Rubens Valente: Braga Netto é sintoma do golpismo latente nas
Forças Armadas
Identificar
e punir os militares responsáveis pelo plano de golpe de 2022 é obviamente
necessário e bem-vindo. Mas será um grande risco para a democracia confiar no
sistema policial-judicial como a única resposta possível para um problema
político profundo.
É
autoengano ficar reverberando a fabulação do ministro da Defesa, José Múcio.
Segundo ele – vale lembrar, um político de direita que durante 13 anos militou
na Arena, o partido que dava suporte aos descalabros da ditadura civil-militar
–, trata-se apenas de uma questão relativa a pessoas, que ele chama de “CPFs”,
e não à instituição Forças Armadas, o “CNPJ”.
O
problema de seguir acreditando nesse argumento pedestre é fechar os olhos para
os sinais que estão por toda parte, é deixar em banho-maria o golpismo latente
entre os militares até que, um belo dia, uma nova operação “Punhal Verde e
Amarelo” de fato se torne realidade. Aí já seria tarde demais.
Parece
que não ocorre a Múcio que instituições são feitas por pessoas, aliás
extremamente poderosas no caso investigado pela PF-STF, como generais,
ex-ministros e um ex-comandante da Marinha. No Brasil de 2024, com todas as
informações que temos à disposição, a ninguém mais é dada a irresponsabilidade
de ser ingênuo. O buraco é bem mais embaixo.
Estudiosos
do tema militar têm vindo a público alertar que muita coisa precisa ser
alterada no ambiente das Forças Armadas para, se não conseguir extinguir, ao
menos dirimir as aspirações golpistas. Autora de um livro sobre a formação de
militares, a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ana
Amélia Penido pontuou, em entrevista à Agência Brasil em novembro último, que a
educação militar, incluindo seus currículos, deveria ser toda ela subordinada
ao Ministério da Educação, o que não acontece hoje.
“No
Brasil, a gente tem quatro sistemas de ensino. Um do Exército, um da Marinha,
um da Aeronáutica e um civil. Somente este último é subordinado ao MEC. Essa
autonomia foi garantida na Constituição Federal e referendada na Lei de
Diretriz e Bases da Educação Nacional. Se não me engano, o [historiador] José
Murilo de Carvalho usava a expressão ‘uma nação dentro da nação’ para enfatizar
que os militares se organizam autonomamente.”
A
diferenciação entre ensino civil e ensino militar dá margem a “um sentimento de
superioridade entre os militares”, ou seja, à noção de que eles são “melhores
do que os civis”. Esticando o raciocínio, eles se julgam mais capazes de
conduzir os destinos do país, ainda que precisem, de vez em quando, dar um
golpe de Estado chamado eufemisticamente de “intervenção”.
Exagero
dos pesquisadores? Ora, basta assistir ao vídeo recentemente produzido e
lançado pela Marinha que ridiculariza a vida dos brasileiros civis, mostrados
em festas, bebedeiras e passeios em contraponto à suposta vida dura dos
fardados. O vídeo é sobretudo uma elaborada fake news. Edita a realidade para
compor uma narrativa falsa. Se o vídeo mostrasse uma trabalhadora pegando de
madrugada um ônibus superlotado nas periferias das grandes cidades para labutar
o dia todo em troca de um salário-mínimo, quem tem privilégios e quem não tem?
O
descontrole do poder civil sobre a formação dos militares é tão grande que o
Ministério Público Federal (MPF) recentemente teve que ir ao Judiciário para
pedir que uma brigada do Exército em Juiz de Fora (MG) fosse obrigada a receber
aulas sobre as violações aos direitos humanos cometidos pela ditadura civil-militar
ao longo de 21 anos. A brigada, aliás, se chama “31 de Março”, em homenagem ao
golpe que ela ajudou a consumar, com a sublevação dos seus soldados em 1964 por
ordem do general Olímpio Mourão Filho (1900-1972).
Pois
bem. Não deixa de ser espantoso que, em novembro último, a União, ou seja, o
representante legal do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tenha
afirmado ao Judiciário que não vai alterar o nome da brigada, que já existe
disciplina de direitos humanos na grade curricular e que se opõe à criação de
um “espaço de memória” no local, um outro pedido do MPF.
Esse
pequeno exemplo mostra como o caminho que leva ao golpismo de um general Walter
Braga Netto é longo e tortuoso, começa nas hostes militares, mas passa pelos
governos civis que se apresentam como bem-intencionados.
Passa
também pelo Judiciário e pelo STF. Agora em 2020, o então presidente do
tribunal Dias Toffoli, que já chamou o golpe de 1964 de “movimento”, derrubou
uma ordem judicial que determinava que o Ministério da Defesa de Bolsonaro
tirasse do ar uma nota que chamava o golpe cinicamente de “um marco para a
democracia brasileira”. Toffoli alegou “indevida invasão” do Judiciário no
Executivo.
A
recusa reiterada das Forças Armadas em revirar o seu passado de forma crítica
também está nas raízes do golpismo. Como consequência, veio a confiança na
impunidade que grassa desde o fim da ditadura. Vamos lembrar o caso do
ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, nunca punido por
participar de um ato político ao lado de Bolsonaro.
No
final do mês passado, em seu podcast “Oi, gente”, a historiadora e antropóloga
Lilia Schwarcz lembrou que também “é preciso que os militares não sejam
julgados só por militares”.
“Esse
[inquérito da PF no STF] é um exemplo que as instituições brasileiras estão
dando agora, quase no final de 2024. São as instituições republicanas que vão
julgar esses contingentes militares. Eu não estou dizendo aqui que todos os
militares estão envolvidos, não estão, como eu comecei dizendo, mas é
impressionante a quantidade de militares que agem dessa maneira, que só pode
ser considerada golpista.”
Também
é necessário um esforço sistemático dos órgãos civis de fiscalização e controle
da União contra a recusa dos militares em agir de forma positiva e moderna no tema
da transparência pública.
Na
hora de proteger suas atividades, é comum ver os órgãos militares lançando mão
da carta da “soberania nacional”, argumento vago que pode ser utilizado em tudo
que seja secreto. A banalização do segredo é um outro tipo de ataque à
democracia.
Conforme
recentemente pontuaram dois especialistas, Maria Vitória Ramos e Bruno
Morassutti, cofundadores da Fiquem Sabendo, a opacidade institucional
“fortalece a indisciplina e a percepção de que tudo é possível”.
“Todos
os anos protocolamos pela Fiquem Sabendo milhares de pedidos de acesso à
informação para todos os poderes e instâncias governamentais. Quando esses
pedidos são direcionados às Forças e ao Ministério da Defesa, tudo fica mais
difícil. Mais de 65% das nossas solicitações de informação para esses órgãos
entre 2023 e 2024 foram negadas”, escreveram na Folha de S.Paulo.
Na
Agência Pública muitas vezes enfrentamos o sigilo indiscriminado em órgãos
comandados por militares. Um dos casos mais emblemáticos, aliás, envolveu o
próprio Braga Netto. Após a rejeição, repetidas vezes, da liberação dos
documentos, foi preciso que o governo Bolsonaro terminasse para enfim termos
acesso às atas sigilosas de um comitê formado por 26 órgãos da União sobre
assunto extensamente público, de notável interesse público, nada menos que a
pandemia da covid-19.
O
acesso aos papéis antes negado por Braga Netto deu origem a uma série de
reportagens sobre documentos aos quais nem a CPI da Covid havia tido acesso. Em
um dos textos, foi revelado que o general pessoalmente orientou os integrantes
do comitê a não criar “pânico na população” sobre a mortalidade provocada pela
covid-19, em linha com o negacionismo científico expressado em diversos
discursos de Bolsonaro.
Os
militares têm uma dificuldade extrema em lidar com a liberdade de jornalistas
independentes críticos ao papel das Forças Armadas. Eles são hábeis na
comunicação “em off” com jornalistas de sua confiança, mas extremamente
refratários quando encontram perguntas incômodas. Em junho de 2022, este
jornalista da Pública teve a tela do seu computador fotografada por um militar
depois que fez perguntas indigestas a um comandante da região.
A
Controladoria-Geral da União (CGU) deveria estar à frente desse amplo processo
de abrir as janelas das Forças Armadas para a luz do sol. Contudo, muitas vezes
o órgão capitula, concorda com argumentos frágeis e, nesse sentido, empodera
ainda mais os militares que operam para obter menos transparência no que fazem.
Caso
já clássico é o Batalhão das Forças Especiais, em Goiânia, que segue firme e
forte na sua rotina toda enigmática, secreta e misteriosa. Na Alemanha, quando
foi detectada uma radicalização de militares à direita, o governo mandou
extinguir um comando inteiro de suas forças especiais.
No
Brasil, as mudanças aqui pontuadas passariam, sobretudo, pelo comando do
Ministério da Defesa. Contudo, a estratégia de José Múcio tem sido negar o
espírito golpista em vez de enfrentá-lo até onde seja possível. O preço a ser
pago por esse equívoco, vamos chamar assim, pode ser terrivelmente alto.
Não
é um comportamento exclusivo de Múcio. Em conversas, nos últimos anos, com
gente bem informada em Brasília, eu ficava surpreso com o tipo de negativa que
aparecia: “o Exército não tem como dar um golpe”, “os EUA não autorizam um
golpe”, “o Bolsonaro não consegue liderar um golpe”. Esses argumentos
desconsideram um dado fundamental presente em vários golpes do passado: uma
insurreição armada que começa pequena pode se espalhar como fogo no milharal,
tornando-se incontrolável.
Em
2022, o país escapou, mas foi por um triz. As autoridades em tese responsáveis
por frear o golpismo dentro das Forças Armadas podem viver esse perigo
novamente: basta cruzar os braços, que cruzados já estão.
¨ Síndrome do pato: a prisão de Braga
Netto. Por Lier Pires Ferreira e Renata Medeiros de Araújo
Você
já viu um pato nadando? Pois é, quem vê a leveza desta ave sobre a superfície
de um lago não imagina que suas patas estão em um movimento desordenado e
furioso para manter o corpo em equilíbrio. O contraste entre uma falsa
aparência de sucesso e os conflitos imanentes à realidade caracterizam a
“síndrome do pato”. É o que acontece historicamente com a participação dos
militares na vida política brasileira.
Desde
o fim do Império, quando proclamaram uma República sem povo, os militares se
colocaram como fiadores do novo regime. Nesta condição, não se furtaram a
assumir o protagonismo da cena política sempre que acreditaram que os civis
falhavam em conduzir a nação. Por isso, ao longo do século XX, houve vários
golpes de Estado, alguns fracassados, como a intentona liderada pelo coronel
Jurandir Mamede, em 1955, para impedir a posse de JK, outros bem-sucedidos,
como o golpe militar de 1964.
Em
qualquer circunstância, todavia, os militares tentam projetar a imagem de que
atuam em benefício da nação, sacrificando seus interesses pessoais, quando não
a própria vida. Com seus uniformes alinhados, medalhas e sapatos lustrados,
procuram transmitir uma imagem de seriedade, austeridade e honestidade que
muitas vezes não condiz com a realidade.
O
caso Braga Netto é lapidar. Aliado de primeira hora do ex-presidente Jair
Bolsonaro e seu candidato a vice na chapa derrotada por Lula e Alckmin em 2022,
o general da reserva foi preso neste sábado, 14/12, pela Polícia Federal,
acusado de ser um dos articuladores do golpe de Estado que pretendia impedir a
posse de Lula, matar o presidente eleito, seu vice e também o ministro
Alexandre de Moraes, do STF.
Aos
67 anos, Braga Netto era uma das figuras mais reluzentes do Exército. Mas sua
imagem começou a ruir quando comandou a malfadada intervenção federal na
segurança pública do Rio de Janeiro, acusado de participar de fraudes na compra
de equipamentos de segurança. Posteriormente, junto com outros militares de
alta patente, como o general Luiz Eduardo Ramos, foi acusado de receber
proventos ilegais de quase um milhão de reais em plena pandemia de Covid-19,
quando, como ministro da Casa Civil, também teve uma atuação desastrosa. Mas
agora o buraco é mais em baixo.
Golpe
de Estado é um crime contra a ordem democrática. Mesmo estando na reserva,
Braga Netto tem sua imagem plasmada nas Forças Armadas, em particular no
Exército, de modo que sua atuação política não está dissociada de sua carreira
militar. Portanto, sua intentona golpista é mais uma lamentável ação militar
contra a democracia brasileira, em especial naquilo que envolve oficiais de
alta patente, muitos dos quais então na ativa, como o almirante Almir Garnier,
que ao tempo comandava a Marinha.
Lugar
de militar é no quartel! Sempre que buscam um protagonismo indevido, misturando
vida militar e participação política, terreno que desconhecem, esses maus
militares desonram suas forças e prejudicam o país. A prisão de Braga Netto é
mais uma reação das instituições democráticas contra a lamentável tradição
golpista que perpassa setores das Forças Armadas, mesmo após a
redemocratização.
Como
os patos de lagoa, sob a aparência de tranquilidade e sucesso, a participação
dos militares na política é um show de horrores. A prisão Braga Netto, o
primeiro general de quatro estrelas a ir para o xilindró, talvez indique que o
golpe de 1964 de fato chegou ao fim. Pelo curso das investigações da PF,
inclusive, parece razoável supor que outros oficiais de alta patente poderão
também amargar um período na cadeia. A pergunta do milhão é saber o quanto a
prisão de Braga Netto irá impactar Bolsonaro e sua família. Mas isso ainda é
uma incógnita. O certo que o ex-capitão já não dorme com a mesma tranquilidade.
Visivelmente, o cerco está se fechando…
Fonte: JB
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