terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Isis Mustafa: Governo Lula escolhe o lado dos ricos de novo com novo ajuste fiscal

Às vésperas do Natal, o governo Lula escolhe cortar direitos da classe trabalhadora através do novo pacote de ajuste fiscal, aprovado no apagar das luzes dos trabalhos no Congresso Nacional. Com o objetivo de sinalizar positivamente para o capital financeiro, essa política econômica é encabeçada pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad e pretende economizar cerca de R$ 70 bilhões das receitas públicas nos próximos dois anos. 

A contenção de gastos é uma medida para frear a “grande preocupação” do mercado acerca da chamada responsabilidade fiscal, ou seja, o compromisso do estado brasileiro com a estabilidade da dívida pública. Mas ainda que os representantes do mercado sejam capazes de um alvoroço barulhento, falta clareza ao presidente e sua equipe sobre a verdadeira força de um governo: seu povo, a grande maioria dos explorados que confiaram seu voto com esperanças de viver dias melhores. 

<><> Medidas que retiram direitos do povo pobre 

O pacote aprovado institui um limite de 2,5% de aumento real no salário mínimo e afeta beneficiários de programas de proteção social. Por um lado, com o objetivo de gerar uma economia de R$109,8 bilhões entre 2025 e 2030, a limitação do salário mínimo vai impactar principalmente aposentados, pensionistas e beneficiados por programas sociais, reduzindo o poder de compra de milhões de brasileiros. É conveniente lembrar que o valor atual, de R$ 1.412,00, corresponde a apenas 20% do salário necessário para uma família brasileira sobreviver. Segundo o cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) o salário mínimo deveria ser de R$ 6.959,31 no mês de novembro deste ano. 

O pacote aprovado com o voto de 348 deputados contém outra medida absurda contra o povo: a revisão no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é pago a pessoas a partir de 65 anos ou com deficiência, com renda familiar per capita mensal menor que R$ 353,00. Para economizar R$ 6,4 bilhões, as alterações no programa vão excluir pessoas com grau de deficiência considerado leve e endurecer a avaliação dos beneficiários. 

A dona Maria José* é beneficiária do BPC, moradora de um bairro periférico de Boa Vista (RR), tem 92 anos e se tornou uma pessoa com deficiência visual ao longo da vida. Sem o auxílio, relata que é impossível custear os remédios. Já para Josy* de 53 anos, moradora da Zona Oeste de São Paulo(SP) que é atendida pelo BPC desde que descobriu a fibromialgia, o benefício foi a forma que encontrou para sair dos abrigos da prefeitura e viver com mais dignidade. É sobre os ombros dessas pessoas que recairá o ajuste fiscal. 

<><> Lobos em pele de cordeiro

Não demorou para os oportunistas e reacionários se posicionarem sobre o tema com grande cinismo: a ex-ministra de Bolsonaro e senadora Damares Alves (Republicanos), chegou a encenar que faria um protesto se o BPC sofresse algum corte. Também criticou com a mesma hipocrisia o golpista Nikolas Ferreira (PL), que destina grandes montantes de emendas parlamentares para a cidadezinha mineira onde seu tio é prefeito. Não nos enganam, pois seus partidos são responsáveis por todas as medidas anti-povo desde os governos Temer e Bolsonaro.

Ficamos com a coerência da deputada Natália Bonavides (PT-RN), base do governo, que manteve seu voto contrário à proposta nos dois turnos. Em nota, justificou seu posicionamento: “Votamos contra a PEC do corte de gastos e não apoiaremos propostas que diminuam o poder do governo de mudar a vida do nosso povo. O ‘mercado’ busca chantagear o governo com seu tom de sempre: retirar direitos dos mais pobres e manter privilégio dos de cima[…] Como não ganharam nas urnas sem golpe ou sem ajuda do juiz ladrão, agora estão apostando na chantagem e na sabotagem. A especulação financeira comete um crime contra a ordem econômica para fazer o governo não dar certo e para sequestrá-lo. Querem fazer com que a agenda que foi derrotada nas urnas seja adotada no nosso governo.” 

<><> Benefícios para os poderosos 

Aqueles que acham esses cortes são uma grande e necessária economia de dinheiro público fecham os olhos para os volumosos recursos que deixam de ser arrecadados em renúncias fiscais concedidas aos ricaços: em 2024 o montante em isenções fiscais que beneficiaram grandes empresas no Brasil foi de R$ 546 bilhões. Por exemplo, a Braskem, empresa responsável pela tragédia de Maceió, deixou de pagar R$ 2,27 bilhões entre janeiro e agosto deste ano.

Vale lembrar que esses grandes monopólios, bancos e multinacionais são os mesmos que financiaram a tentativa de golpe de Bolsonaro e dos militares no Brasil, que sustentam os governadores fascistas e se beneficiam das diárias políticas reacionárias aprovadas no Congresso Nacional. 

Não é possível “reconstruir o Brasil” adotando a mesma política econômica que nos submete ao capital estrangeiro e penaliza nosso povo há tantas décadas. Cada dia fica mais evidente que é a classe trabalhadora quem vai mostrar o caminho da construção de um país livre e soberano, desde já com mobilizações e greves contra os cortes nos direitos sociais de toda ordem. 

 

¨      Do que o mercado tem medo? Por Pedro Faria

A escalada do dólar e a pressão de agentes do mercado financeiro por mais ajustes fiscais dominou o noticiário da última semana. A moeda americana passou de R$6,20, um recorde nominal (ou seja, sem considerar a inflação). No noticiário da imprensa hereditária, tudo se resume à situação fiscal: o suposto excesso de gastos estaria causando incerteza nos mercados financeiros, expressa na subida do dólar. Cortes de gastos mais ousados são necessários, eles dizem.

Mas será que há esse risco todo? A jornalista Miriam Leitão – de credenciais liberais inquestionáveis – chama atenção para as previsões do próprio mercado: no começo do ano, o mercado previa que, ao fim de 2024, a dívida líquida do governo estaria em 64,25% do PIB e que o governo faria um déficit de 0,8% do PIB. No último boletim Focus, os mesmos agentes preveem que a dívida líquida fique em 63% do PIB e o déficit primário seja de 0,5% do PIB. Em outras palavras: o próprio mercado acha que o ano vai terminar melhor do que eles previam há onze meses.

Também cabe lembrar que o ajuste fiscal votado nesta semana pelo Congresso tem pouco a ver com os déficits de hoje. Sim, o objetivo é cortar gastos, mas o principal objetivo de fundo do ajuste é limitar gastos obrigatórios (previdência e salários do Judiciário, por exemplo) para que eles não diminuam o espaço limitado do arcabouço fiscal para gastos discricionários, como as obras do PAC e as bolsas de pesquisa científica. 

Se a questão fosse apenas a meta fiscal, Haddad poderia continuar fazendo o que já vem fazendo com muito sucesso: cobrar mais impostos dos ricos. Mas o arcabouço fiscal impõe cortes contra direitos dos trabalhadores (e alguns cortes de emendas e supersalários do Judiciário, que já estão sendo desidratados pelo Congresso). Mesmo a trajetória de longo-prazo dos gastos públicos poderia ser balanceada por uma tributação justa dos super-ricos, que hoje pagam muito poucos impostos.

Se o problema não é fiscal, qual é o problema? Primeiro, há um momento de grande incerteza mundial. A China está tendo dificuldade de cumprir sua meta de crescimento do PIB de 5% (que inveja…). Os Estados Unidos estão às vésperas do início do governo Trump, que ninguém sabe quanto vai cumprir de suas promessas de tarifas e outras insanidades. O resultado da incerteza é a valorização do dólar, com investidores se refugiando nos ativos mais seguros. O DXY, índice que mede a valorização do dólar contra a moeda de outros países ricos, está no maior valor desde outubro de 2022.

Internamente, nosso único problema real no momento é uma inflação acima da meta do Banco Central. Hoje, temos uma inflação de custos mais alta, causada pelo aumento do dólar e por problemas climáticos (excesso de seca e de chuva ao mesmo tempo). Essa inflação afeta mais os mais pobres que, pela primeira vez no governo Lula, voltaram a viver com inflação mais alta que os ricos.

Contudo, contra essa inflação os juros altos são ineficazes. A solução aqui seria o uso de estoques reguladores e política de preços setoriais, mas essas palavras são detestadas por dez em cada dez economistas do mercado financeiro. Além disso, o problema aqui é, na verdade, que a meta de 3% é muito baixa, mas essa conversa fica para outro momento. 

Além da inflação de custos mais alta, hoje temos uma inflação de demanda crescente. Essa inflação se expressa nos preços dos serviços, que também estão crescendo acima do limite de 4,5% da meta do Banco Central. Essa é a inflação “do bem”: ela tende a favorecer os mais pobres, pois aumento de preços de serviços, na prática, significa que o cabeleireiro, a diarista e o garçom estão ganhando mais. Tolerar um pouco dessa inflação nos permite aproveitar os frutos do crescimento de longo-prazo.

Fora o pequeno problema da inflação – que é pequeno mesmo, abaixo da média do Brasil desde a implementação do sistema de metas de inflação – o outro problema “real” é que a economia está indo muito bem. Por “economia” entenda-se o bem-estar econômico da maioria dos brasileiros, trabalhadores e trabalhadoras. O desemprego está na mínima histórica, a renda do trabalho está crescendo, as greves estão ganhando aumentos acima da inflação, a pobreza e a pobreza extrema estão no menor patamar em mais de dez anos.

No entanto, a economia que importa estar bem é um problema para o andar de cima. Não por que eles estão perdendo dinheiro, muito pelo contrário. Como escreveu o economista Michael Kalecki, o problema é que um mercado de trabalho sem trabalhadores desesperados ameaça o poder dos capitalistas e de seus representantes políticos. Ainda que o governo seja de frente ampla e disposto a conciliar até o que não deveria, o fato de um partido de centro-esquerda estar no poder e liderar uma economia pujante ameaça o controle dos capitalistas sobre a economia política. Essa combinação pode levar a uma reeleição em condições políticas mais confortáveis, por exemplo. 

E se existe uma coisa que os capitalistas gostam mais do que lucro, esta coisa é o controle do poder político. Um capitalista pode até tolerar prejuízos, mas ser forçado a vender e ganhar dinheiro é demais para eles.

 

¨         Tavares, Delfim e o papel de economistas na vida social brasileira

O ano de 2024 foi marcado pela perda de dois gigantes da economia brasileira: Maria da Conceição Tavares e Antônio Delfim Netto. Ambos desempenharam papéis fundamentais na vida social do país desde meados do século XX, com trajetórias acadêmicas e políticas de enorme relevância, não apenas influenciando de forma decisiva os rumos da economia nacional, como também contribuindo intensamente para sua compreensão.

Em termos acadêmicos, as contribuições de Tavares e Delfim se destacam pela vastidão e profundidade, sempre abrangendo os temas mais importantes da economia brasileira. A tese de professor livre-docente de 1959 de Delfim sobre a economia cafeeira permanece como referência incontornável para a historiografia econômica do país e se destaca em sua produção acadêmica, ao lado de outras análises sobre a economia agrícola, a relação entre planejamento e desenvolvimento econômico, e sobre a política monetária e o fenômeno inflacionário. A obra de Tavares é ainda mais vasta, abrangendo temas que vão desde o colapso do modelo primário exportador até a economia política internacional, passando por questões estruturais da industrialização brasileira em contexto periférico, pela análise da dinâmica cíclica da economia, pelo processo de financeirização e os desajustes macroeconômicos a partir do final da ditadura.

Para além da contribuição acadêmica própria, ambos tiveram voz ativa no debate público e foram fundamentais na produção e reprodução do conhecimento das ciências econômicas, ajudando a formar diversas gerações de economistas e sendo peças-chave no desenvolvimento institucional de alguns dos principais centros de ensino do país. Delfim foi, indiscutivelmente, personagem crucial na consolidação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo (FEA-USP), enquanto Tavares contribuiu decisivamente para a criação dos programas de pós-graduação em economia dos dois principais centros heterodoxos do país, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Se dentro dos muros da universidade a contribuição de tais economistas foi ímpar, fora deles o destaque também foi imensurável. Para além da vida acadêmica, Tavares trabalhou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, atual BNDES), ajudando no planejamento e execução do Plano de Metas, integrou os quadros da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), foi da executiva nacional do MDB na década de 1980 (contribuindo inclusive para os trabalhos da Constituinte) e, a partir da década de 1989, se filiou ao PT, partido pelo qual chegou a ser deputada federal entre 1995 e 1998.

Delfim Netto, por sua vez, foi o todo poderoso Ministro da Fazenda no período que ficaria conhecido como “Milagre Econômico”, caracterizado pelas maiores taxas de crescimento da história do país. Depois de um período como embaixador do Brasil na França, seria Ministro da Agricultura e do Planejamento nos últimos anos da ditadura. Posteriormente, Delfim buscaria se reinventar, sendo eleito para deputado federal diversas vezes e chegando a assessorar diferentes presidentes da Nova República, sendo um interlocutor importante de Lula.

O “Milagre”, inclusive, diz muito sobre nossos dois personagens. Delfim, que o capitaneou, foi elemento central da ditadura militar, tendo assinado o AI-5 e mantido a regra de correção salarial herdada do governo Castelo Branco. Esta implicava clara tendência de queda dos salários reais (o chamado “arrocho salarial”) e, consequentemente, em um forte processo de concentração de renda. Tavares, por outro lado, apesar se extremamente crítica a tal política e suas consequências sociais, não deixou que isso contaminasse sua análise do processo, e no clássico “Além da estagnação”, escrito com José Serra em 1971, mostrou como a concentração de renda não atrapalharia o crescimento econômico do período (como afirmava a tese estagnacionista de Celso Furtado de meados da década de 1960), mas poderia ser funcional à dinâmica capitalista.

Desse modo, se a proeminência acadêmica e na vida pública é um elemento comum a ambos, é fundamental destacar suas diferenças. Delfim, envolvido em diversas denúncias de corrupção, foi partícipe central e contribuiu ativamente para a ditadura em seu período mais autoritário, adotando políticas que claramente favoreciam a classe capitalista e os estratos mais abastados da sociedade. Por outro lado, Tavares – que chegou a ser presa por esta mesma ditadura – sempre defendeu os interesses da classe trabalhadora, e energicamente combateu a estratégia de Delfim que, no limite, é uma metonímia do sistema capitalista. No “Milagre” – como no modo de produção capitalista em geral – a economia cresceu de forma vigorosa, mas os frutos de tal crescimento foram apropriados de forma extremamente (e crescentemente) desigual. O bolo cresceu muito, mas sua divisão foi mesquinha.

Assim, as trajetórias de Tavares e Delfim evidenciam a importância fundamental de economistas na sociedade, no sentido de desenvolver as ciências econômicas, e também no de utilizá-las em favor do desenvolvimento econômico brasileiro em diferentes direções possíveis. Neste sentido o legado de Delfim Netto deve ser reconhecido e estudado de forma crítica; o de Maria da Conceição Tavares celebrado e levado adiante.

 

Fonte: Opera Mundi/Le Monde

 

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