Da arte de Debret aos mamíferos da
Parmalat, o que as imagens da branquitude têm a ver com Pablo Marçal
Faz parte do nosso
existir o ato de contar histórias. Mas as histórias podem ser contadas e
recontadas de diferentes maneiras, a partir de vários pontos de vista,
modificando o resultado que terá na vida de seus ouvintes, espectadores ou
leitores. Nós, como brasileiros e brasileiras, somos feitos de histórias, que
foram contadas, recontadas, desmentidas ou reelaboradas e que ajudaram a
construir quem nós somos. Essas narrativas, porém, ao longo de mais de cinco
séculos de Brasil nos fizeram entender de onde viemos, mas também ajudaram a
reforçar verdades tidas como únicas e seus lugares de poder. Nos últimos anos,
os fatos históricos, as figuras tidas como líderes dessas narrativas e a
própria ciência História em si tem sido repensada, questionada e revisitada de
maneira crítica.
Desse modo,
publicações e estudos que trazem reflexões sobre as posições de poder, que
usufruem de privilégios, na nossa sociedade, são importantes. Nas últimas
décadas, estivemos trazendo debates feministas relevantes, refletindo sobre a
participação e o apagamento das mulheres, a partir de uma perspectiva de
gênero. As questões étnico-raciais também nos fazem refletir sobre o
silenciamento e as violências vivenciadas pela população negra no nosso país.
Agora, a pesquisadora Lilia Schwarcz, em seu novo livro Imagens da Branquitude,
realiza uma leitura profunda sobre as imagens que fazem parte da nossa
História. Ela analisa obras de arte, fotografias e em outros documentos
visuais, destravando as mensagens e narrativas inscritas em cada uma dessas
imagens.
Entre análises de
pinturas do artista Jean-Baptiste Debret, datadas do século XIX, que estampam
livros didáticos em escolas pelo país, nas quais pessoas brancas aparecem em
situações de usufruto de seus privilégios e de exploração de pessoas negras
durante o período da escravidão, até leituras sobre as representações
étnico-raciais em campanhas publicitárias famosas mais recentes, como a série
“Mamíferos da Parmalat”, que trazia crianças vestidas de animais, que foi febre
nos anos 1990.
Em entrevista à Marco
Zero Conteúdo, a historiadora e professora da USP comenta sobre o que propõe
com a sua nova publicação, refletindo sobre o que seria a branquitude, qual a
importância de desestabilizar o que é entendido como natural e como ela percebe
a extrema direita brasileira – que trabalha reforçando lugares de poder, como o
masculinismo e a branquitude, por exemplo – no Brasil de agora.
LEIA A ENTREVISTA:
• Os debates sobre imagens fixadas,
normalmente partem de um pressuposto da diferença étnico-racial e/ou de gênero,
ou seja, de que existe uma norma e ela usufrui de privilégios, ao contrário dos
que não habitam essa norma. No título de seu novo livro, estão as imagens de
branquitude, assim, o que seriam essas imagens? E, de que forma falar sobre
branquitude é desnaturalizar uma suposta transparência e neutralidade da
branquitude?
Lilia Schwarcz – O
conceito de imagem vem de magia. E, não à toa, ele é a raiz da ideia de
imaginários. Então, as imagens que nos constituem – e ainda mais no período
contemporâneo e a partir do século XIX, com o advento da fotografia – são
imagens marcadas por um determinado lugar social, que é o lugar da branquitude,
que é, evidentemente, um lugar de privilégio social. Não à toa, a branquitude
social é um conceito que se pauta no passado, mas se prescreve no tempo
presente. Então, a ideia do subtítulo A presença da ausência é que, de um lado
a presença enquanto privilégio da branquitude é imensa, mas, ao mesmo tempo, se
trata de uma imensa ausência, porque as imagens naturalizam esse lugar. Falar
de branquitude, ensinar a ler imagens é uma maneira de desnaturalizar esses que
são documentos visuais muito poderosos. Porque estamos acostumados a
interpretar um documento escrito, mas pouco acostumados a perceber que uma
imagem carrega uma série de convenções visuais, uma série de códigos, uma série
de pathos, que, de alguma forma, nos convencem sem que nós percebamos
exatamente isso. Por isso que é tão importante esse movimento de ler imagens.
Como ler imagens? Pela reiteração, pelos detalhes, como uma contranarrativa, ou
seja, a partir daquilo que o profissional não quer que se leia, mas cuja
mensagem evoca.
• A seu ver, até que ponto nós, pessoas
brancas progressistas que tentamos ter uma prática antirracista, conseguimos
romper com o pacto narcísico da branquitude (conceito mencionado pela Cida
Bento)? De que forma o pacto narcísico continua operando nas relações, quando
pessoas brancas refletem sobre os seus privilégios?
Não sei se eu entendi
muito bem essa sua segunda questão, mas vou tentar reagir a ela de alguma
maneira. A Cida Bento, uma grande intelectual, educadora negra, na sua tese e
no seu livro, desenvolve esse conceito de “pacto narcísico”. Narciso foi um
personagem que, ao que diz a lenda, ao que diz a tradição, ficou se olhando na
sua imagem refletida na água de tal maneira que passou a só ficar dominado por
ela. Então, o que acontece? Como é que pessoas progressistas e brancas, como eu
sou, por exemplo, podem ter uma atitude antirracista? É muito importante que
nós, primeiro, entendamos que o racismo é uma contradição da sociedade
brasileira e não apenas das pessoas negras, como diz Cida Bento no mesmo livro.
É importante entender a escravidão, não só a partir da vitimização das pessoas
negras e de suas agências, mas também o que significou para as populações
brancas viver essa situação de monopólio do poder durante tanto tempo. Esse é o
primeiro ponto. Segundo ponto, a população negra no Brasil não é uma minoria, é
uma maioria populacional – porque corresponde a mais de 56% da população
brasileira –, mas minorizada na representação. Então, não estamos falando
exatamente de minorias, mas de maiorias que não estão contempladas, não só na
representação visual, como na representação pública e na representação privada.
É preciso falar dessas questões entre pessoas brancas para que nós tenhamos um
movimento na direção de qualificar a nossa democracia, para que a democracia
brasileira inclua setores secularmente excluídos da participação.
• Qual a importância de repensar os
arquivos históricos e artísticos que constroem os símbolos de poder e as suas
ausências? Por que pensar as representações de diferentes vivências que habitam
esse território nas obras de arte, por exemplo, refletindo sobre como pessoas
não brancas foram representadas até o século XX?
Nesse livro, eu
trabalho branquitude e negritude como relações. Negritude foi um conceito
criado pelo Movimento Negro como um conceito afirmativo, ainda no começo do
século XX, no movimento Harlem Renaissance, nos Estados Unidos, e também na
França. A branquitude sempre foi um conceito de recusa. A branquitude, muitas
vezes, não se aceita pensar a partir desses conceitos e o toma como uma
categoria de acusação, que não é. Eu justamente uso as imagens para que as
pessoas possam ler essa situação de privilégio. Os arquivos históricos, os
museus, são instituições que foram criadas no contexto colonial e que carregam
esse mesmo direcionamento, no sentido de estabilizar o privilégio das
populações europeias, das populações brancas, que dominaram o mundo, sobretudo
a partir da modernidade, a partir do século XVI. Dominaram com uma máquina de
violência muito grande. Dentre as violências, está o apagamento da memória. Os
arquivos, os museus, são as instituições que lembram e esquecem também. Vivemos
num momento em que é preciso perguntar aos arquivos por outras populações, por
outras questões, para que a gente, de fato, crie uma historiografia, Ciências
Humanas e um processo de memória cada vez mais plural e inclusiva. A memória é
uma virtude republicana.
• Muitas histórias ficaram de fora da
História do Brasil por muitos anos e muitas ainda permanecem silenciadas. Mas,
por que é preciso trazer essas outras histórias para o conhecimento coletivo?
E, com elas, podemos refazer a memória do povo brasileiro sobre o nosso país?
Bom, é muito
importante que nós convoquemos a memória. Memória e história são categorias
distintas. Em geral, a história desconfia da memória, porque acusa a memória de
se pautar em critérios apenas subjetivos. E a memória disputa esse tipo de
direito à representação com a história, que se pauta apenas em documentos,
assim ditos, racionais. É muito importante que a historiografia brasileira
deixe de ser apenas e tão somente masculina, europeia e das elites. Aquilo que
nós chamamos durante tanto tempo de uma história universal foi, sobretudo, uma
historiografia europeia. A historiografia brasileira, durante muito tempo, foi
uma historiografia quase que exclusivamente sudestina. E por que é importante
contar muitas histórias? Porque o conhecimento, como você bem diz na sua
pergunta, precisa ser coletivo. E ao ser coletivo, ele precisa ser plural. Ele
precisa dizer respeito às populações que constituem esse país, e não só a
apenas um segmento.
• que já pensa sobre o autoritarismo
brasileiro, como reflete sobre as mudanças na extrema direita brasileira, neste
2024, com a chegada de Pablo Marçal? E que características a extrema direita
brasileira tem de diferença das de outros países, como os EUA (Trump) e
Argentina (Milei)?
O crescimento da
direita radical data dos anos [em torno de] 2016, com a crise dos anos [em
torno de] 2016. É nesse contexto que figuras como Orbán, na Hungria, Donald
Trump, nos Estados Unidos, ganham uma projeção internacional. É nesse momento
também que ocorre uma grave crise da democracia com esses políticos retrógrados
sequestrando a pauta da democracia, que não tem nada a ver com golpe de Estado,
defesa da liberdade de expressão com interesses espúrios. A chegada de uma
figura como Pablo Marçal, que concorreu à prefeitura na cidade de São Paulo, é
um fenômeno também que não diz respeito exclusivamente a São Paulo. Eu acho que
ele representa, ao extremo, esse lado midiático da política. De um lado, uma
política sem efeitos, ou seja, sem projetos, uma política que se encerra nas
suas causas, o que significaria aparecer para o público cada vez mais. Pablo
Marçal representa essa antipolítica, que Donald Trump também representa. Não há
projetos, não há debate de ideias, não há respeito pela diferença das pautas.
Há, única e exclusivamente, palavras de ordem e expressões para as câmeras – e
que depois se convertem em cortes para conseguir mais likes e conseguir mais
projeção e conseguir mais seguidores. Existem muitas diferenças entre os vários
políticos de extrema direita, eu não teria tempo de responder aqui. O que há em
comum entre eles é uma espécie de populismo digital. Populismo sempre foi uma
forma de fazer governo que se pauta na tentativa de dar respostas fáceis para
situações complexas e também em políticos que se apresentam como espécies de
Messias, de pessoas que têm soluções, que são individuais e pessoais. São
também, no período contemporâneo, pessoas que se manifestam contrárias a
qualquer tipo de diferença. Portanto, são pessoas profundamente antidemocráticas,
se nós pensarmos que a democracia se pauta na liberdade de expressão, na
igualdade de direitos, no respeito às opiniões divergentes, na transparência e,
principalmente, no respeito à verdade e ao bem comum. As fake news são uma
atitude oposta à democracia, porque distorcem a verdade, manipulam a opinião
pública e impedem o debate honesto e, de fato, informado. O candidato Marçal
acumulou na sua figura todos esses pedaços de atitudes nada republicanas e nada
democráticas.
Fonte: Por Erika
Muniz, em Marco Zero Conteúdo
Nenhum comentário:
Postar um comentário