"Colonização
deixou cicatriz no DNA do Brasil", diz estudo
Um projeto que está mapeando
o genoma de milhares de brasileiros com idades entre 35 e 74 anos aponta
que o DNA dos pesquisados apresenta uma prevalência de cromossomos Y – herdados
dos pais – de origem europeia.
Desde 2019, quando foi
iniciada, a pesquisa "DNA do Brasil" sequenciou cerca de 3
mil genomas brasileiros. "Encontramos poucos cromossomos Y de
ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi deixada da nossa colonização. Por outro lado,
quando olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da nossa mãe, ele está
muito melhor distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a parte paterna é predominantemente europeia", afirma a
cientista, professora e pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, do Departamento de
Genética e Biologia Evolutiva da USP.
"Isso é uma cicatriz de
uma colonização, de um povo dominante sobre povos dominados."
Pereira lidera a pesquisa. O
objetivo do estudo é aumentar a representatividade
da população brasileira nas pesquisas globais sobre o tema. O motivo: as características genéticas dos brasileiros divergem, em grande
parte, das de povos de regiões mais avançadas nesses estudos, a exemplo de
América do Norte, Europa e Ásia.
Além da predominância de
pais europeus, as respostas preliminares mais recentes do estudo também indicam
uma mistura de DNAs africanos em solo brasileiro de povos que não se cruzaram na África.
O mapeamento tenta
identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da
população, trazendo mais conclusões sobre a biologia humana e doenças que futuramente poderiam ser prevenidas e melhor tratadas.
O estudo também pretende
investigar a identidade do brasileiro, detectando componentes genéticas que
ajudem a entender melhor a história e a evolução do povo do país.
No fim de 2019, logo depois
de o projeto ter sido lançado, Lygia afirmou em entrevista à DW que o Brasil
detém, provavelmente, o mapa genético mais
miscigenado do mundo, devido às suas distintas ancestralidades
– africana, indígena, asiática, árabe, europeia.
"O meu rigor
[científico] me impede de dizer que é a mais miscigenada. Sigo no meu
'provavelmente'", reitera, em nova conversa com a DW.
LEIA A ENTREVISTA:
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Logo depois que o projeto DNA do Brasil foi lançado,
em dezembro de 2019, veio a pandemia de covid-19. O quanto o projeto avançou e
evoluiu de lá para cá?
A pandemia atrapalhou e
atrasou bastante o projeto. Existia toda uma intenção de o Ministério da Saúde
aumentar rapidamente os recursos para o projeto porque inicialmente havia uma
verba para começar [as pesquisas], mas com a pandemia isso tudo atrasou.
Está para sair um artigo
descrevendo os resultados dos 3 mil primeiros genomas brasileiros sequenciados.
E o ministério nos deu uma verba adicional para sequenciar mais 6 mil genomas
que a gente está fazendo este ano e deve terminar no ano que vem.
O ministério também está
financiando outros grupos de pesquisa que estão sequenciando genomas de
diferentes grupos de brasileiros, alguns com doenças específicas, outros são
brasileiros de alguma região específica...
Para o DNA do
Brasil, resolvemos focar em diversidade. Nessa segunda fase do projeto, há
um esforço para ter subpopulações de diferentes regiões do país. Na
primeira fase, nesses primeiros 3 mil genomas, dependendo da região, você vai
ter mais frações de populações com maior ancestralidade genética africana, ou
indígena, ou europeia.
Queremos conhecer e saber
como é a população brasileira como um
todo. Por isso, agora estamos observando gente do Sul,
do Centro-Oeste, do Norte, do Nordeste, populações quilombolas, populações ribeirinhas, a fim de focar na caracterização da nossa diversidade.
·
No início do projeto, o DNA do Brasil queria:
incluir o Brasil no mapa dos estudos genômicos realizados no mundo e aumentar a
representatividade da nossa população; identificar variações genéticas
relacionadas às características de saúde da população; e estudar a nossa
identidade, detectando componentes genéticos de nativos americanos, ameríndios
e africanos para entender melhor a nossa história e a evolução do povo brasileiro.
Esses objetivos foram alcançados?
Essas coisas são
investimentos a longo prazo. De fato, iniciamos esse primeiro objetivo, que é
aumentar a representatividade e colocar o Brasil no mapa de projetos de genomas
de populações. Mas estamos apenas começando. Até o meio do ano que vem, teremos
10 mil genomas brasileiros sequenciados. O Reino Unido, por exemplo, tem 500
mil. É esse número que precisamos alcançar.
Quanto ao segundo objetivo,
precisamos que essa plataforma esteja grande para começar a ter poderes
estatísticos para alcançar as descobertas. E isso é outro investimento a longo
prazo.
Em relação ao terceiro
objetivo, começa-se a desvendar isso. Esse artigo que a gente vai publicar foca
justamente nessa parte de entender como é que os genomas indígenas, europeus e
africanos se misturaram para dar origem à população brasileira atual, e que marcas da história da formação da nossa população estão no nosso
DNA.
·
E que marcas são essas?
Por exemplo, uma coisa super
interessante é quando olhamos o cromossomo Y. Em torno de 75% dos cromossomos Y
desses três mil brasileiros que sequenciamos têm origem europeia. Encontramos
poucos cromossomos Y de ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi
deixada da nossa colonização.
Por outro lado, quando
olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da mãe, ele está muito melhor
distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a
parte paterna é predominantemente europeia. Isso é uma cicatriz de uma
colonização, de um povo dominante sobre povos dominados.
É super interessante,
também, que encontramos misturas de DNA africanos, de povos de diferentes
regiões da África que nem se encontram na África. Esses DNAs se misturaram aqui
no Brasil, essas pessoas foram trazidas para cá e se misturaram.
·
E do ponto de vista médico, por que estudar o genoma
do brasileiro?
A partir desses genomas
podemos ver com que frequência as variantes genéticas que encontramos existem
na nossa população. E isso é muito importante para ajudar na interpretação de
testes genéticos.
Vamos imaginar um caso
de câncer de mama. A pessoa sequencia o gene BRCA1, um gene importante em se tratando de
câncer de mama, e o geneticista encontra uma variação. E aí ele vai se
questionar: será que essa variação causa doença ou não? Uma maneira de se ver
isso é saber se aquela variação é frequente na população. Se for frequente,
provavelmente não causa doença. Se for uma variante muito rara, acende uma luz
amarela.
Mas e quando um brasileiro
faz esse teste? O geneticista vai comparar com os bancos de dados e percebe que
essa variante nunca foi descrita num banco de dados. Mas por quê? Pelo fato de
a pessoa ter uma ancestralidade indígena ou africana, e os bancos de dados
serem todos de população branca, e, assim, nós não temos esse
conhecimento. Por isso é importante saber como é a frequência dessas
variações genéticas na nossa população.
·
Em 2019, a senhora disse que o brasileiro, por ter
ancestrais indígenas, africanos, europeus e asiáticos, tinha, provavelmente, o
DNA mais miscigenado do mundo. Esse "provavelmente" já pode ser
retirado, ou seja, essa informação já pode ser confirmada?
Eu vou seguir dizendo
"provavelmente" porque a gente não sequenciou o genoma de todas as
populações mundiais. Mas do que conhecemos hoje em dia de genomas
humanos, a população brasileira é das mais miscigenadas. Agora, conhecemos
muito pouco ainda, e, por isso, o meu rigor me impede de dizer que é a mais
miscigenada. Sigo no meu "provavelmente".
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Como vocês conseguiram os dados para o estudo?
Fizemos parcerias e
colaborações com grupos acadêmicos que já vinham estudando a saúde de
diferentes grupos de brasileiros. Esses brasileiros já estavam participando
desses estudos. O que a gente fez foi adicionar o sequenciamento do genoma
dessas pessoas. O recrutamento das pessoas já tinha sido feito lá atrás.
·
É possível dizer que há um brasileiro nato?
[Risos] Nós todos somos
brasileiros natos. Não, não existe um brasileiro [específico]. Como é o DNA do
brasileiro? Vai ser diferente mesmo dentro de cada região. Agora, se eu
observar o DNA de uma pessoa que é uma mistura de indígena, africano e europeu,
eu vou desconfiar que é brasileiro. Tem brasileiro que não é misturado, mas, se
for muito misturado, eu vou achar que é brasileiro.
Há também a mistura de
africanos que não se encontram na África; essa gente se encontrou no
Brasil. A África é um continente, então tem gente na África que não se encontra
e não se mistura, mas, como foram trazidos, escravizados, de diferentes regiões, esses DNA se misturaram aqui. E você não encontra
eles misturados na África, por exemplo.
¨ Imigração
alemã: "A versão era sempre a do colonizador"
A chegada dos alemães ao Rio
Grande do Sul, há 200 anos, costuma ser narrada como o desbravamento de uma terra vazia por
imigrantes que prezavam o trabalho livre. É um mito que está, por exemplo, no
hino de São Leopoldo ("Louro imigrante, só a natureza te viu chegar para
trabalhar aqui”), como ressalta o historiador Ricardo Charão no prefácio
de Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração
alemã (Carta Editora), dos jornalistas Gilson Camargo e Dominga
Menezes.
Reunindo dados da
historiografia recente, crônicas de época e entrevistas com pesquisadores e
ativistas, os jornalistas gaúchos mostram que houve muitos conflitos
territoriais dos imigrantes com populações indígenas, sobretudo os kaingang, e que os alemães também escravizavam negros.
Em entrevista à DW, Camargo
e Menezes falam do apagamento dessa história e de como isso tem mudado com
políticas públicas neste século. Um dos reflexos é o monumento
"Diversidade 200 anos", que será instalado em São Leopoldo em 25 de
julho, quando se comemora o bicentenário da fundação da cidade, com a chegada
de 39 pessoas de fala alemã ao Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul.
LEIA A ENTREVISTA:
·
O
que os levou a pesquisar sobre o mito de que os imigrantes alemães chegaram
numa terra desocupada?
Gilson Camargo: Como jornalistas, sempre tivemos uma inquietação sobre a narrativa
do imigrante desbravador, reafirmando que não havia ninguém em São Leopoldo
antes de 25 de julho de 1824. Percebemos um movimento de historiadores na
academia que dizia que a história não era bem assim, com documentos comprovando
que havia indígenas naquela região desde antes dos portugueses.
Outros mitos também foram
criados, como o de que os alemães eram adeptos do trabalho livre, mas eles
possuíam muitos escravos, que eram um bem valioso. A Feitoria do Linho Cânhamo
(hoje Casa do Imigrante, em São Leopoldo) era um centro de produção agrícola e
pecuária tocado com mão de obra indígena e negra, que abastecia o mercado local
e exportava o excedente para Porto Alegre, e chegou a ter 321 escravos. Foi o
maior grupo da história da escravidão do Rio Grande do Sul, mais do que as
charqueadas, que tinham em média cem escravos.
Dominga Menezes: Os historiadores tradicionais ignoravam esses registros da
presença indígena e negra.
·
Parte das fontes que se referem a populações
indígenas na região são crônicas eurocêntricas. Como essas mesmas histórias
podem contextualizar a disputa dos alemães por territórios com indígenas,
principalmente os kaingang?
Camargo: Há pouca
bibliografia sobre a presença negra e indígena, apenas material esparso na
historiografia oficial. No caso dos indígenas, muitas das fontes são de
folhetins, crônicas publicadas em jornais da época, em que a versão era sempre
a do colonizador. Como os indígenas não tinham registro escrito, a oralidade se
perdia. Eles eram tratados como selvagens, agressores. As mortes de indígenas
eram naturalizadas, mas um imigrante morto era o fim do mundo. Confrontamos
essa literatura com a pesquisa de novos autores da academia.
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O livro trata da necessidade de "resgatar os
registros factuais". Por que, apesar desses registros, ainda resiste o
mito de que não havia negros escravizados nas colônias alemãs?
Camargo: No Rio
Grande do Sul, por muito tempo se disse que não se podia pesquisar a história
do negro porque Rui Barbosa [abolicionista e ministro da Fazenda no primeiro
governo da República] mandou queimar os registros da escravidão. Mas a
academia começou a resgatar documentos cartoriais, de propriedade, morte, nascimento,
casamento. O livro Registros da presença negra no Arquivo Histórico do
RS (editora Oikos), coordenado por Paulo Moreira, professor da
Unisinos, compila esses documentos públicos. O historiador Ricardo Charão
mostra que em São Leopoldo havia pessoas de fala alemã de toda a Europa, e
também de diversas partes da África, com muitos dialetos.
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O livro também derruba o mito de quem eram os
alemães, porque na verdade a Alemanha como Estado unificado só existiu a partir
de 1871.
Camargo: As pessoas
que vieram para cá eram muito marginalizadas, agricultores que foram expulsos da terra dos empregadores na Europa,
andarilhos, presidiários. Mas a história oficial é mitificada, exalta muito a
virtude do povo alemão.
Menezes: Tomamos
cuidado para não minimizar a importância dos imigrantes, até porque nem tudo foi um mar de rosas
para eles. Os alemães chegaram aqui com a promessa de um
lote de terra, mas muitas vezes só iam tomar posse seis meses depois.
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Vocês dois são gaúchos, Dominga Menezes cresceu em
São Leopoldo. Antes de pesquisarem sobre o tema, como aprenderam sobre a
história da imigração alemã?
Menezes: Viemos de
uma geração que pouco questionava. Eu tenho uma história peculiar. Em 1974, na ditadura,
Ernesto Geisel esteve nas comemorações dos 150 anos da imigração alemã em São
Leopoldo. Num palco próximo ao Rio dos Sinos, 120 meninas apresentaram uma
coreografia para saudar o presidente, vestindo malhas das cores do Rio Grande
do Sul. Eu estava lá, tinha 12 anos. Como sou parda, vestia amarelo. As mais
claras vestiam verde e as negras, vermelho. É algo que hoje me chama muita
atenção. A gente estava saudando a germanidade, enquanto ninguém se dava conta
de que ali havia meninas negras, de origem indígena, com outros traços.
Essas festividades alusivas
à imigração alemã sempre passaram por cima da nossa história. Todo ano, quando
é comemorado o aniversário da cidade, é escolhida uma corte, com rainhas e
princesas. Elas sempre tinham que ter a pele clara. Só em 2005, com a criação
da Secretaria de Cultura de São Leopoldo, houve espaço para que meninas negras
também participassem do concurso.
Camargo: Houve uma
transformação com políticas públicas que tratam a cultura de forma mais
inclusiva, e não como solenidade, entretenimento.
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Em entrevista ao livro, o teólogo e historiador
negro Ricardo Charão afirma que a história da colonização alemã no Rio Grande
do Sul ganhou relevância a partir das comemorações do centenário da imigração
em 1924, que reforçaram a narrativa da ocupação de um espaço vazio pelos
alemães. Como as comemorações do bicentenário podem ajudar a mudar essa
visão?
Camargo: Depois do
centenário, a questão da germanidade ficou represada por um tempo, com a proibição de idiomas
estrangeiros no governo de Getúlio Vargas. Quando
isso acabou, houve uma revitalização da identidade germânica de que a própria
política se aproveitou.
No bicentenário, as
comemorações têm forte marca da inclusão. O monumento "Diversidade 200
anos" vai ser instalado em São Leopoldo em 25 de julho. A programação
seria mais ampla, foi reduzida por conta das enchentes, mas traz uma diversidade que há até bem pouco tempo a gente não via.
A gente está falando não só
do passado, mas do presente, de pessoas que são invisibilizadas até hoje.
Precisamos parar de dizer que São Leopoldo nasceu em 25 de julho de 1824 e nos
reconciliar com a história.
Fonte: DW Brasil
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