sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Reviravolta na Síria, novas agressões israelenses e Ucrânia: os impactos dos conflitos em 2024

Enquanto a atuação de potências ocidentais incendeia ainda mais o barril de pólvora que afeta tanto as populações do Oriente Médio, a queda do governo de Bashar al-Assad na Síria nos últimos dias do ano deixa a situação ainda mais incerta na região. Confira a análise de especialistas ao podcast Mundioka na retrospectiva de 2024.

Aos 45 minutos do segundo tempo, uma verdadeira reviravolta na Síria, que vive uma guerra civil há quase 14 anos, derrubou o governo de Bashar al-Assad, que precisou sair às pressas do país. Aliada à continuidade dos hostilidades de Israel na Faixa de Gaza, a situação deixa o futuro do Oriente Médio ainda mais incerto em um ano marcado por intensas dificuldades na região e até o risco de uma guerra total entre duas das principais potências da região: Irã e Israel.

Para o graduado em ciência política, consultor autônomo em assuntos geopolíticos e roteirista do canal História Islâmica, Ali Abdul Hakam, o ex-presidente sírio não soube aproveitar a aproximação do país com o Irã, a Liga Árabe e a Rússia para melhorar a situação econômica do fragilizado país. Isso abriu espaço para a oposição armada tomar o poder.

"Basicamente, Assad foi arrastando a situação com a barriga e o que ocorreu foi uma dilapidação total do Estado sírio, principalmente das tropas. Além disso, se desenhou uma divisão militar interna. A Força Tiger, liderada pelo General Hassan, tendia a preferir os russos, enquanto a Guarda Republicana, liderada pelo irmão do Bashar al-Assad, o Maher al-Assad, preferiu os iranianos. O presidente alienou totalmente a força Tiger do processo de tomada de decisão na Síria, e isso gerou uma divisão operacional, tática e estratégica, que tornou o exército incapaz de operar", explica ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil.

Outro ponto crucial que afetou drasticamente o poder de reação das Forças Armadas da Síria foi a baixa remuneração dos soldados, que, conforme o especialista, não ultrapassa US$ 10 (R$ 61,80) por mês.

"Isso fez com que a maior parte deles, os mais competentes, fossem para o comércio, para a agricultura ou até as máfias locais, porque a Síria se tornou um grande entreposto de contrabando, tanto de drogas quanto de armas. E, assim, a situação foi se dilapidando."

O especialista lembra ainda que existem diversos grupos armados na Síria, tanto ligados a organizações extremistas quanto moderados e nacionalistas.

"Mas o que está se desenhando é que vai se coordenar um novo pacto social na Síria. Até agora não houve violência sectária nos moldes do que ocorreu há dez anos. Na verdade, o que está ocorrendo é muita violência política contra algumas figuras do antigo regime e tal, mas violência sectária, perseguição a minorias ainda não aconteceu. Eu creio que isso ocorre porque Turquia e Rússia estão ajudando a costurar a situação", argumentou.

·        Qual o motivo do conflito de Gaza?

Em outra área do Oriente Médio, há mais de um ano, Israel segue com intensos ataques por ar e terra na Faixa de Gaza, território onde vivem mais de dois milhões de palestinos e praticamente toda a infraestrutura já foi destruída. Por diversas vezes, a Organização das Nações Unidas (ONU) classificou a situação no enclave como "apocalíptica".

Ali Abdul Hakam pontua que Israel tem mostrado que a estratégia na região é "matar o maior número possível de civis para criar um pavor psicológico e impedir a insurgência de atuar.

"Vimos o retorno de várias doenças em Gaza, colonos israelenses impedindo a chegada de ajuda humanitária. Porém, do ponto de vista tático do conflito, o que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fez foi um tiro no pé. Não é possível operar tanques e fazer movimentações de brigadas em um cenário onde se destruiu toda a infraestrutura. Israel, assim como os Estados Unidos fizeram no Vietnã, deu trincheiras para seus inimigos. É muito fácil armar emboscada e sair pelas rotas de fuga, no caso do Hamas e os outros 17 grupos insurgentes que existem dentro da Faixa de Gaza. E é por isso que estamos vendo essa guerra se arrastando", analisa.

Além disso, o ano no Oriente Médio também foi marcado pelo aumento das tensões entre Israel e Irã, duas das principais potências militares da região.

"O último ataque iraniano danificou a base aérea de Netzarim, onde ficam os F-35 israelenses, e foi bem forte, tanto que se vocês verem a filmagem do Benjamin Netanyahu logo depois, ele está com as mãos tremendo, porque não esperava um ataque com mísseis hipersônicos desta monta. Mas Israel atacou, a informação que eu tenho é que Israel atingiu 20 alvos dentro do Irã, não foi um ataque muito pesado, porque o Irã é gigantesco. Com 20 alvos você não acaba nem com a capacidade de produzir mísseis e drones do Irã nem com a capacidade, nem com as defesas antiaéreas do Irã", resume.

·        Reconfiguração do front na Ucrânia

Já na Europa, o ano foi de intensas reconfigurações nos campos de batalha que consolidaram ainda mais as derrotas sucessivas de Kiev no conflito ucraniano. É o que apontou ao podcast Mundioka o analista militar e autor do livro "Guerra na Ucrânia: análises e perspectivas: o conflito militar que está mudando a geopolítica mundial", Rodolfo Laterza. Para piorar a situação ucraniana, o regime de Vladimir Zelensky ainda contabiliza uma fracassada tentativa de invasão contra a região de Kursk, na Rússia, onde estimativas apontam que o país perdeu mais de 40 mil soldados.

"Toda essa dinâmica explica os substanciais avanços russos neste ano, além de um acúmulo de baixas ucranianas que fez com que as melhores unidades fossem prejudicadas, sacrificadas, degradadas e depreciadas. Embora a Ucrânia ainda tenha massa crítica humana para mobilizar, sabemos que o recrutamento compulsório e forçado está levando cidadãos absolutamente despreparados, inaptos para o combate, sem o devido treinamento para a linha de frente, e a taxa de sobrevida tem sido muito diminuta", explica.

Já o ataque que terminou neste mês com a morte do tenente-general Igor Kirillov, chefe das Tropas de Defesa Radiológica, Química e Biológica das Forças Armadas da Rússia, reforça mais uma vez uma atuação pelo regime de Kiev típica de um ato terrorista, acrescenta o especialista.

"E também teria sido impossível que o serviço secreto da Ucrânia pudesse planejar e executar um ataque com tamanha precisão sem um suporte de coordenação, controle e financiamento de outro serviço estrangeiro. É insustentável a Ucrânia com seu serviço de segurança realizar esse atentado isoladamente", diz.

O analista militar lembra ainda que, entre os países aliados da Ucrânia, as insatisfações da sociedade com o financiamento do conflito são cada vez maiores.

"Temos uma situação também na Bulgária, que parcela da população está cansada desse apoio. Temos a vitória de Robert Fico na Eslováquia, crítico do apoio da União Europeia à Ucrânia. A manutenção e consolidação de Viktor Orbán na Hungria, que é um crítico voraz ao apoio à guerra na Ucrânia, que tenta promover iniciativas de paz, porém é criticado. Porém, temos situações também contraditórias, como a Finlândia, que sofreu um esvaziamento econômico com a adesão à OTAN, porém as elites políticas estão cada vez mais engajadas em permitir bases da OTAN e exercícios militares próximos à Federação da Rússia, usando a Finlândia".

Diante da derrota para o republicano Donald Trump na disputa à Casa Branca, o presidente Joe Biden, principal fiador do regime de Zelensky no conflito, também tem aproveitado o final do governo para "fazer de tudo para manter e até aumentar o fluxo financeiro para a Ucrânia". O objetivo, segundo Laterza, é prejudicar ao máximo qualquer tentativa de negociação entre a futura gestão Trump e a Rússia na busca pela paz na região.

"Os Estados Unidos têm uma profunda influência no seu establishment institucional, que compõe o Departamento de Estado, Departamento de Defesa, o Pentágono, que muitas vezes molda a política norte-americana, em detrimento de a política americana moldar essas instituições. Portanto é muito difícil você prever que uma simples mudança de governo vá gerar uma reconfiguração", finaliza.

¨      Forças leais a Assad matam agentes do novo regime na Síria

Um dia após ser alvo de emboscada e perder 14 agentes, as forças de segurança da Síria deflagraram uma operação nesta quinta-feira (26/12) para "neutralizar um número determinado" de homens armados leais ao  ditador deposto Bashar al-Assad, informou a Sana, agência de notícias estatal do país.

O confronto de quarta-feira entre as forças de segurança e "milícias" ocorreu na província de Tartus, segundo observadores e o novo ministério sírio do Interior, durante operação para prisão de um ex-funcionário de Assad acusado de cometer crimes relacionados à prisão de Sednaya.

O oficial teria, segundo o Observatório Sírio para Direitos Humanos, entidade com sede no Reino Unido, "emitido penas de morte e julgamentos arbitrários contra dezenas de prisioneiros". Apesar da emboscada, diversas prisões foram feitas.

Os agentes de segurança mortos pertenciam ao grupo islamista Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que liderou a ofensiva rebelde que pôs fim ao regime de Assad no início deste mês.

Em postagem na rede social Telegram, o novo ministro do Interior, Mohammed Abdel Rahman, prometeu reprimir duramente "qualquer um que ouse prejudicar a segurança da Síria ou pôr em risco a vida de seus cidadãos".

<><> Alauitas protestam

Milhares de muçulmanos alauitas, grupo étnico-religioso minoritário do qual o ex-presidente faz parte, saíram às ruas da Síria para protestar após o surgimento de um vídeo nas redes sociais que supostamente comprovaria a vilipendiação de um santuário religioso. A autenticidade do material não pôde ser comprovada de forma independente.

Autoridades sírias, que têm se esforçado para convencer a comunidade internacional de que estão comprometidos com uma transição pacífica de poder e com o respeito às minorias, insistem que o vídeo que despertou a ira dos manifestantes é antigo.

Os protestos também são motivados pela revolta com relatos de que alauitas teriam sido alvo de violência recentemente.

Essas manifestações aconteceram em cidades ao longo da costa do Mediterrâneo, que concentram a maioria dos alauitas – uma delas era Tartus, palco do confronto da noite desta quarta-feira com as forças de segurança do novo regime.

Em Homs, no centro do país, o Observatório Sírio afirma que uma pessoa foi morta e outras cinco foram feridas após "forças de segurança (...) abrirem fogo para dispersar" a multidão.

Os alauitas perfazem cerca de 9% da população síria, segundo o especialista em Oriente Médio Fabrice Balanche, da Universidade Lumiere Lyon 2, na França.

"Os alauitas eram bastante próximos do regime de Assad. A associação deles ao regime pode torná-los alvo de uma revanche coletiva – principalmente porque islamistas os consideram hereges", disse o estudioso à agência de notícias AFP.

¨      Ataques israelenses em aeroporto no Iêmen deixam mortos e feridos

Ataques da Força Aérea israelense em diferentes pontos do Iêmen deixaram vários mortos e feridos, nesta quinta-feira (26). O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, estava em um avião, quando começou o bombardeio.

Tedros disse que o ataque aéreo danificou prédios que estavam a poucos metros do avião, onde também estava uma delegação da ONU. Um membro da tripulação ficou ferido.

De acordo com um fonte da Sputnik, pelo menos quatro pessoas morreram no aeroporto:

"Quatro morreram e 16 ficaram feridos, incluindo o comandante de um jato particular da ONU, como resultado dos ataques aéreos israelenses na pista, na torre de controle de tráfego e no saguão de embarque do Aeroporto Internacional de Sanaa", disse a fonte do aeroporto.

A Força Aérea israelense declarou que seus alvos foram o aeroporto internacional na capital, as usinas de energia de Hezyaz e Ras Kanatib, e infraestrutura nos portos de Hodeida, Salif e Ras Kanatib, na costa.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, alertou que Israel agiria contra os houthis com a mesma força que usou contra o Irã, o que parece indicar o início de uma campanha intensificada contra o grupo, depois que um míssil balístico atingiu um parquinho em Tel Aviv.

Mais cedo, um prédio escolar de vários andares em Ramat Gan desabou após ser atingido pela ogiva de um míssil balístico parcialmente interceptado, depois de ser disparado contra Israel pelos houthis.

Os houthis lançaram mais de 200 mísseis e 170 drones contra Israel no último ano. As Forças de Defesa de Israel (FDI) anunciaram que a grande maioria não chegou a Israel ou foi interceptada pelos militares e aliados israelenses na região.

O grupo também realizou ataques repetidos com mísseis e drones contra cerca de 100 navios mercantes que tentavam atravessar o mar Vermelho, paralisando o transporte marítimo mundial.

Os houthis reivindicaram a responsabilidade, na manhã de sábado (21), por um ataque noturno com foguete contra Tel Aviv, que feriu levemente 16 pessoas.

Israel e os Estados Unidos, por sua vez, atacaram repetidamente várias instalações no Iêmen. Desde meados de dezembro, os Estados Unidos e seus aliados realizam uma operação na região oceânica próximo ao Iêmen, que inclui bombardeios em solo iemenita, para dissuadir os houthis de ataques a navios mercantes e garantir a liberdade de navegação.

O embate entre os houthis e Israel começou em outubro de 2023, quando eclodiu o conflito entre o exército israelense e o movimento palestino Hamas, na Faixa de Gaza.

<><> Situação em Gaza

Em 7 de outubro de 2023, militantes do grupo palestino Hamas invadiram o território de Israel a partir da Faixa de Gaza e abriram fogo contra militares e civis e fizeram mais de 200 reféns. Segundo as autoridades, cerca de 1,2 mil pessoas morreram do lado israelense.

Em resposta, as Forças de Defesa de Israel (FDI) lançaram ataques a alvos civis e anunciaram um bloqueio total da Faixa de Gaza, impedindo o fornecimento de água, eletricidade, combustível, alimentos e medicamentos. Mais de 45 mil pessoas já morreram do lado palestino até o momento.

 

¨      Conflitos e guerras que tiveram cessar-fogo por ocasião do Natal

A época de Natal tem provado que, historicamente, é um período que sensibiliza governantes e a sociedade a buscarem mais humanidade e fraternidade, mesmo em tempos de guerra.

A Sputnik Brasil identificou alguns conflitos ocorridos ao longo dos séculos que tiveram cessar-fogo temporário durante o período natalino.

<><> Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775–1783)

Durante o Natal de 1776, embora não tenha havido um cessar-fogo oficial, pausas nos combates em algumas áreas foram relatadas. No entanto, a famosa travessia de George Washington do rio Delaware na noite de Natal para atacar tropas hessianas mostra que nem todas as ações pararam.

<><> Primeira Guerra Mundial (1914–1918)

Um dos exemplos mais famosos e inusitados de cessar-fogo no Natal, a trégua da Primeira Grande Guerra, em 1914, foi não oficial e teve até troca de presentes entre soldados alemães e britânicos no front ocidental. Houve relatos de sobreviventes de que os então inimigos cantaram canções natalinas e até jogaram futebol. Fotos da época comprovam o clima amistoso e festivo, que, infelizmente, foi breve.

<><> Guerra do Vietnã (1959–1975)

Durante a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos declararam um cessar-fogo de 30 horas no Natal, em 1965, que não foi totalmente respeitado pelas partes.

<><> Guerra Civil Angolana (1975–2002)

Durante a longa e devastadora Guerra Civil Angolana, houve vários cessar-fogos temporários, e alguns coincidiram com o período de Natal. Em 1991, por exemplo, uma trégua foi anunciada com o objetivo de permitir que os civis recebessem ajuda humanitária, mas não durou, pois os principais grupos envolvidos, MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), não respeitaram o combinado.

<><> Guerra da Bósnia (1992–1995)

A guerra envolveu os três principais grupos étnicos na região em torno da independência da Bósnia da ex-Iugoslávia: croatas, sérvios e bósnios. Teve um saldo de centenas de milhares de mortos e refugiados e foi a maior guerra na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1994, as Nações Unidas promoveram um cessar-fogo no Natal, quando foram entregues mantimentos e houve ajuda humanitária nas regiões afetadas.

 

Fonte: Sputnik Brasil/DW Brasil

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