‘A lei não acompanha
as mudanças no conceito de família’, diz Maria Berenice Dias
A
natureza jurídica do conceito de família passou por uma importante
transformação no Brasil. E essa mudança ocorreu para tentar acompanhar a
evolução das relações sociais e a compreensão atual de que a entidade
familiar não pode mais ser limitada à chancela estatal do casamento
heteronormativo.
E
uma das responsáveis por essa transformação é a advogada Maria Berenice Dias, especializada em
Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões e vice-presidente nacional do
Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM).
Uma
das especialistas brasileiras mais citadas na área, Maria Berenice acredita que
família é um vínculo de afeto que gera direitos e obrigações. E, mesmo com
tantas mudanças, ela diz que ainda há muito a evoluir e que a legislação não
tem acompanhado os novos modos de arranjo familiar.
“O Direito
de Família sem vínculo de natureza das relações privadas nunca despertou o
apetite dos legisladores. Eles não apresentam qualquer projeto que
venha a atender a segmentos que não correspondam ao modelo convencional da
chamada família tradicional. Isso pode desagradar ao seu eleitorado,
cuja maioria é conservadora”, afirma a advogada.
Se
falta legislação, sobra empenho da advocacia para levar a realidade social ao
Judiciário e garantir os direitos dessas pessoas, segundo ela. “Todos esses
avanços foram conduzidos à Justiça pelos advogados. Um exemplo é o dever de
cuidado dos pais em relação aos filhos, o abandono afetivo.”
A
especialista enxerga de modo prático os novos arranjos familiares e acredita
que é preciso avançar na garantia dos direitos das pessoas que se relacionam de
modo diverso do padrão estabelecido.
“Um
exemplo é o caso das famílias simultâneas. Elas existem e são uma realidade, e
podem ser constituídas por infidelidade, adultério, mas o fato é que homens —
porque é uma realidade masculina — mantêm duas famílias. Todos nós sabemos
disso. E elas existem, são relações que se constituem com todas as
características de uma união estável. São públicas, notórias, muitas vezes com
filhos, e não há como não se atribuir responsabilidades e obrigações em
contrapartida ao direito da outra parte.”
>>>> Leia a seguir os principais trechos da
entrevista:
·
ConJur — Qual é o principal avanço do Direito
de Família nos últimos anos?
Maria
Berenice Dias — A
natureza jurídica das relações de família. Eu acho que esse é o novo enfoque
que norteia todo o Direito, não o de família, mas da família, que família é um
conceito decorrente exatamente dessa percepção de qual é a natureza das
relações familiares.
Eu
acho que isso foi uma revolução, buscar a identificação, a definição do que é
família. A família sempre foi reconhecida como decorrente do casamento. Isso
era Direito de Família, e era só essa a família. Mas, no momento em que,
primeiro reconhecidas pela jurisprudência, e depois pela própria Constituição
da República, surgiram outras estruturas vivenciais fora da chancela
estatal do casamento, fora daquela perspectiva de natureza sexual, que é a
família solo, a família monoparental, isso mudou.
A
família não é só casamento, ela não tem mais apenas a finalidade
procriativa. Então o que é família? Eu acho que a conclusão é que
família é um vínculo de afeto que gera direitos e obrigações, que tem um viés ético.
·
Esse avanço de compreensão consegue atender à realidade
das estruturas familiares atuais?
Maria
Berenice Dias — Com
certeza ainda há pontos que precisam avançar. Esses avanços são vagarosos e a
vida social, ela tem uma certa intensidade, principalmente neste nosso mundo
virtual, com essa instantaneidade de comunicação. Isso leva a uma certa
aceleração no desenvolvimento das pessoas. Então sempre há o que avançar.
Um
exemplo é o caso das famílias simultâneas. Elas existem e são uma realidade, e
podem ser constituídas por infidelidade, adultério, mas o fato é que
homens — porque é uma realidade masculina — mantêm duas famílias. Todos nós
sabemos disso. Bom, elas existem, são relações que se constituem com todas as
características de uma união estável. São públicas, notórias, muitas vezes com
filhos, e não há como não atribuir responsabilidades e obrigações em
contrapartida ao direito da outra parte, sob pena de a Justiça estar
incentivando os homens que fazem isso.
Então,
as coisas estavam indo, a Justiça Federal estava determinando a partilha de
benefícios previdenciários há muito tempo meio a meio, havia já enunciados do
próprio Supremo Tribunal Federal determinando e reconhecendo a existência
desses vínculos e atribuindo direitos e obrigações.
Bom,
a coisa evoluía nesse sentido. As coisas estavam bem encaminhadas, com muitas
decisões da Justiça reconhecendo e determinando até a partilha de patrimônio e
tudo o mais, mas, surpreendentemente, com a mudança de composição do Supremo,
houve um retrocesso. Os temas foram revertidos, alegando-se o princípio da
monogamia, que não é nem um princípio, mas uma norma de comportamento social,
não é um princípio constitucional, mas com base nisso agora não se reconhece
nada. Então voltamos ao limbo.
Mas eu
tenho em mãos aqui uma decisão bem recente do Tribunal de Justiça do
Paraná que foi extremamente corajosa, que disse que existe, sim, a
união (simultânea) e que vão partilhar tudo o que foi
adquirido durante o período. Então existe luz ainda.
O
grande temor é que haja retrocessos por causa desse conservadorismo que
tem tomado conta da sociedade e que se reflete no Judiciário. Um grande
exemplo são os Estados Unidos, que depois de 50 anos em que
o aborto era permitido, ele acabou sendo proibido pela Suprema Corte
com a alteração da sua composição. E aqui isso já começou, então confesso que
eu tenho medo dessas decisões. Se eles falarem, por exemplo, que a união
homoafetiva não é uma entidade familiar, isso vai cair como um castelo de
cartas, levando tudo o que foi construído até hoje.
·
A nossa legislação tem acompanhado as transformações
sociais em relação ao conceito de família?
Maria
Berenice Dias — Não,
a legislação não tem acompanhado. O Direito de Família sem vínculo de
natureza das relações privadas nunca despertou o apetite dos legisladores.
Eles não apresentam qualquer projeto que venha a atender a
segmentos que não correspondam ao modelo convencional da chamada família
tradicional. Isso pode desagradar ao seu eleitorado — cuja maioria é
conservadora.
Muitos
legisladores transformam a Bíblia em cabo eleitoral, vêm com invocações de
natureza religiosa quando, no fundo, o que eles fazem é se manter dentro desse
conservadorismo para garantir a sua reeleição. E, então, a legislação não
evolui, ela não avança.
Acredito
que o grande exemplo é a questão da união de pessoas do mesmo sexo. Que, aliás,
até por causa do conceito de afetividade, gerou o neologismo homoafetividade.
Isso porque família é uma relação de afeto, e a união de pessoas do mesmo sexo
é também uma relação de afeto. Ela tem como foco a afetividade, e não a
sexualidade. Existem famílias homoafetivas e heteroafetivas. E também isso já
está chancelado no Brasil há 12 anos pelo Supremo Tribunal Federal, e nem isso
se conseguiu com qualquer projeto de lei. Aliás, nunca nenhum projeto de lei
chegou a ser votado neste país desde 1995, que foi o ano do primeiro
apresentado pela Marta Suplicy. Então aí fica um vácuo, um vazio legislativo.
Essa
é a grande tônica da responsabilidade dos profissionais do Direito, levar ao
Poder Judiciário todas essas questões que, no fundo, acabam vindo tão
repetidamente que acabam sendo aceitas eventualmente por algum juiz, ou pela
jurisprudência por causa da repetição. O grande fator transformador é saber que
a ausência de lei não significa ausência de direito, e é isso o que leva aos
avanços. Os avanços se conseguem no âmbito do Poder Judiciário, e não no âmbito
do Poder Legislativo.
·
O valor do afeto como um bem jurídico é bem
compreendido pelo Judiciário de uma maneira geral?
Maria
Berenice Dias — De
um modo geral, sim. Temos avançado muito nesse sentido. Por exemplo, a filiação
socioafetiva em geral é alvo até de súmula do Supremo, e não existe prevalência
entre a filiação biológica e a socioafetiva, essa é uma característica muito
presente. Então, de um modo geral, acho que isso foi chancelado, incorporou-se
isso.
·
As organizações familiares poliafetivas são uma
realidade nos dias atuais. Existe um negacionismo jurídico sobre essa
realidade? Essas pessoas têm os seus direitos negados?
Maria
Berenice Dias — Sim,
então a pessoa se mantém em um vínculo muito fechado, muito privado. E houve um
trisal que foi atrás de seus direitos porque queria assumir responsabilidades,
queria dar segurança jurídica ao relacionamento. E eles conseguiram que um
cartório em São Paulo, se não me engano, lavrasse uma escritura pública de
união poliafetiva estabelecendo uma estrutura da vontade deles, para caso
tivessem filhos, caso houvesse separação. E isso teve repercussão.
Há um segmento de São Paulo financiado por igrejas evangélicas que fez um
escândalo e pediu ao CNJ que impedisse isso. E aí o CNJ fez uma recomendação
aos tribunais para que recomendassem aos tabeliães que não lavrassem esse tipo
de escritura. Com medo de quê?
Eu
acho que o tabelião é simplesmente um executor, e não deveria ter de ser
impedido de fazer isso. Se a pessoa está dizendo isso ou aquilo, ele
simplesmente registra, desde que seja algo razoável. Não é que vá alguém até lá
falar que é dono da Lua e que vai fazer um loteamento… São documentos válidos e
devem ser respeitados.
Eu
fiz um dos primeiros documentos de união homoafetiva do Brasil, eram
documentos, pactos, contratos, e comecei a fazer junto aos cartórios, em um
cartório de São Paulo que lavrava e tinha aquela coisa toda das cerimônias de
casamento, com espumante, bem-casado e tal, e então eu dizia aos tabeliães
que eles estavam perdendo um nicho do mercado, que eu estava mandando as
pessoas para São Paulo para fazer lua de mel e assinar o documento lá, que eu
mandava tudo pronto para o tabelionato. E aí as coisas começaram a fluir.
E agora
as pessoas estão sofrendo de novo a mesma coisa. Mas há como impedir que as
pessoas vivam desse jeito? Não. Então deixem que elas façam as coisas mais
tranquilamente. Mas esse ranço moralista e conservador que paira no Direito da
Família é assustador, em que nada pode, em que qualquer comportamento que
escape do que é aceito é absolutamente limado. Olhe a população LGBTQIA+.
Vi
no jornal uma coisa assustadora: cresceram 300% as denúncias de violência
contra a população LGBTQIA+, que, aliás aumentou muito a partir do (Jair) Bolsonaro.
Ainda temos de avançar, não dá para relaxar.
·
Diante dessa omissão do Estado em garantir o direito
dessas pessoas, instrumentos como contratos são juridicamente seguros? Ou é uma
espécie de direito precário?
Maria
Berenice Dias — Bom,
eles são uma manifestação de vontade. Configuram uma manifestação de vontade e,
como tal, têm, sim, valor jurídico. E, dependendo do que eles deliberam, têm
até valor executivo extrajudicial. Não têm eficácia erga omnes, mas
entre as partes eles valem, sim.
·
Existe um debate atualmente sobre a imposição do regime
de separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos.
Cabe ao Estado tutelar as escolhas dessa parcela da população?
Maria
Berenice Dias — Eu
não vejo justificativa nenhuma para a lei prever a incapacidade de alguém a
partir dos 70 anos de idade. É uma presunção absurda, porque o presidente da
República atualmente tem mais de 70 anos, a maioria dos parlamentares também,
vários ministros do Supremo têm mais de 70, e os empresários, e tal, e
todos em plena capacidade. Esse debate propõe uma regra absolutamente
inconstitucional, pois afronta a dignidade da pessoa. Preservar o que para
quem?
Dependendo
da pessoa, ela pode fazer o que quiser. Ela pode casar e deixar tudo para quem
for. A herança é um viés patrimonial, e o Estado nega efeitos patrimoniais a
quem ele presume que é incapaz. Com 18 anos de idade, com certeza a pessoa tem
menos discernimento do que uma de mais de 70. E uma pessoa de 18 anos pode
casar com quem ela quiser.
Então
eu acho que, se querem regular, deveriam impor esse regime a todas as pessoas
que se apaixonam, e não só às pessoas maiores de 70 anos. Mas isso está no
Supremo para ser decidido e eu não tenho dúvida nenhuma de que eles vão
reconhecer a inconstitucionalidade desse dispositivo, porque ele é uma
verdadeira aberração.
·
A senhora acredita que algo deveria ser mudado na
formação dos nossos operadores do Direito para melhorar a compreensão deles
sobre esses valores sociais familiares?
Maria
Berenice Dias – Tem
de começar a mudar na faculdade. Por exemplo: com a inclusão de determinadas
disciplinas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com relação a
magistrados, Ministério Público e a própria Defensoria que atuam em varas e em
juizados de infância e Varas de Família, eles deveriam ter um perfil para
assumir essa tarefa e ter também uma certa capacitação.
Fonte:
Por Rafa Santos, na Conjur
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