se inscreve, como sabemos, no contexto
do que se tem chamado de crise ecológica, uma ideia ora ancorada na matriz
malthusiana do clube de Roma, “do crescimento exponencial em um mundo de
recursos finitos”, ou seja de um capitalismo ao qual viriam a faltar
insumos, ora na relação sociedade-natureza, por abordagens que perdem, por
vezes, de vista, a discussão sobre a “natureza do sociedade”. Mesmo entre
autores marxistas, a ideia de crise ecológica é evocada pela metáfora de um
capitalismo canibal, que corrói as bases ecológicas de sua própria existência. É
essa autoevidência de uma crise ecológica do capitalismo que propomos aqui
problematizar. Em tais abordagens parece faltar a consideração das relações
socioecológicas que caracterizam a ambientalidade própria ao capitalismo; ou
seja, o entendimento da questão ambiental como intrinsecamente relacional e
conflitual, pondo em pauta as relações entre as diferentes práticas de
apropriação do espaço e, em particular, o fato que certo conjunto de práticas é
apontado como responsável por comprometer a continuidade do exercício das
práticas de terceiros.
Isto posto, cabe perguntar: haveria mesmo elementos
para a caracterização de um processo de instabilização e crise das condições
ecológicas de reprodução das relações sociais que constituem o capitalismo
contemporâneo? Apresentaremos a seguir alguns elementos para este debate.
O uso algo corrente da terminología “desregulação
climática” sugere poder entendermos a chamada crise ambiental como um tipo de
crise “de regulação”. Certas correntes da Economia Política já assim o fizeram
na discussão sobre as crises econômicas. No caso da economia de 1929, os
montantes investidos na produção de bens de capital e bens de consumo, por
exemplo, não teriam se mostrado compatíveis com o tamanho da demanda por estes
bens, à falta de uma coordenação que gerasse correspondência apropriada entre
estes montantes. Tal desregulação sistêmica teria sido a causa do desemprego em
massa de recursos – força de trabalho e capitais. A pergunta que caberia fazer
no caso do clima é: os indicadores de mudança climática poderiam ser vistos
como sintoma de uma desregulação sistêmica das bases socioecológicas do
capitalismo – assim como a quebradeira de empresas e o desemprego em massa o
foram para as crises econômicas? De que regulação efetivamente se trata?
Na biologia, onde surgiu, este conceito refere-se a um
ajuste autoregulado das partes de um organismo a seu todo. Importada da
biologia e aplicada pelas ciências sociais, em lugar da autoregulação das
partes de um corpo orgânico guiada pela integridade de um todo, devemos
considerar o ajuste em questão como uma ação histórica – política – assumida
por instituições e sujeitos sociais. Ou seja, aplicado às sociedades, a
regulação seria “o processo de ajuste, conforme uma regra ou norma, de uma
pluralidade de movimentos, atos e efeitos, em princípio estranhos entre si, que
requerem uma coordenação para assegurar a estabilidade/integridade do todo social”.
Desta perspectiva, a noção de crise regulatória designaria situações de
instabilidade derivadas das dificuldades de se coordenar as partes de um todo –
em nosso caso, socioecológico – de modo a manter sua integridade e reproduzi-lo
no tempo.
No caso da economia, as crises clássicas estudadas
teriam refletido uma descoordenação entre os circuitos de produção, consumo e
acumulação de capital (as comumente denominadas crises de subconsumo ou de
superprodução). A descoordenação entre esses circuitos teria sido tal que ela
teria ameaçado comprometer a própria reprodução do capitalismo. Analogamente,
no caso do meio ambiente, poderíamos falar de uma crise da “ambientalidade” do
capitalismo se ela afetasse as relações socioecológicas sobre as quais ele repousa;
ou seja, se o ambiente – nele incluindo-se o clima – constituído por essas
relações deixasse de “ambientar” materialmente os negócios. Isto viria a
ocorrer, supostamente, em razão da insuficiência de coordenação entre as
práticas espaciais dos diferentes agentes sociais, ou mais especificamente,
quando as práticas espaciais das classes dominantes perdessem sua capacidade de
reprodução, abalando-se umas às outras por uma multiplicação de desastres e
eventos disruptivos das condições ambientais de realização dessas mesmas
práticas.
É interessante lembrar que nos anos 1920, o economista
liberal conhecido como professor Pigou, um intelectual orgânico do capital,
havia sugerido que a ausência de coordenação entre as decisões das empresas
individuais representaria, para o capitalismo, um problema crucial, inclusive
em suas dimensões ambientais. Para ele, o cálculo econômico de cada unidade de
capital, efetuado em separado, seria falseado pela intercorrência de efeitos
materiais, no caso por ele exposto, efeitos corrosivos de uma determinada
fábrica sobre os equipamentos das fábricas vizinhas. Os gestores destas últimas
seriam levados a se equivocar na previsão do tempo necessário à amortização de
suas máquinas: estas ficariam, assim, inutilizadas antes do previsto e o preço
das mercadorias por elas produzidas não arcaria com o custo efetivo de sua
substituição/amortização. Tudo isso porque ocorreriam efeitos materiais –
ambientais – dos atos econômicos que não são mediados pelos sistemas de preços
e pelo mercado. Esses efeitos são mediados, de fato, pelo espaço compartilhado
não-mercantil das águas, do ar e dos sistemas vivos.
Nesta perspectiva, podemos supor, uma crise “ambiental”
– inclusive de natureza climática – ocorreria caso o impacto ambiental
recíproco e indesejável das práticas espaciais das empresas, não coordenadas
entre si, viesse a ocasionar uma infinidade de “microdesastres” capazes de
afetar o ambiente material e a lucratividade geral dos negócios. A ausência de
coordenação entre os capitais individuais geraria, assim, uma irracionalidade
para o capital em general.
Ou seja, na lógica de Pigou, o capitalismo conteria em
si os germes de uma espécie de “desastre progressivo e cumulativo” que
ameaçaria a reprodução de suas próprias práticas. Não devemos excluir o fato
que o exemplo de Pigou tenha visado apenas, heuristicamente, apontar a
importância da esfera não-econômica para os bens públicos como educação e saúde
– no caso que citamos, circunstancialmente, o usufruto compartilhado da
atmosfera “pública” – para o funcionamento da própria esfera econômica.
Sob o nome de “segunda contradição do capitalismo”, por
sua vez, o marxista ecológico James O´Connor sustentou que quando os
capitalistas individuais rebaixam seus custos, externalizando os danos ambientais
que produzem, com a intenção de manter seus lucros, o efeito não desejado
destas decisões é o aumento dos custos para outros capitalistas, reduzindo,
assim, os lucros do capital em geral.
Para O´Connor o capitalismo dirige-se a uma crise
econômica tendencial em função dos danos ambientais que ele produz sobre suas
próprias condições de produção. Este autor supõe, assim, a passagem, ao que nos
parece um tanto mecânica, do que chama de crise ecológica ao que constituiria
uma crise econômica do capitalismo. Ele desconsidera, por exemplo, a
possibilidade de que os capitais recorram a expedientes que impeçam, dificultem
ou atrasem a transformação da eventual crise das condições ecológicas de
exercício de suas práticas espaciais em uma crise econômica, de fato, para o
capital. Evocaremos mais adiante as formas assumidas por essa possibilidade.
Fato é que este tipo de irracionalidade constitutiva,
situada no mesmo plano do que Marx chamou da “condições gerais coletivas da
produção social”– elementos que, embora situados fora do circuito de
valorização do capital, são para ele indispensáveis – nunca foi objeto de séria
consideração pelos gestores do capital eles próprios. Não o foi nos anos 1920,
com Pigou, como parece não sê-lo hoje. Mas por qual razão? Há que reconhecer
que no caso do debate climático – os resultados tidos por insatisfatórios da
COP 29 não nos deixam mentir – Estados,
corporações e instituições multilaterais não dão sinal de ver na questão
climática razão suficiente para abandonar o capitalismo fóssil e extrativista.
Podemos nos perguntar, antes de tudo, se há elementos para dizer que estamos,
de fato, diante de uma crise ecológica para o próprio capital.
Avancemos em nossa questão: de que modo a reprodução
das práticas espaciais dominantes poderia se ver ameaçada pelo suposto
esgotamento dos recursos ambientais de que dependem? Podemos supor dois
caminhos: um primeiro, pela ausência de coordenação autolimitativa entre os
capitais, o que ocasionaria uma erosão da base de recursos das próprias
práticas dominantes – em termos de solos, água, sistemas vivos, condições
climáticas – gerando quedas do rendimento esperado dos capitais. Teria, no
caso, faltado uma suposta coordenação que estabelecesse limites aos processos
expansivos gerais como aqueles baseados, por exemplo, na obsolescência
programada e no estímulo ao consumismo. Um segundo caminho – eis o que parece
faltar no debate corrente – na impossibilidade de que os agentes dominantes se
apropriem da base de recursos de terceiros – de camponeses, povos indígenas,
comunidades tradicionais e moradores das periferias urbanas. Ou seja, por
processos aos quais se tem chamado de acumulação primitiva permanente ou por
espoliação; pela impossibilidade de transferir para terceiros – grupos sociais
não-dominantes – os danos ambientais das práticas espaciais dominantes. Estes
dois mecanismos – em separado ou combinados – poderiam levar a uma crise de
reprodução das práticas espaciais dominantes da grande indústria, da
agropecuária, mineração, petróleo e gás. Entretanto, não é isto que se tem
visto ocorrer com o capitalismo extrativo.
Pelo contrário, na América Latina, assim como na África
e na Ásia, são os grupos sociais não-dominantes que sempre estiveram expostos a
“crises ambientais” que lhes são específicas, dada a dificuldade de levarem a
cabo suas próprias práticas espaciais, por serem submetidos ao despejo dos
produtos invendáveis da atividade capitalista em seus espaços de vida e
trabalho, pela expropriação e cercamento territorial que inviabilizam o uso de
suas terras, matas, águas e recursos de uso comum. Ou seja, a reprodução do
tipo de capitalismo hoje vigente nos países do Sul veio se efetivando, em
grande parte, pelo exercício da capacidade dos poderosos assignarem os danos
ambientais que geram aos mais despossuídos – seja a montante de suas práticas
produtivas (via expropriação) ou a jusante (via poluição, ou seja, imposição à
população de um consumo forçado dos produtos invendáveis da atividade
capitalista).
As práticas espaciais dos grupos dominantes vêm, de
fato, se reproduzindo através de uma fuga para adiante, pela qual elas se
alimentam da inviabilização da reprodução das práticas espaciais
não-dominantes. Essa configuração diferenciada e conflitiva, fortemente
presente na experiência dos movimentos sociais, pequenos agricultores,
indigenas, quilombolas e povos tradicionais do Sul global, não nos parece estar
sendo devidamente considerada nas análises correntes da chamada crise ecológica.
Face à permanência e intensificação do conflito entre movimentos sociais
territorializados e o capitalismo extrativo, as corporações têm adotado cada
vez mais, ao lado das campanhas de maquiagem verde e de autolegitimação
ambiental, estratégias destinadas a dividir as comunidades e os movimentos
sociais, de modo a liberar espaço para a expansão das fronteiras de seus
negócios. Os ruralistas, por exemplo – ao menos parte deles designados, em
certos meios, como “o pessoal do agro” – não mostram assumir em nada, para si,
os incêndios florestais, ao mesmo tempo em que centram fogo na aprovação do
marco temporal, que pretende congelar os direitos indígenas a suas terras.
Isto posto, voltemos à nossa pergunta inicial: seriam
os indicadores de desregulação climática um sintoma de crise na coordenação
entre as práticas espaciais dominantes? A falta de controle dos efeitos
ambientais (no caso, climáticos) acumulados destas práticas espaciais
dominantes estaria gerando dificuldades para a própria reprodução destas mesmas
práticas? Ora, se assim fosse, podemos supor que as instâncias de articulação
global dos capitais teriam provavelmente entrado em ação para além da visível
busca de autolegitimação via “extrativismo verde”, fetichização do CO2,
discursos de “emissões líquidas zero”, descarbonização etc. Se não o têm
feito, isto poderia estar se dando, podemos supor, não por uma falta de
coordenação, mas, ao contrário, por estar em vigor um determinado tipo de
coordenação. Senão vejamos. Às vésperas da conferência de Nações Unidas no Rio
em 1992, o economista-chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers, escreveu em um
memorando interno ao Banco: “a racionalidade econômica justifica que as
atividades que geram males ambientais sejam relocalizadas nos países menos desenvolvidos”.
Vemos aqui a formulação do que poderíamos chamar de uma “norma regulatória”,
uma forma – perversa por certo – de coordenar as práticas espaciais no espaço
mundial – uma forma típica do capitalismo neoliberalizado, com grande liberdade
de movimento internacional de capitais.
A lógica economicista e inigualitária de Lawrence
Summers – aquela de uma economia que distribui desigualmente a vida e a morte
através de uma relocalização das práticas que causam males ambientais em
localidades habitadas pelos mais pobres – também se manifesta nos espaços
nacionais e pelos próprios efeitos de eventos extremos ditos naturais como
furacões, ciclones e outros. Mais que isso – é o que sustentam os movimentos de
justiça ambiental – essa lógica discriminatória poderia explicar o fato de não
se ter visto até aqui nenhuma ação substantiva em direção à mudança na
“ambientalidade” do capitalismo por parte dos poderes políticos e econômicos,
posto que os males ambientais que lhes são próprios – inclusive os climáticos –
têm sido destinados “com regularidade” aos mais despossuídos, negros,
indígenas, mulheres e vulnerabilizados das periferias.
Assim, a crise decorrente da ausência de coordenação
autolimitativa da expansão capitalista estaria sendo sistematicamente resolvida,
para o capital por suposto, pelos mecanismos da acumulação por despossessão –
ou seja, pela transferência dos danos do regime de acumulação aos mais
despossuídos; pela reprodução e agravamento da desigualdade ambiental. O
capitalismo é, assim, “canibal”, por certo, por canibalizar as condições
ecológicas de vida e trabalho de terceiros, por se alimentar da crise que ele
projeta sobre aqueles atores sociais que protagonizam modos de vida e formas
não capitalistas de produção. Isto posto, a aquilo que Ulrich Beck havia
chamado de “irresponsabilidade organizada” – segundo ele, um “sistema de
interações sociais em que atores sociais produzem e distribuem riscos de modo a
evitar que sejam por eles responsabilizados”, poderíamos agregar: uma
“irresponsabilidade organizada de classe, raça e gênero”, a saber, um mecanismo
de autodefesa pelo qual o capitalismo busca evitar que se configure uma crise
ambiental para si através da transferência dos efeitos danosos, intrínsecos a
seu padrão expansivo, técnico e locacional, às práticas espaciais e modos de
vida daqueles que são, por ele, despossuídos.
No caso das mudanças climáticas que ora ocupa a pauta
global, se o senso comum parece convencido de que o impacto das emissões de
gases estufa é percebido globalmente, falta ainda despertar para o fato – e
suas implicações – que ele é sofrido desigualmente. Sabemos que, com os
processos de neoliberalização, a liberdade de deslocamento dos capitais na
escala global deu-se de modo a por em competição os trabalhadores de todo o mundo.
As reformas liberais permitiram que os capitais globalizados, através da
chantagem de localização dos investimentos, operada em escala internacional,
agissem implicitamente em prol do lema: “trabalhadores de todo o mundo
desuni-vos”. Isto as reformas buscaram estimular através da competição
instaurada entre as diferentes escalas nacionais onde se inscrevem as relações
salariais – ou seja, uma concorrência pelo rebaixamento de salários e perda de
direitos.
Mas o mesmo veio ocorrendo no campo das regulações
ambientais, através de um dumping desregulatório, que pode
inclusive se apresentar, hoje, em nosso país, como uma explicação para a
constituição de certa base social para o antiambientalismo
agrominero-exportador. A liberdade que as grandes corporações têm de produzir
desigualdade em várias escalas seria, portanto, causa importante da manutenção
do modelo espoliador de desenvolvimento. Ou seja, a predação – e a arquitetura
espacial do capitalismo extrativo que a sustenta – tenderia a continuar enquanto
os que estiverem sofrendo seus efeitos forem os menos representados nas esferas
do poder. Só que, ao mesmo tempo, em nome do combate às mudanças climáticas,
instituições do capitalismo central vêm pressionando os países do Sul a
desempenhar um papel subordinado, de novo tipo, numa espécie de “divisão
internacional do trabalho ecológico”, pela criação das chamadas “zonas de
sacrifício verde” a compensar a continuidade das emissões dos países do Norte.
Assim é que comunidades indígenas e tradicionais dos países do Sul têm sido
estimuladas a estabelecer laços de dependência com relação a empresas via
mercado de carbono, atualizando o papel da expropriação das periferias na
reprodução do capitalismo extrativo global. Ou seja, enquanto no contexto do
fordismo, no pós II Guerra, ao menos nas economias centrais, as lutas sociais
tiveram como resposta um conjunto de instituições de regulação – seguro
desemprego, negociações coletivas de salários etc. – no caso do capitalismo
extrativo, a resposta às lutas sociais e territoriais tem assumido a forma de
um novo discurso empresarial – o grande reinício diz o presidente do Fórum de
Davos – , de políticas sociais privadas voltadas à desmobilização de
grupos atingidos, de processos judiciais e assédio judicial contra lançadores
de alerta e pesquisadores que apontam irregularidades nos projetos
empresariais.
O que tem ocorrido é, antes, portanto, uma resposta às
críticas – com ampliação simultânea de mercados, ativos financeiros e criação
de novos tipos de cercamentos – do que reação dos capitais e das instituições
multilaterais a uma suposta crise. O que se poderia configurar como fator de
uma futura crise para o capitalismo extrativo seriam, com efeito, as lutas
territoriais e ambientais dos atores sociais que defendem o respeito a seus
direitos, suas práticas espaciais e seus modos de vida ameaçados pelos grandes
projetos extrativos.
Fonte: A Terra é
Redonda
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