quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Desconfiança nos brancos e ameaças fazem indígenas Ka’apor resistirem com suas próprias regras

Rubi Ka’apor tem 21 anos e está aprendendo a pilotar drone. Ele quer ser engenheiro e trabalhar com mapeamento para ajudar na defesa de territórios, buscando identificar, por exemplo, focos de incêndio. Territórios como o que Rubi vive, a terra indígena Alto Turiaçu, no Maranhão.  

Ali, o drone faz parte do cotidiano dos Ka’apor, assim como o cachimbo de barro de Inês da Conceição, de 46 anos, e o fogo feito pelos jovens com uma madeira chamada tatay.  Os Ka’apor vivem a ancestralidade e suas tradições ao mesmo tempo que reforçam sua autonomia para decidir como proteger suas terras e seu modo de vida. Mas nem sempre foi assim. 

Essa autonomia começou a se fortalecer a partir de 2013, após muitas decepções com o “projeto saracura”, como eles chamam as políticas dos homens brancos. A revolta se fortaleceu dois anos depois, quando Eusébio Ka’apor foi assassinado em uma emboscada, e o crime ficou impune.

A partir daí, especialmente na aldeia Ararorenda, os Ka’apor começaram a implementar a chamada autogestão, na qual desenvolveram uma estrutura de governança e leis próprias.

Para o tuxa [cacique] Itahu Ka’apor, a autogestão é o pilar fundamental da vida em comunidade do seu povo e reflete um compromisso profundo com a autonomia, a preservação de práticas ancestrais e a reafirmação dos direitos indígenas. 

 “Nós somos povo Ka’apor, nós temos outra cultura, outra organização e quem manda é indígena. Nós temos acordo de convivência, nós temos lei, nós temos guarda Ka’apor, nós temos justiça comunitária”, disse Itahu. 

A independência e autogestão dos Ka’apor não significa que não haja luta por direitos nas esferas governamentais. Itahu destaca que eles buscam seus direitos em termos de saúde, educação e justiça, mas sem depender totalmente das instituições estatais. A autogestão, para eles, é sinônimo de autonomia, onde a comunidade toma decisões e se organiza sem intermediários.

Exemplo disso foi uma decisão tomada em agosto deste ano, durante o 4º Encontro Integrado de Autogoverno na comunidade Ararorenda, onde o Tuxa Ta Pame – como é conhecido o conselho de gestão Ka’apor – decidiu ignorar as eleições municipais, assim como decidiram fazer com outras eleições também. 

“Não podemos entregar o nosso poder, nossa arma para o inimigo. Não acreditamos nas eleições porque nosso projeto de vida não cabe nas urnas. Se votar mudasse nossa vida, não teria invasão do nosso território, [nem] ameaças, perseguições, mortes”, dizia a nota assinada pelo conselho. 

Segundo o antropólogo José Mendes, que trabalha junto aos Ka’apor há mais de 10 anos, a situação da etnia é agravada pela conivência de agentes do estado com agressores como madeireiros e garimpeiros ilegais. “O estado não é visto como um garantidor de direitos, mas como aliado dos agressores. Isso nos coloca em uma situação de permanente pressão psicológica”, afirma.

As ações de fortalecimento da autonomia de governança do território, promovidas pelo conselho Tuxa Ta Pa Me, acabam enfrentando oposição de grupos indígenas dissidentes, que têm o apoio de empresas e políticos locais. “O que incomoda é a construção de um projeto autônomo, que pensa no bem-viver e na preservação da floresta. Isso desestabiliza interesses econômicos e coloniais”, destaca o antropólogo.

Além da autogestão, outro pilar dos Ka’apor para reafirmar sua autonomia é a agrofloresta, prática na qual são cultivados alimentos diversos em meio à floresta, ajudando a preservá-la. 

 “Muito tempo atrás, existia a agrofloresta. Só que o branco chegou e acabou com ela”, afirmou Itahu. Os indígenas veem esse sistema de plantio como uma retomada essencial das práticas agrícolas ancestrais que foram interrompidas pela chegada dos não-indígenas e consideram que a monocultura de mandioca imposta pelos colonizadores não representa a verdadeira diversidade de suas terras. No Alto Turiaçu, hoje eles plantam banana, feijão, açaí, abacaxi, pequi, mandioca branca, manga, entre outros cultivos.  

·        A resistência entre o fogo e os invasores

No fim de outubro deste ano, estava marcado um evento chamado “Oca de Saberes”, com aulas e atividades para fortalecer a biodiversidade, como troca de sementes. O agricultor Marcelo Rodrigues de Sousa, de 39 anos, que foi convidado para apresentar a atividade “Frente de Trabalho Cuidado com a Terra e Território”, uma ação focada na preservação da biodiversidade. 

O agricultor busca reconectar as pessoas com a terra por meio de práticas que promovem a soberania alimentar. “A troca de sementes entre as comunidades fortalece a resistência dos povos tradicionais, pois nos conecta ao passado e ao futuro, criando uma rede de saberes que garante a nossa sobrevivência”, diz.

Sousa criticou a dependência de monoculturas promovidas pelo agronegócio. “Não podemos aceitar viver à base de três ou quatro tipos de alimentos produzidos para nos tornar dependentes”, afirmou. 

Ele também apontou o fortalecimento da agricultura familiar como uma solução para driblar esse problema: “Plantar para comer, e não só para vender, é uma forma de garantir a segurança alimentar com qualidade”, disse, acrescentando que o agronegócio também destrói espécies nativas locais, como o pequi e o açaí. 

Mas as aulas foram interrompidas pelos incêndios. Estudantes indígenas foram obrigados a parar suas atividades para combater as chamas. Sousa foi combater o fogo junto aos Ka’apor. 

Em novembro, o Intercept Brasil mostrou como, diante da falta de ação dos órgãos do governo, os Ka’apor precisaram combater o fogo por conta própria, de maneira precária, tendo de usar até regador de jardim para conter as chamas. Após o caso vir à tona, o Prevfogo finalmente foi até à área de proteção Ararorenda. 

Na terra dos Ka’apor, as ameaças vêm de todos os lados. 

Além dos incêndios – muitos provocados –,  grupos criminosos entram na terra indígena para derrubar árvores e roubar madeira, garimpeiros que se instalaram em áreas vizinhas (especialmente após a tentativa de se aprovar uma lei que liberava a mineração em terras indígenas, durante o governo Bolsonaro), além de conflitos fundiários em todo o entorno do Alto Turiaçu.  

O próprio Itahu vem sendo uma voz ativa na denúncia dessas violações socioambientais em seu território e em toda a região, o que fez com que ele sofresse ameaças graves e, por isso, teve de entrar para o programa de proteção. 

Em maio de 2022, o tuxa Sarapó Ka’apor foi encontrado morto, sangrando pela boca. Apesar de o crime nunca ter sido solucionado, a suspeita é a de que ele tenha sido envenenado ao consumir peixes tambaquis doados por brancos. Desde a década de 1980, quando a etnia teve suas terras demarcadas, houve outros casos de mortes e desaparecimentos de indígenas  que não foram sequer investigados.  

As invasões de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros que tentam se apropriar do território indígena do Alto Turiaçu também são constantes. Durante nossa estada no local, flagramos uma cerca de uma fazenda vizinha se sobrepondo ao território, que precisou ser retirada para que os indígenas pudessem fazer o trabalho de vigilância com drone na busca por focos de incêndio.

O biólogo Marcos Pereira,  que desenvolve com os Ka’apor um mapeamento da região para que os próprios indígenas possam fazer a gestão e proteção territorial, explicou que esses marcos encontrados em fazendas e assentamentos são marcos geodésicos, implantado por um profissional credenciado pelo Incra, usados para delimitar a fronteira entre a terra indígena e o assentamento federal vizinho. 

Esse tipo de marco serve como ponto de referência físico e preciso para identificar os limites legais de diferentes territórios. “Esse marco é essencial para sabermos onde termina o assentamento e começa a terra indígena. Durante o mapeamento participativo, identificamos que muitos colonos avançaram suas cercas e pastos para dentro do território indígena, desrespeitando esses limites. A geolocalização nos ajuda a confirmar essas invasões e a garantir que os limites sejam respeitados”.

·        Novos aprendizados em prol da soberania 

A violência, as ameaças e a dor pela impunidade seguem cercando os Ka’apor. Dois anos depois de sua morte, os filhos de Sarapó, Jandai Putyr, de 20 anos e Janay ka’apor, de 29 anos, ainda buscam por respostas sobre sua morte, enquanto vivem a vida simples que o pai desejou para ambos. Janay quer ser médico.

Os desejos e resistências seguem movendo os Ka’apor, como Rubi e outros jovens da aldeia, que querem aprender além dos saberes ancestrais, trazer novos aprendizados para o território e avançar ainda mais na soberania e autogestão. 

Ximboel Ka’apor, de 23 anos, também está aprendendo a ser operador de drone. Ele está no Ensino Médio e sonha em ser  professor para ensinar os mais novos. 

Sonhos individuais de uma juventude que já consegue enxergar a autonomia de seu povo aliando o conhecimento do ensino superior aos saberes ancestrais, graças aos sacrifícios dos mais velhos que lutam ou lutaram para preservar o passado Ka’apor para que possa haver futuro.

 

Fonte: Por João Paulo Guimarães, em The Intercept

 

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