terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Luiz César Marques Filho: A rebeldia necessária

À medida que se aproxima do fim de seu primeiro quinquênio, o presente decênio inicia as sociedades contemporâneas nas experiências traumáticas de um colapso socioambiental. Um colapso se desenha quando os impactos causados por desastres climáticos em série, perdas agrícolas, poluição generalizada, pandemias, desigualdades e violência golpeiam tão frequentemente as sociedades, que estas se tornam progressivamente incapazes de assegurar um mínimo de segurança física, alimentar, hídrica e sanitária às suas populações.

Colapso não é um evento com data marcada para acontecer, é o processo em curso. E dada a aceleração desse processo, pode-se predizer com segurança uma piora ainda maior nas condições de vida dos humanos e de inúmeras outras espécies nos seis anos que nos separam de 2030. Os tratados firmados em 1992 no Rio de Janeiro contra a desestabilização do clima, a perda da biodiversidade e a desertificação, assim como os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, definidos em 2015, chegaram a embalar os sonhos de muitos.

Hoje sua credibilidade é zero. O medo do futuro toma de assalto as sociedades e esse sentimento tem sido bem explorado nas eleições dos últimos dez anos pelos que, nos mais diversos países, negam as evidências científicas, agitam bodes expiatórios e prometem um retorno salvífico ao passado.

Ocorre que é impossível voltar ao passado e, de qualquer modo, também nele não faltavam advertências aos governantes e governados sobre o que o futuro lhes reservava, mantida a mesma trajetória. Desde os anos 1960, multiplicam-se os alertas sobre as consequências terríveis que os agrotóxicos e a destruição das florestas teriam para a vida no planeta. E desde meados dos anos 1970 forma-se o consenso cientifico segundo o qual o aquecimento registrado desde os anos 1930 não podia mais ser imputado apenas à variabilidade natural do sistema climático.

Trabalhos e depoimentos fundamentais entre 1975 e 1988, ano da criação do IPCC, demonstravam esse consenso e projetavam um aquecimento brutal para o século XXI. Eis o texto do Primeiro Relatório de Avaliação do IPCC, publicado em 1990: “Baseado nos resultados dos modelos atuais, predizemos, no Cenário A do IPCC (Business-as-Usual) de emissões de gases de efeito estufa, uma taxa de aumento da temperatura média global durante o próximo século de cerca de 0,3 °C por década (com uma faixa de incerteza de 0,2 °C a 0,5 °C por década). (…) Isso resultará em um provável aumento na temperatura média global de cerca de 1°C acima do valor atual até 2025 e 3oC antes do final do próximo século”.

Isso significa que, mantida essa taxa, a temperatura média do planeta aumentará 1oC a cada três decênios!! É verdade que são necessárias observações de ao menos três decênios para se poder afirmar com certeza a emergência de uma nova tendência no comportamento do clima. Mas nada permite esperar doravante uma desaceleração do aquecimento, haja vista:

(a) o aumento da queima de combustíveis fósseis;

(b) o aumento dos incêndios florestais, do desmatamento e da degradação dos solos;

(c) a liberação de carbono pelo derretimento do permafrost e, portanto,

(d) um crescente desequilíbrio energético do planeta, hoje já colossal (>1 Watt por m2).

A percepção de que as sociedades humanas estão confrontadas a um processo de colapso começou a se generalizar no segundo decênio do século. Em 2012, Denis Meadows, coautor de “Limites do Crescimento” (1972), declarava à imprensa: “Vejo o colapso já acontecendo”. E em 2013, um documento intitulado “Consenso Científico sobre a Manutenção dos Sistemas que Sustentam a Vida Humana no Século XXI”, assinado por 522 cientistas, afirmava: “A Terra está rapidamente se aproximando de um ponto de inflexão. Os impactos humanos estão causando níveis alarmantes de danos ao nosso planeta. A evidência de que os humanos estão degradando os sistemas ecológicos de suporte da vida é esmagadora. A qualidade de vida humana sofrerá uma substancial degradação até 2050 se continuarmos na atual trajetória”.

Em 2024, por iniciativa de William Ripple, um grupo de renomados cientistas reafirma:v “Estamos à beira de um desastre climático irreversível. Esta é uma emergência global, sem sombra de dúvidas. Grande parte da estrutura da vida na Terra está em perigo. Estamos entrando em uma nova fase crítica e imprevisível da crise climática. Durante muitos anos, cientistas, incluindo um grupo de mais de 15.000, soaram o alarme sobre os perigos iminentes das mudanças climáticas causadas pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa e pelas mudanças nos ecossistemas”.

O ano de 2023 foi o mais quente dos últimos 120 mil anos e 2024 superou o aquecimento constatado em 2023. Vivemos em 2024 o primeiro dos últimos 100 mil anos em que a temperatura média superficial do planeta foi 1,5 oC mais quente do que a do período pré-industrial (1850-1900). A menos de mudanças sociais radicais, a trajetória do século XXI prevista pelo IPCC em 1990 está agora traçada. A taxa de aquecimento planetário desde 1995 é de no mínimo 0,22 C por década, implicando um aquecimento de 2oC até 2050.

É impossível dizer o grau de dano que esse aquecimento causará à vida do planeta porque ele nunca ocorreu no Quaternário (os últimos 2,58 milhões de anos). Duas certezas, contudo, se impõem:

(a) um aquecimento de 2oC é incompatível com sociedades organizadas e

(b) esse aquecimento é apenas uma etapa em direção a aquecimentos ainda mais catastróficos na segunda metade do século, mantida a inércia atual das sociedades.

Muitos outros colapsos socioambientais já aconteceram no passado. Mas este cujo início estamos presenciando e sofrendo é absolutamente singular em ao menos três sentidos. Em primeiro lugar, ele é um colapso multifatorial, envolvendo ao menos onze fatores agindo em sinergia:

(i)          desestabilização do sistema climático, com a ação crescente de alças de retroalimentação do aquecimento;

(ii)         degelo terrestre, com elevação do nível do mar a taxas recentes próximas de 5 mm por ano, provocando destruição da infraestrutura urbana, salinização dos deltas e impactos imensos nos ecossistemas costeiros.

(iii)        Aceleração da sexta extinção em massa de espécies: (a) cerca de 40% das espécies avaliadas de plantas e fungos estão em risco de extinção, sendo 46% de espécies de plantas com flores. Além disso, “77% das espécies de plantas não descritas provavelmente estão ameaçadas de extinção, e quanto mais recentemente uma espécie foi descrita, maior a probabilidade de que esteja ameaçada”;vi “mais de 500.000 espécies [terrestres], não têm habitat suficiente para a sobrevivência a longo prazo e estão condenadas à extinção, muitas delas em poucas décadas, a menos que seus habitats sejam restaurados”.

(iv)        Desequilíbrios imensos nos ciclos hidrológicos, com secas, incêndios, chuvas torrenciais, inundações, tempestades tropicais e ciclones tropicais e subtropicais cada vez mais destrutivos;

(v)         15 milhões de kmdos solos planetários já degradados, com expansão da degradação (em direção à desertificação) à taxa de 1 milhão de km2 por ano;

(vi)        intoxicação sistêmica dos organismos pela poluição químico-industrial, sobretudo pelos agrotóxicos e, em geral, pelo sistema “alimentar” globalizado;

(vii)      uma maior capacidade das corporações (estatais e privadas) de moldar os Estados nacionais à sua imagem e semelhança, redundando em bloqueio da governança global.

(viii)     Um aumento sem precedentes das desigualdades com correlativa regressão das democracias;

(ix)        proliferação de guerras e conflitos armados dentro e fora das fronteiras nacionais, em grande parte em decorrência dos oito fatores acima evocados;

(x)         um aumento calamitoso de migrações forçadas, intra e intercontinentais, em decorrência dos nove fatores acima elencados, intensificando mais conflitos e mais xenofobia, e, enfim,

(xi)        a emergência da tecnosfera dos algoritmos pelas Big Techs, terrivelmente vorazes de energia, com potencial para ameaçar a capacidade humana de se autogovernar.

Em segundo lugar, o colapso atual se distingue dos anteriores por sua escala planetária, pois ele está acontecendo simultaneamente em praticamente todas as latitudes do planeta. O colapso atual não é nem local, nem seletivo. Ele está golpeando mais imediata e duramente os países pobres e os sempre mais numerosos pobres dos países ricos, mas ninguém está a salvo. Absolutamente ninguém. Há, enfim, um terceiro fator igualmente singular do colapso socioambiental em curso: as sociedades hegemônicas contemporâneas são as únicas em todo o arco da história humana que há décadas preveem seu próprio colapso, possuem ciência para conhecer suas causas, têm tecnologia suficiente para evitá-lo, detêm memória e reflexão histórica para aprender com os erros passados e mudar de trajetória, mas, ao menos até agora, preferem aceitá-lo passivamente como se seu destino já estivesse escrito.

Fica, assim, a pergunta inevitável: é ainda possível reverter esse quadro? É possível a paz entre os homens e com a natureza? Outro mundo é ainda possível? Muitos de nós, criaturas tardias e resignadas do capitalismo globalizado, parecem ceder ao desespero ou ao culto do dinheiro e do individualismo. Mas os rebeldes, os que, não obstante tudo, reafirmam a visão e a possibilidade de outro mundo, não deram ainda sua última palavra. Já em 1968, René Dubos (1901-1982) escreveu em seu belo livro, Um animal tão humano (So human an animal): “Não obstante as repetidas advertências sobre a paralisia no front intelectual e ético, não obstante a evidente decadência e deterioração dos valores humanos, não obstante a difusa devastação da beleza e dos recursos naturais, enquanto entre nós houver rebeldes, teremos razão de esperar que nossa sociedade possa ser salva”.

Ressoava aqui a vitalidade desse ano admirável que foi 1968 e é claro que, hoje, as forças vivas da sociedade apenas resistem à ofensiva do negacionismo, do fascismo e do militarismo. Mas quando alguém como Mark Rutte, secretário-geral da OTAN, proclama que “é hora de mudar para uma mentalidade de guerra” (It is time to shift to a wartime mindset), impõe-se mais que nunca, a todos nós, denunciar a demência dos que veem a guerra como um caminho para a paz e afirmar a rebeldia civil contra essa matriz civilizacional belicista, genocida, ecocida e suicida.

Superar essa matriz supõe recusar a arrogância e a estupidez dos que negam a agonia de nossa biosfera. Supõe também reconhecer os limites de nossa ciência e aprender com o saber e a resiliência dos “periféricos” urbanos, dos indígenas, quilombolas e dos trabalhadores de uma agricultura local e saudável. Cabe-nos, em suma, participar de uma grande aliança com os que recusam o abismo, para derrotar na arena política o agronegócio brasileiro e global. Como reafirma a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), na reunião do G20 em novembro de 2024: “A Resposta Somos Nós”.

Sim, os que não perderam a conexão com a Terra são a resposta à indagação de Rachel Carson, feita há mais de 60 anos: “A questão é se alguma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida sem se destruir e sem perder o direito de se chamar civilizada”.

               

Fonte: A Terra é Redonda

 

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