sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

"Colonização deixou cicatriz no DNA do Brasil", diz estudo

Um projeto que está mapeando o genoma de milhares de brasileiros com idades entre 35 e 74 anos aponta que o DNA dos pesquisados apresenta uma prevalência de cromossomos Y – herdados dos pais – de origem europeia. 

Desde 2019, quando foi iniciada, a pesquisa "DNA do Brasil" sequenciou cerca de 3 mil genomas brasileiros. "Encontramos poucos cromossomos Y de ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi deixada da nossa colonização. Por outro lado, quando olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da nossa mãe, ele está muito melhor distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a parte paterna é predominantemente europeia", afirma a cientista, professora e pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.

"Isso é uma cicatriz de uma colonização, de um povo dominante sobre povos dominados."

Pereira lidera a pesquisa. O objetivo do estudo é aumentar a representatividade da população brasileira nas pesquisas globais sobre o tema. O motivo: as características genéticas dos brasileiros divergem, em grande parte, das de povos de regiões mais avançadas nesses estudos, a exemplo de América do Norte, Europa e Ásia.

Além da predominância de pais europeus, as respostas preliminares mais recentes do estudo também indicam uma mistura de DNAs africanos em solo brasileiro de povos que não se cruzaram na África.

O mapeamento tenta identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da população, trazendo mais conclusões sobre a biologia humana e doenças que futuramente poderiam ser prevenidas e melhor tratadas.

O estudo também pretende investigar a identidade do brasileiro, detectando componentes genéticas que ajudem a entender melhor a história e a evolução do povo do país.

No fim de 2019, logo depois de o projeto ter sido lançado, Lygia afirmou em entrevista à DW que o Brasil detém, provavelmente, o mapa genético mais miscigenado do mundo, devido às suas distintas ancestralidades – africana, indígena, asiática, árabe, europeia.

"O meu rigor [científico] me impede de dizer que é a mais miscigenada. Sigo no meu 'provavelmente'", reitera, em nova conversa com a DW.

LEIA A ENTREVISTA:

·        Logo depois que o projeto DNA do Brasil foi lançado, em dezembro de 2019, veio a pandemia de covid-19. O quanto o projeto avançou e evoluiu de lá para cá?

A pandemia atrapalhou e atrasou bastante o projeto. Existia toda uma intenção de o Ministério da Saúde aumentar rapidamente os recursos para o projeto porque inicialmente havia uma verba para começar [as pesquisas], mas com a pandemia isso tudo atrasou.

Está para sair um artigo descrevendo os resultados dos 3 mil primeiros genomas brasileiros sequenciados. E o ministério nos deu uma verba adicional para sequenciar mais 6 mil genomas que a gente está fazendo este ano e deve terminar no ano que vem.

O ministério também está financiando outros grupos de pesquisa que estão sequenciando genomas de diferentes grupos de brasileiros, alguns com doenças específicas, outros são brasileiros de alguma região específica...

Para o DNA do Brasil, resolvemos focar em diversidade. Nessa segunda fase do projeto, há um esforço para ter subpopulações de diferentes regiões do país. Na primeira fase, nesses primeiros 3 mil genomas, dependendo da região, você vai ter mais frações de populações com maior ancestralidade genética africana, ou indígena, ou europeia.

Queremos conhecer e saber como é a população brasileira como um todo. Por isso, agora estamos observando gente do Sul, do Centro-Oeste, do Norte, do Nordeste, populações quilombolas, populações ribeirinhas, a fim de focar na caracterização da nossa diversidade.

·        No início do projeto, o DNA do Brasil queria: incluir o Brasil no mapa dos estudos genômicos realizados no mundo e aumentar a representatividade da nossa população; identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da população; e estudar a nossa identidade, detectando componentes genéticos de nativos americanos, ameríndios e africanos para entender melhor a nossa história e a evolução do povo brasileiro. Esses objetivos foram alcançados?

Essas coisas são investimentos a longo prazo. De fato, iniciamos esse primeiro objetivo, que é aumentar a representatividade e colocar o Brasil no mapa de projetos de genomas de populações. Mas estamos apenas começando. Até o meio do ano que vem, teremos 10 mil genomas brasileiros sequenciados. O Reino Unido, por exemplo, tem 500 mil. É esse número que precisamos alcançar.

Quanto ao segundo objetivo, precisamos que essa plataforma esteja grande para começar a ter poderes estatísticos para alcançar as descobertas. E isso é outro investimento a longo prazo.

Em relação ao terceiro objetivo, começa-se a desvendar isso. Esse artigo que a gente vai publicar foca justamente nessa parte de entender como é que os genomas indígenas, europeus e africanos se misturaram para dar origem à população brasileira atual, e que marcas da história da formação da nossa população estão no nosso DNA.

·        E que marcas são essas?

Por exemplo, uma coisa super interessante é quando olhamos o cromossomo Y. Em torno de 75% dos cromossomos Y desses três mil brasileiros que sequenciamos têm origem europeia. Encontramos poucos cromossomos Y de ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi deixada da nossa colonização.

Por outro lado, quando olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da mãe, ele está muito melhor distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a parte paterna é predominantemente europeia. Isso é uma cicatriz de uma colonização, de um povo dominante sobre povos dominados.

É super interessante, também, que encontramos misturas de DNA africanos, de povos de diferentes regiões da África que nem se encontram na África. Esses DNAs se misturaram aqui no Brasil, essas pessoas foram trazidas para cá e se misturaram.

·        E do ponto de vista médico, por que estudar o genoma do brasileiro?

A partir desses genomas podemos ver com que frequência as variantes genéticas que encontramos existem na nossa população. E isso é muito importante para ajudar na interpretação de testes genéticos.

Vamos imaginar um caso de câncer de mama. A pessoa sequencia o gene BRCA1, um gene importante em se tratando de câncer de mama, e o geneticista encontra uma variação. E aí ele vai se questionar: será que essa variação causa doença ou não? Uma maneira de se ver isso é saber se aquela variação é frequente na população. Se for frequente, provavelmente não causa doença. Se for uma variante muito rara, acende uma luz amarela.

Mas e quando um brasileiro faz esse teste? O geneticista vai comparar com os bancos de dados e percebe que essa variante nunca foi descrita num banco de dados. Mas por quê? Pelo fato de a pessoa ter uma ancestralidade indígena ou africana, e os bancos de dados serem todos de população branca, e, assim, nós não temos esse conhecimento. Por isso é importante saber como é a frequência dessas variações genéticas na nossa população.

·        Em 2019, a senhora disse que o brasileiro, por ter ancestrais indígenas, africanos, europeus e asiáticos, tinha, provavelmente, o DNA mais miscigenado do mundo. Esse "provavelmente" já pode ser retirado, ou seja, essa informação já pode ser confirmada?

Eu vou seguir dizendo "provavelmente" porque a gente não sequenciou o genoma de todas as populações mundiais. Mas do que conhecemos hoje em dia de genomas humanos, a população brasileira é das mais miscigenadas. Agora, conhecemos muito pouco ainda, e, por isso, o meu rigor me impede de dizer que é a mais miscigenada. Sigo no meu "provavelmente".

·        Como vocês conseguiram os dados para o estudo? 

Fizemos parcerias e colaborações com grupos acadêmicos que já vinham estudando a saúde de diferentes grupos de brasileiros. Esses brasileiros já estavam participando desses estudos. O que a gente fez foi adicionar o sequenciamento do genoma dessas pessoas. O recrutamento das pessoas já tinha sido feito lá atrás.

·        É possível dizer que há um brasileiro nato?

[Risos] Nós todos somos brasileiros natos. Não, não existe um brasileiro [específico]. Como é o DNA do brasileiro? Vai ser diferente mesmo dentro de cada região. Agora, se eu observar o DNA de uma pessoa que é uma mistura de indígena, africano e europeu, eu vou desconfiar que é brasileiro. Tem brasileiro que não é misturado, mas, se for muito misturado, eu vou achar que é brasileiro.

Há também a mistura de africanos que não se encontram na África; essa gente se encontrou no Brasil. A África é um continente, então tem gente na África que não se encontra e não se mistura, mas, como foram trazidos, escravizados, de diferentes regiões, esses DNA se misturaram aqui. E você não encontra eles misturados na África, por exemplo.

 

¨      Imigração alemã: "A versão era sempre a do colonizador"

A chegada dos alemães ao Rio Grande do Sul, há 200 anos, costuma ser narrada como o desbravamento de uma terra vazia por imigrantes que prezavam o trabalho livre. É um mito que está, por exemplo, no hino de São Leopoldo ("Louro imigrante, só a natureza te viu chegar para trabalhar aqui”), como ressalta o historiador Ricardo Charão no prefácio de Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã (Carta Editora), dos jornalistas Gilson Camargo e Dominga Menezes.

Reunindo dados da historiografia recente, crônicas de época e entrevistas com pesquisadores e ativistas, os jornalistas gaúchos mostram que houve muitos conflitos territoriais dos imigrantes com populações indígenas, sobretudo os kaingang, e que os alemães também escravizavam negros.

Em entrevista à DW, Camargo e Menezes falam do apagamento dessa história e de como isso tem mudado com políticas públicas neste século. Um dos reflexos é o monumento "Diversidade 200 anos", que será instalado em São Leopoldo em 25 de julho, quando se comemora o bicentenário da fundação da cidade, com a chegada de 39 pessoas de fala alemã ao Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. 

LEIA A ENTREVISTA:

·        O que os levou a pesquisar sobre o mito de que os imigrantes alemães chegaram numa terra desocupada?

Gilson Camargo: Como jornalistas, sempre tivemos uma inquietação sobre a narrativa do imigrante desbravador, reafirmando que não havia ninguém em São Leopoldo antes de 25 de julho de 1824. Percebemos um movimento de historiadores na academia que dizia que a história não era bem assim, com documentos comprovando que havia indígenas naquela região desde antes dos portugueses. 

Outros mitos também foram criados, como o de que os alemães eram adeptos do trabalho livre, mas eles possuíam muitos escravos, que eram um bem valioso. A Feitoria do Linho Cânhamo (hoje Casa do Imigrante, em São Leopoldo) era um centro de produção agrícola e pecuária tocado com mão de obra indígena e negra, que abastecia o mercado local e exportava o excedente para Porto Alegre, e chegou a ter 321 escravos. Foi o maior grupo da história da escravidão do Rio Grande do Sul, mais do que as charqueadas, que tinham em média cem escravos. 

Dominga Menezes: Os historiadores tradicionais ignoravam esses registros da presença indígena e negra. 

·        Parte das fontes que se referem a populações indígenas na região são crônicas eurocêntricas. Como essas mesmas histórias podem contextualizar a disputa dos alemães por territórios com indígenas, principalmente os kaingang?

Camargo: Há pouca bibliografia sobre a presença negra e indígena, apenas material esparso na historiografia oficial. No caso dos indígenas, muitas das fontes são de folhetins, crônicas publicadas em jornais da época, em que a versão era sempre a do colonizador. Como os indígenas não tinham registro escrito, a oralidade se perdia. Eles eram tratados como selvagens, agressores. As mortes de indígenas eram naturalizadas, mas um imigrante morto era o fim do mundo. Confrontamos essa literatura com a pesquisa de novos autores da academia. 

·        O livro trata da necessidade de "resgatar os registros factuais". Por que, apesar desses registros, ainda resiste o mito de que não havia negros escravizados nas colônias alemãs?

Camargo: No Rio Grande do Sul, por muito tempo se disse que não se podia pesquisar a história do negro porque Rui Barbosa [abolicionista e ministro da Fazenda no primeiro governo da República] mandou queimar os registros da escravidão. Mas a academia começou a resgatar documentos cartoriais, de propriedade, morte, nascimento, casamento. O livro Registros da presença negra no Arquivo Histórico do RS (editora Oikos), coordenado por Paulo Moreira, professor da Unisinos, compila esses documentos públicos. O historiador Ricardo Charão mostra que em São Leopoldo havia pessoas de fala alemã de toda a Europa, e também de diversas partes da África, com muitos dialetos. 

·        O livro também derruba o mito de quem eram os alemães, porque na verdade a Alemanha como Estado unificado só existiu a partir de 1871.

Camargo: As pessoas que vieram para cá eram muito marginalizadas, agricultores que foram expulsos da terra dos empregadores na Europa, andarilhos, presidiários. Mas a história oficial é mitificada, exalta muito a virtude do povo alemão. 

Menezes: Tomamos cuidado para não minimizar a importância dos imigrantes, até porque nem tudo foi um mar de rosas para eles. Os alemães chegaram aqui com a promessa de um lote de terra, mas muitas vezes só iam tomar posse seis meses depois.  

·        Vocês dois são gaúchos, Dominga Menezes cresceu em São Leopoldo. Antes de pesquisarem sobre o tema, como aprenderam sobre a história da imigração alemã?

Menezes: Viemos de uma geração que pouco questionava. Eu tenho uma história peculiar. Em 1974, na ditadura, Ernesto Geisel esteve nas comemorações dos 150 anos da imigração alemã em São Leopoldo. Num palco próximo ao Rio dos Sinos, 120 meninas apresentaram uma coreografia para saudar o presidente, vestindo malhas das cores do Rio Grande do Sul. Eu estava lá, tinha 12 anos. Como sou parda, vestia amarelo. As mais claras vestiam verde e as negras, vermelho. É algo que hoje me chama muita atenção. A gente estava saudando a germanidade, enquanto ninguém se dava conta de que ali havia meninas negras, de origem indígena, com outros traços. 

Essas festividades alusivas à imigração alemã sempre passaram por cima da nossa história. Todo ano, quando é comemorado o aniversário da cidade, é escolhida uma corte, com rainhas e princesas. Elas sempre tinham que ter a pele clara. Só em 2005, com a criação da Secretaria de Cultura de São Leopoldo, houve espaço para que meninas negras também participassem do concurso. 

Camargo: Houve uma transformação com políticas públicas que tratam a cultura de forma mais inclusiva, e não como solenidade, entretenimento. 

·        Em entrevista ao livro, o teólogo e historiador negro Ricardo Charão afirma que a história da colonização alemã no Rio Grande do Sul ganhou relevância a partir das comemorações do centenário da imigração em 1924, que reforçaram a narrativa da ocupação de um espaço vazio pelos alemães. Como as comemorações do bicentenário podem ajudar a mudar essa visão? 

Camargo: Depois do centenário, a questão da germanidade ficou represada por um tempo, com a proibição de idiomas estrangeiros no governo de Getúlio Vargas. Quando isso acabou, houve uma revitalização da identidade germânica de que a própria política se aproveitou. 

No bicentenário, as comemorações têm forte marca da inclusão. O monumento "Diversidade 200 anos" vai ser instalado em São Leopoldo em 25 de julho. A programação seria mais ampla, foi reduzida por conta das enchentes, mas traz uma diversidade que há até bem pouco tempo a gente não via.

A gente está falando não só do passado, mas do presente, de pessoas que são invisibilizadas até hoje. Precisamos parar de dizer que São Leopoldo nasceu em 25 de julho de 1824 e nos reconciliar com a história. 

 

Fonte: DW Brasil

 

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