Natasha Lennard: ‘A resposta à vitória de
Trump é a mobilização radical’
Fiquei sabendo que
Donald Trump seria presidente dos Estados Unidos, em 2016, enquanto comparecia
ao funeral de um amigo meu, Clark Fitzgerald, que havia morrido em um acidente de carro a caminho de um
protesto contra o oleoduto de Dakota em Standing
Rock, no estado de Dakota do Norte.
Na noite do funeral,
seu melhor amigo leu trechos que Fitzgerald havia escrito: um governo de Trump
parecia improvável para muitos de nós naquele momento, mas Fitzgerald, como
outros na esquerda antifascista, tinha uma profunda consciência de que não podíamos
confiar nos políticos tradicionais como baluarte contra a opressão.
“Leve em conta
necessidades e desejos reais quando fizer mais de um milhão de sacrifícios”,
escreveu Fitzgerald, um radical organizador de movimentos, que morava em Nova
York, e que conheci durante o Occupy Wall Street. “Lutemos tanto a ponto de não
sentir o tempo todo que vamos explodir, transformemos isso novamente no grande
passatempo americano.”
Oito anos depois,
Trump ganhou novamente.
O Partido Democrata
apostou em um apelo aos neoconservadores, incluindo criminosos de guerra, como
Dick Cheney, e defendeu políticas de fronteira mais rígidas, reforçando a lógica anti-imigração do
Partido Republicano, em vez de confrontá-la.
Kamala Harris pode ter
contado com as mulheres para votarem a favor do direito ao aborto, mas prometeu
pouco mais do que o retorno à regulação falha e insuficiente que
decorria do caso Roe vs. Wade, na melhor das hipóteses. Como o presidente Joe
Biden, ela apoiou um genocídio e não conseguiu se diferenciar dos sionistas
extremistas como Trump.
Tenham sido quais
forem as vitórias obtidas pelos trabalhadores organizados durante o mandato de
Biden — e elas foram dignas de nota — esse não foi o foco dos democratas na disputa de 2024
pela Casa Branca. O plano econômico de Harris era favorável a Wall Street e ao
Vale do Silício, embalado na terminologia de “oportunidades” para a mitológica
“classe média”, e não um acerto de contas necessário com as demandas de uma
classe trabalhadora diversa que habita essa superpotência desesperadoramente
desigual.
Fitzgerald não viveu o
suficiente para presenciar um, muito menos dois governos de Trump. Mas quando
penso no que ele perdeu, não penso na Casa Branca. Penso no que ele gostaria de
ter visto. Coisas como as extraordinárias iniciativas de ajuda mútua
que mantiveram vizinhos vulneráveis alimentados no auge da pandemia da Covid,
ou o movimento de inquilinos que
vem crescendo em todo o país, responsabilizando cada vez mais os locadores e
mantendo dezenas de pessoas em suas casas. Ele não viu a potência das revoltas do
movimento de libertação negra em 2020, nem a resistência em Atlanta
contra a construção da Cop City, um enorme
centro de formação de policiais.
Ele não testemunhou os
protestos em solidariedade a Gaza, com milhões de pessoas tomando as ruas, ou
os bandos de estudantes em todo o país que
participaram de acampamentos sob risco de suspensão e expulsão para exigir o fim da
cumplicidade de suas instituições no genocídio. Arrisco dizer que Fitzgerald
teria ficado encantado com as redes de
circulação de comprimidos abortivos e
hormônios para quem precisa deles, em estados onde o aborto e os cuidados de
saúde de afirmação de gênero já foram proibidos ou muito restritos.
Contemplando mais
quatro anos de um governo Trump, que ameaça usar uma violência totalitária ainda
maior do que no primeiro mandato, essas intervenções da sociedade civil nos
últimos anos podem parecer pouco consolo, reprimidas e contidas como vêm
constantemente sendo. Mas também acabamos de testemunhar, mais uma vez, o
fracasso retumbante de um Partido Democrata que atende ao sistema,
aparentemente mais comprometido com a triangulação à direita do que em oferecer
um programa propositivo para o país, seus cidadãos e habitantes.
Invoco aqui o falecido
Fitzgerald, o movimento de Standing Rock, o Occupy, as redes de ajuda mútua, as
revoltas por George Floyd, o ativismo em solidariedade a Gaza — a luta
antirracista, antifascista, anti-imperialista, antigenocídio dos últimos anos,
de forma geral — porque o sistema dos democratas deixou claro seu compromisso
com uma política fracassada de recorrer à direita, para no fim perder para a
direita. O mesmo padrão orienta as mudanças políticas à direita,
anti-imigração, na Alemanha,
na Grã-Bretanha, na Itália, e em tantos outros lugares.
A política de direita
se reconfigurou e foi normalizada como o centro.
As políticas e os
partidos de extrema direita tendem a vencer quando os chamados centristas
assumem plataformas conservadoras para tentar supostamente capturar os
eleitores brancos insatisfeitos e, assim, manter a extrema direita sob
controle; o resultado é que o nacionalismo conservador é tratado como o cerne
de toda a política. É isso que a campanha de Harris fez,
em especial no que se refere à imigração. Na melhor das hipóteses, como
aconteceu com o atual governo do Partido Trabalhista britânico, os
conservadores podem ter perdido, mas as políticas de direita foram
reconfiguradas como o centro normalizado.
Para os democratas, o
recurso à direita tem sido um desastre da realpolitik,
especialmente em um sistema eleitoral que favorece estruturalmente os
republicanos em qualquer hipótese. Mas, o que é pior, as estratégias do partido
fracassaram em prejuízo das comunidades mais vulneráveis, tanto dentro dos EUA,
quanto as que sofrem sob o jugo das guerras apoiadas pelos EUA.
Ainda é muito cedo
para dizer se os democratas aprenderão com essas derrotas, ou simplesmente —
como já fizeram antes — culparão sem fundamento a esquerda por fracassos que
têm pouco a ver com os eleitores de esquerda. Os opositores ao genocídio de
Israel são um saco de pancada fácil, mas não são os responsáveis pela vitória
de Trump. Os democratas do sistema podem culpar a si mesmos, mas a esquerda não
tem tempo para esperar uma autocrítica desse partido previsível.
Há uma necessidade
urgente de organizar movimentos de justiça social, fortalecer sindicatos e o
poder sindical, enfrentar as estruturas de poder em vez de ceder a elas, e
criar amplas redes de cuidado e apoio. Os poderosos movimentos sociais das
últimas décadas não se construíram a partir do apoio das lideranças do Partido
Democrata, nos governos de Bill Clinton, Barack Obama, ou Joe Biden. Eles
também não entraram em colapso durante o primeiro mandato de Trump.
Não há uma forma única
de reunir todas as lutas que estão atualmente interconectadas. O movimento de solidariedade
palestina, que também se contrapõe à hegemonia dos EUA e às estruturas de poder colonial, é
um terreno fértil para trabalhadores da
cultura, pesquisadores, e trabalhadores de todos os ofícios — não apenas
estudantes e professores. As pessoas que estão na linha de frente para garantir
o acesso continuado ao aborto e aos cuidados de saúde para pessoas trans também
precisam sempre de mais apoio. Se você é inquilino de um imóvel, pode entrar em
um sindicato de inquilinos, ou organizar um; se você é um trabalhador, mesmo
precarizado, há sempre espaço para ingressar na luta pela sindicalização e pela organização. Grupos
de ajuda mútua surgem em todas as cidades. Em todo o país, governos locais
estão construindo centros de treinamento de policiais, que precisam de oposição feroz.
Deixei o apartamento
de uma grande amiga no final da noite de terça-feira, com o coração pesado, mas
sem surpresa com o provável retorno de Trump ao
poder. Também conheci essa amiga durante o movimento Occupy. “Não estamos
começando do zero”, ela me lembrou, quando nos despedimos com um abraço. A
mobilização da sociedade civil — ciente há muito tempo, e dolorosamente, de que
não é possível manter uma forte dependência do sistema do Partido Democrata — é
o rumo para onde devemos nos voltar, e continuar a construir.
Não estamos começando
do zero.
¨
Os democratas
destruíram sua chance de barrar a volta de Trump. Por Jonah Valdez
Na manhã de
quarta-feira, vários veículos projetaram a vitória de Donald Trump sobre a
vice-presidente Kamala Harris na eleição presidencial de 2024 nos EUA.
Espera-se que a volta
de Trump à Casa Branca traga uma pauta de direita radical que pode resultar
na deportação de milhões de
imigrantes, restrição de direitos de pessoas trans, maior restrição dos direitos reprodutivos, e reversão de proteções ambientais em meio à aceleração das catástrofes climáticas.
Ao contrário de 2016,
quando sua vitória sobre Hillary Clinton foi um choque para muitos americanos,
Trump não é uma surpresa em 2024. O Partido Democrata teve quatro anos de
vantagem para garantir que isso não acontecesse novamente. No entanto, como em
2016, aparentemente os democratas fracassaram na tentativa de ganhar o
eleitorado em uma disputa contra um candidato especialmente impopular – que,
desta vez, traz nas costas múltiplos pedidos de impeachment, acusações e condenações criminais.
A curta campanha de
Biden e a subsequente campanha de Harris decidiram tentar vencer os
Republicanos em seu próprio jogo, e se voltaram para a direita em questões como imigração, justiça penal e
clima. Depois da desistência de Joe Biden, o partido Democrata rejeitou os
apelos para deixar de fornecer armas para a guerra de Israel em Gaza. Harris,
em vez disso, apreciou o apoio de conservadores como
Liz Cheney. Foi uma estratégia para cortejar os moderados e conservadores
receosos com um segundo mandato de Trump, mas isso pode ter afastado os
principais blocos eleitorais.
“Mesmo deixando de
lado esse genocídio, tem sido difícil fazer com que Harris assuma posições
firmes sobre outras coisas que me preocupam, como os direitos trans; algum tipo
de reforma relevante e humanizada das políticas de imigração; e um
posicionamento sobre as mudanças climáticas”, disse na semana passada Meghan
Watts, eleitora da Carolina do Norte, ao The Intercept dos
EUA. Ela estava indecisa entre Harris e a candidata do Partido Verde, Jill
Stein. Na terça-feira, acabou deixando em branco o campo de eleição
presidencial da cédula.
(Nota da editora: nos
EUA, as cédulas eleitorais trazem, além dos candidatos ao Executivo e ao
Legislativo, diversas outras questões sobre as quais os eleitores devem
decidir.)
Ao longo da guerra, o
governo Biden demonstrou relutância em mudar a sua
política de armar Israel, sem praticamente
nenhuma salvaguarda frente às crescentes provas de violações aos direitos
humanos, tanto em Gaza, como no Líbano. Depois de um ano de protestos contra a
guerra em universidades de todo o país, houve um otimismo inicial por
parte dos eleitores de que Harris poderia mudar de rumo ao assumir a chapa.
O movimento
Uncommited reuniu o compromisso de centenas de
delegados de Harris em pressionar a campanha a um embargo de armas, e parecia
haver estar ganhando força antes da Convenção Nacional do Partido Democrata, em
Chicago, em agosto. No entanto, o partido barrou o movimento de todas as
formas, e Harris se recusou a oferecer
qualquer garantia de que a sua política em relação à guerra seria diferente da
de Biden.
As pesquisas têm
mostrado consistentemente que impor restrições ou limites ao envio de armas dos
EUA a Israel é uma medida popular entre os
americanos e, de forma ainda mais esmagadora, entre os democratas. Mas Harris
continuou a ignorar os apelos para fazer isso, culminando com a decisão do
Uncommitted de não apoiá-la.
“A vice-presidente
Harris e sua equipe não aproveitaram a oportunidade de dar força ao Uncommited
para apoiá-la e mobilizar os eleitores em sua reeleição”, disse Abbas Alawieh,
co-fundador do movimento, em setembro, após anunciar o não apoio. Ele acabou votando
em Harris com a esperança de que os eleitores continuassem a pressioná-la por
um embargo de armas e um cessar-fogo.
Os democratas passarão
anos debatendo quais questões afastaram especificamente os eleitores de Harris
e os levaram a Trump – teria sido a guerra, a inflação, o racismo e a misoginia
da América, ou outros fatores totalmente diferentes? Mas à medida que o partido
examina sua derrota, deve também levar em conta a forma como lida com as vozes
dissidentes em suas fileiras.
Reem Abuelhaj,
ativista na Pensilvânia pelo movimento No Ceasefire No Vote PA, um grupo que
pressiona pela promessa de um embargo de armas, disse temer que um voto em Harris estabelecesse um precedente
de que o partido Democrata poderia ignorar seus eleitores que manifestam
dissidência sobre violações aos direitos humanos. Ela decidiu esperar até o dia
da eleição, com a esperança de que Harris fizesse uma mudança de política de
última hora. Essas garantias nunca chegaram.
“Entrei na cabine de
votação e não conseguia parar de chorar”, disse Abuelhaj ao The Intercept na
noite de terça-feira. “Tudo o que conseguia ver era o rosto de uma criança em
Jabaliya” – uma cidade do norte de Gaza – “segurando o corpo do seu irmão mais
novo, que foi morto no fim de semana. Votei no restante da cédula, mas deixei
em branco a parte de cima.”
Alguns de seus amigos
e familiares se uniram a ela, e não conseguiram votar em Harris. Outros, que
votaram em Harris, choraram ou se sentiram mal, ela contou. Uma amiga disse que
votou em Harris “mas depois rezou pedindo perdão”.
“Este foi um dia de
tristeza e destruição”, disse Abuelhaj.
Quando Trump tomar
posse, a política dos EUA irá oscilar para a extrema direita. Jesse Myerson, um
ativista comunitário em Nova Iorque, resumiu a situação que a esquerda, e uma
grande parcela do público americano, provavelmente enfrentará em um segundo governo
Trump.
“O ataque violento que
o governo [de Trump] vai lançar contra pessoas queer e trans, imigrantes,
muçulmanos, pessoas racializadas, judeus, qualquer pessoa cujos direitos
reprodutivos estejam sob ataque, ou que esteja na linha de frente das
catástrofes climáticas – tudo isso exigirá que estejamos na defensiva em uma
série de questões, e isso irá reduzir a capacidade que temos para lutar contra
esse genocídio. E, honestamente, dados os planos do Projeto Esther, haverá
ainda mais ataques diretos ao movimento pelos direitos humanos palestinos do
que há agora”, disse Myerson ao The Intercept na semana passada.
“As possibilidades de
avanço, por mais reduzidas que fossem sob Harris, seriam completamente
obliteradas sob Trump, e forçariam uma postura tão defensiva que considero que
simplesmente perderemos terreno de formas enormes e incompreensíveis.”
Fonte: The Intercept
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