sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Rui Costa Santos: ‘Um alerta para a esquerda brasileira’

Muitas diferenças há entre um governo de Joe Biden e do Partido Democrata dos EUA e de Lula e da Frente Ampla que o elegeu juntamente com Geraldo Alckmin como vice-presidente.

Comecemos pelo mais básico: os EUA são ainda a primeira potência mundial no plano econômico e militar, enquanto o Brasil se caracteriza por ser uma economia periférica ou sujeita às articulações de uma economia mundial que se constitui por um escasso conjunto de economias centrais e uma grande maioria de nações e economias que têm relações de dependência e subalternidade em relação às primeiras.

Do ponto de vista econômico-político a isso se designou no capitalismo mundial de imperialismo, sem que implique a colonização e a submissão política efetiva dessas nações como no imperialismo de tipo colonial anteriormente hegemônico.

Há duas semanas, o PT e os partidos de esquerda brasileira puderam confirmar aquilo que as sondagens já indicavam: a baixa popularidade do governo Lula, a ascensão da direita e extrema direita que no Brasil não se concentra apenas em Jair Bolsonaro, mas que viu surgirem outras figuras – Tarcísio de Freitas, Pablo Marçal – sendo que no caso de Jair Bolsonaro continuar inelegível em 2026 um destes personagens poderá ser o candidato que se oporá ao candidato apoiado pelo PT, muito provavelmente Lula, ou se este não quiser, Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda

Têm sido veementes as críticas por parte de setores da esquerda brasileira a algumas das políticas do atual governo: parcerias público-privadas que substituem serviços públicos oferecidos diretamente pelo Estado e geridos pelo mesmo, uma nova lei de equilíbrio orçamental que substituindo a que tinha sido aprovada anteriormente a mantém nas suas grandes linhas, condicionando a implantação de políticas públicas e provocando cortes em prestações sociais, como uma forma de reforma destinada para quem não teve contribuições para a segurança social por não ter contrato de trabalho assinado.

A continuação das políticas macroeconômicas do governo atual em relação aos governos de Jair Bolsonaro e de Michel Temer que o precederam, é justificada por ausência de maioria na câmara legislativa e pelo fato do governo ter sido eleito tendo por base uma aliança entre o principal partido da esquerda brasileira (PT) e partidos de centro-direita.

No entanto, assim como no passado, Dilma Rousseff foi destituída por iniciativa do partido de direita que ocupava a vice-presidência, o mesmo poderá acontecer até 2026, ou sem necessidade disso, bastando que os mesmos partidos que agora dividem o governo com Lula façam em 2026 uma aliança com a extrema direita e derrotem o PT.

Seja como for, a primeira fragilidade a que se expõe um governo é de não governar para aqueles que o elegeram, porque apesar de eles não lhes darem o poder institucional que não têm, deram-lhes o acesso a esse mesmo poder institucional elegendo-os. A esquerda que governa para se manter no poder alicerçada nos poderes institucionais e sociais realmente existentes desiste de transformar o mundo em favor das classes sociais que a elegeu. Não tendo outro poder nem mecanismo de influência acabam por engrossar a abstenção ou aderir ao discurso de extrema direita. Hoje foi Donald Trump, amanhã poderá ser, novamente, Jair Bolsonaro. E hoje já é Marine Le Pen pela mão de Emmanuel Macron.

 

¨      Donald Trump e o novo espírito do povo. Por Tarso Genro

Dentro dos padrões normais da democracia representativa e dos padrões de respeito às regras mínimas de uma democracia política reconhecida como legítima no século XXI, pode se dizer que Donald Trump ganhou dentro das regras do jogo. A democracia liberal fica cada vez mais difícil de ser aceita, universalmente, para ser aplicada de forma coerente, tendo como base as suas ideias “fundadoras” e os seus pressupostos da razão iluminista. Seu estágio atual de decadência não convence mais ninguém.

Exatamente por esse fracasso, criam-se maiorias que não são “inconscientes”, em relação àquelas finalidades humanísticas, mas são ativas para — militantemente — exterminá-las de todo, para fruir o outro lado — o dos dominantes — numa existência sem proteção, comandada pela raiva e pelo ressentimento. Esse é, para usar uma fórmula hegeliana, o “novo espírito do povo” da maioria da nação americana, formado por muitas guerras, produção de cursos de tortura no exterior e a utilização da violência sem limites para submeter povos e consolidar interesses hegemônicos.

Busquei no amanhecer algum texto sobre o qual pudesse me apoiar para refletir sobre a nova catástrofe do século. Sou daqueles que pensavam que a eleição de Kamala Harris, por uma maioria política democrática na sociedade americana, poderia oferecer bons subsídios para a luta contra o neofascismo, que emerge em todos os cantos do planeta. Quando da chegada ao poder de Hitler e Mussolini, a ideia de que o espectro do comunismo “rondava a Europa” foi suficientemente forte para que, nos países capitalistas hegemônicos, surgissem movimentos de condescendência com o nazi-fascismo em alta.

Sou dos que pensavam que se a maioria do povo americano não estivesse subjugada pela farsa “trumpista” do fascismo e se Kamala Harris vencesse, tal condição nos ajudaria — mundialmente — a fortalecer a luta contra a cultura do extremismo de direita que hoje grassa no planeta. A política externa imperial-colonial dos EUA, no caso de uma vitória de Kamala Harris, não teria diferenças essenciais do que é e será Donald Trump, para o resto mundo, mas a “nação civil” americana poderia ter o mesmo papel histórico que a maioria do povo americano desempenhou no fim da guerra do Vietnã. Ela ajudou — naquela oportunidade — a solidariedade mundial vencedora que levou à derrota, na Ásia em ebulição, a maior potência militar do mundo.

O artigo colhido foi escrito antes da apuração (Narbon, 20224): “Donald Trump está perto da presidência dos Estados Unidos. Seus eleitores não se importam que ele seja racista, xenófobo, misógino, autoritário, sexista e um criminoso condenado. Na verdade, eles votaram nele por esse motivoA América, branca e protestante, não suporta a diversidade que circula na ‘terra dos homens livres e no lar dos bravos’. Os imigrantes latinos com documentos também não têm simpatia por seus compatriotas. O bote salva-vidas está muito cheio e pode afundar se pegar mais pessoas. Os homens veem com ressentimento a crescente influência das mulheres, e os amantes de armas não suportam a ideia de restrições sendo impostas, apesar de 600 tiroteios por ano”.

Na manhã cinzenta da minha visão impactada pela vitória de Donald Trump (que certamente leva a democracia liberal americana e o seu “estado de direito” para muito perto do poço) não arrisco uma opinião sobre as consequências históricas de longo prazo, sobre a sua vitória, mas apenas pretendo contribuir para a formação de um mínimo senso comum na esquerda sobre esta derrota da democracia liberal. Para entender melhor a nova situação e colaborar com esta reflexão no campo da esquerda registro duas impressões: uma sobre as questões nacionais brasileiras, neste contexto, e outra sobre a importância externa da derrota de Kamala Harris.

A insegurança em geral, social, militar e no âmbito público, passou a ser uma questão central da política moderna, aqui e em toda a América Latina, o que me faz pensar em dois problemas: se o Governo Lula não resolver qual o Plano Imediato de Segurança Pública que vai ser aplicado, já no início do próximo ano (mais além das reformas constitucionais que demorarão no mínimo três anos para serem aprovadas e implantadas); e se o governo não conseguir dar um destino aceitável e legítimo, para o arcabouço fiscal (ausente qualquer outra proposta que possa ser aprovada no Congresso Nacional) a mesma vitória de Donald Trump — com o mesmo sentido fascista e reacionário — poderá ocorrer aqui no Brasil a partir das eleições de 2026.

Os reflexos externos da derrota de Kamala Harris são apuráveis a olho nu, em duas direções: uma de natureza econômica, com a forte retomada do protecionismo americano,  que pode ajudar a redesenhar o sistema de alianças da China para fora do continente africano e, de outro, interferindo de forma ainda mais agressiva para utilizar o “keynesianismo” militar da “era Bush”, com altas taxas de crescimento na indústria militar — no que tange a equipamentos, armas e demais insumos para a sustentação de guerras de longo curso — fortalecidas com novas tecnologias para o setor bélico.

O novo mundo que nos espera está tanto longe da utopia farsante do “modo de vida americano”, como das ideias da democracia social, erguidas heroicamente no século passado.

 

¨      Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal. Por Luis Felipe Miguel

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

 

¨      O economista de Donald Trump. Por Alessandro Octaviani

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade.

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”.

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”.

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”.

 Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam

(i)          a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação;

(ii)         (moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada;

(iii)        flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana;

(iv)        envolvimento em degradação ambiental significativa;

(v)         padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos;

(vi)        tarifas e quotas de importação ilegais;

(vii)       fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e

(viii)      impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês.

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso:

(i)          evitar os produtos chineses; 

(ii)         desmantelar as armas de destruição de empregos da China; 

(iii)        fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética;

(iv)        confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa;

(v)         combater o colonialismo global chinês;

(vi)        frear as mortes na China pela China; 

(vii)       enfrentar o desafio espacial chinês.

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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