Combate a medicamentos falsificados se
intensifica e mobiliza órgãos nacionais e internacionais
A falsificação de
medicamentos se tornou uma preocupação crescente. Com impactos na saúde pública
e na economia global, o aumento de medicamentos falsificados nos últimos anos
foi impulsionado pela expansão do comércio online, com a proliferação de sites
ilegais e plataformas de venda sem regulamentação. A pandemia de Covid-19
agravou o cenário, ao intensificar a procura por produtos em farmácias não
autorizadas, especialmente durante a crise sanitária.
Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 10 medicamentos em países de baixa e média
renda é falsificado ou de qualidade inferior, contribuindo para cerca de um
milhão de mortes por ano. Os riscos vão desde tratamentos ineficazes até reações
adversas graves, aumento da resistência antimicrobiana e perda de confiança nos
sistemas de saúde.
Dentre os casos
recentes e que chamaram atenção está o Ozempic, da fabricante Novo Nordisk. A
alta demanda pelo fármaco tem estimulado a formação de mercados paralelos, onde
produtos são vendidos de forma irregular, burlando até mesmo os mecanismos de
autenticação e rastreamento dos lotes. O mesmo já acontece com o Mounjaro, da
Lilly, que nem sequer é comercializado no Brasil ainda. A fabricante publicou
uma carta aberta afirmando que identificou produtos falsificados, inclusive
afirmando que alguns dos produtos analisados continham bactérias, altos níveis
de impurezas, cores diferentes, estrutura química completamente diferente e,
“em pelo menos um caso, o produto nada mais era do que álcool”.
A Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) classifica como irregulares todos os medicamentos
que não atendem às normas estabelecidas. Isso implica que esses produtos não
asseguram a eficácia, segurança e qualidade esperadas para itens sob vigilância
sanitária, resultando em riscos significativos e potenciais ameaças à saúde.
Embora a atuação de agências reguladoras como a Anvisa ofereça um nível de
segurança, não é suficiente para conter totalmente o problema. Muitos esquemas
e vendas ilegais escapam do controle da agência e das indústrias farmacêuticas
após o produto sair das fábricas.
Em nota, a agência
destacou que o Brasil possui um mercado de medicamentos rigorosamente regulado,
garantindo um nível de segurança comparável ao de países de referência. A
agência também ressaltou que os casos de falsificação identificados ocorrem
fora da cadeia regulada e, por isso, orienta os consumidores a adquirirem
medicamentos exclusivamente em farmácias e drogarias regulamentadas.
“Acredito que a
resolução do problema passa por uma discussão mais complexa, de identificar
qual a origem disso, quais os focos, por onde esses produtos entram. Porque daí
são atividades criminosas mesmo”, avalia Renata Rothbarth, partner de Life
Sciences, Digital Health & Healthcare da Machado Meyer Advogados.
• Medicamentos falsificados são casos de
polícia
Estima-se que o
mercado ilícito de medicamentos movimente mais de US$ 200 bilhões anualmente,
de acordo com o Fórum Econômico Mundial. Além disso, a Organização das Nações
Unidas (ONU) revela que, na África Subsaariana, produtos médicos traficados
causam a morte de cerca de 267 mil pessoas.
Medicamentos
falsificados podem conter ingredientes errados, doses incorretas ou, em alguns
casos, nenhum princípio ativo, resultando em falta de eficácia ou envenenamento
dos consumidores. Além do mais, frequentemente são fabricados em condições
precárias, o que pode levar à contaminação, formulações inadequadas e produção
por pessoal não qualificado. “O mais importante do ponto de vista prático é a
segurança do consumidor”, afirmou Priscilla Mattar, vice-presidente da Área
Médica da Novo Nordisk. “Além dessa proteção que olhamos durante toda a fase de
desenvolvimento do produto, após a comercialização, temos a área de
farmacovigilância que acompanha a eficácia deste medicamento.”
Ela lembra que a
abordagem de farmacovigilância monitora todos os relatos de eventos adversos
relacionados aos produtos, permitindo captar novos sinais de segurança ou
identificar a persistência dos mesmos problemas observados na fase de pesquisa.
Durante os estudos iniciais, por exemplo, a semaglutida foi testada em mais de
50 mil pacientes. No entanto, na pós-comercialização, o número de pacientes
pode chegar a milhões globalmente, oferecendo um perfil de garantia muito mais
abrangente. “Quando pegamos um produto falsificado, não tem ninguém olhando
esse perfil de segurança. Isso é muito crítico”, pontua Mattar.
Dados levantados junto
a Polícia Federal (PF) mostram que, em 2023, no Brasil, foram apreendidos
119.138 unidades de medicamentos e 21,35 litros de líquidos – o órgão esclarece
que não necessariamente são todos classificados como falsificados, mas que são
retidos pelas autoridades por suspeita de violação de leis ou regulamentos. Em
junho, a PF deflagrou operação para investigar uma rede criminosa que vendeu R$
11 milhões em medicamentos falsos para órgãos públicos. Foram investigados
suspeitos em Mato Grosso do Sul, Curitiba, Francisco Beltrão (Paraná), Birigui,
São Caetano do Sul (São Paulo), Rio de Janeiro, Nova Iguaçu (Rio de Janeiro) e
Jacobina (Bahia).
Para driblar o tamanho
desse desafio, Ana Miriam Fukui Dias, diretora sênior de Jurídico, Ética e
Conformidade da Novo Nordisk, reforçou que a farmacêutica já vem acompanhando
há algum tempo os produtos que são falsificados. “Nosso objetivo é manter uma vigilância
contínua sobre essas plataformas em nível global”. De acordo com ela,
atualmente, contam com uma área global de segurança que realiza um
monitoramento ativo de websites, porque, frequentemente, essas vendas ocorrem
em ambientes da dark web, em sites irregulares e até mesmo em redes sociais.
Segundo Dias, todos os
casos são reportados à Anvisa, e alguns já estão sendo investigados pela
polícia, especificamente pela Delegacia de Saúde Pública: “Não podemos nos
dirigir diretamente ao paciente sobre o produto, mas é essencial conscientizar
sobre os locais apropriados para a compra de medicamentos e as condições de
armazenamento, que, no caso dos produtos da Novo, têm requisitos específicos.
Estamos buscando estreitar o contato com as autoridades, com o objetivo de
fornecer educação e apoio durante as investigações.”
Em junho, a OMS emitiu
um alerta urgente sobre medicamentos falsificados contendo semaglutida, usada
para tratar diabetes tipo 2 e obesidade. Em 2023, foram identificados três
lotes falsificados da marca Ozempic, que pertencem à família da semaglutida. Esses
lotes foram encontrados no Brasil, no Reino Unido e na Irlanda do Norte em
outubro, e nos Estados Unidos em dezembro. Desde 2022, o Sistema Global de
Vigilância e Monitoramento da OMS tem registrado um aumento nas notificações de
medicamentos falsificados contendo semaglutida em diversas regiões. Este é o
primeiro alerta oficial emitido pela OMS após a confirmação de múltiplos
relatórios sobre o problema, mostrando a gravidade da situação e a necessidade
de uma vigilância contínua contra esses produtos falsificados.
• Tecnologia pode ser solução para reduzir
risco de falsificações
A tecnologia pode ser
uma importante aliada na solução do problema. Ferramentas como blockchain e
códigos de barras 2D, embora ainda pouco difundidas, despontam como promissoras
para o rastreamento de medicamentos. “O blockchain pode ser expandido para além
do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos”, afirma Rodrigo Spessoto
Aranda, mestre em engenharia de sistemas logísticos pela USP. “Isso inclui
áreas como órteses, próteses e materiais especiais (OPME). Futuramente, essa
expansão pode englobar serviços que combinam medicamentos e prestação de
serviços.”
A implementação da
tecnologia blockchain na saúde envolve criar um registro imutável de
informações. Cada dado é adicionado a um bloco e, uma vez validado, o bloco é
integrado a uma cadeia de blocos, formando um blockchain. Isso resulta em uma
cópia distribuída e imutável das informações para toda a rede. “A falta de um
modelo de rastreabilidade baseado na tecnologia blockchain afeta principalmente
as indústrias, distribuidores e hospitais. Medicamentos falsificados geralmente
entram na cadeia por quadrilhas especializadas, e o blockchain pode ajudar a
combater isso, trazendo grandes benefícios para esses setores”, avalia Aranda.
Ele acredita que a
aplicação prática em escala reduzida deve ser cuidadosamente avaliada para
garantir sua eficácia e segurança quando expandida para o cenário nacional. “Um
dos desafios é demonstrar o impacto da descentralização na autenticação e a
ausência de uma entidade reguladora para validar as transações”, disse. No
entanto, analisa que a implementação do modelo é viável e pode trazer
benefícios significativos para o sistema de saúde brasileiro.
Priscilla Mattar, da
Novo Nordisk, acredita que a tendência global é que a empresa amplie o uso de
dispositivos de segurança e explore novas formas de identificação de problemas
e que essa preocupação não se limita apenas aos produtos da Novo Nordisk: “Abrange
o setor farmacêutico como um todo, especialmente devido à crescente
popularidade e apelo desses produtos.”
Outras soluções, como
o código QR, têm se revelado essencial na batalha contra medicamentos
falsificados ao revolucionar a identificação de produtos autênticos na
indústria farmacêutica, mas é uma prática que ainda precisa ser disseminada
para o consumidor final, segundo Ana Miriam Fukui Dias, da área jurídica da
Novo Nordisk.
• Setor precisa discutir o tema
Em nota, o Conselho
Federal de Farmácia (CFF) destacou a importância de adquirir medicamentos
exclusivamente em farmácias e drogarias com alvará sanitário e registro no
Conselho Regional de Farmácia do estado onde estão localizadas e que não há
garantia da procedência de medicamentos vendidos fora dos estabelecimentos
regulares. “Essas farmácias e drogarias devem obter medicamentos apenas de
distribuidoras autorizadas pela Anvisa”, afirma a entidade. O CFF também
ressalta que preços muito baixos podem sugerir a necessidade de verificar a
origem do produto. Por isso, é essencial assegurar que a embalagem esteja
intacta, as informações sejam legíveis e o lacre não tenha sido violado.
Para Renata Rothbarth,
além das consequências para a saúde pública, do mercado e do sistema de saúde,
outro problema que precisa ser discutido é a própria definição legal do que é
falsificação de medicamentos: “Temos no código penal um tipo penal, um crime
que é basicamente qualquer tipo de falsificação, corrupção, adulteração de um
produto medicinal sendo considerado crime sujeito a prisão de 10 a 15 anos e
eventualmente multa. Falta um pouco mais de critério para compreendermos o
problema e, eventualmente, definir a melhor maneira de lidar com ele e mitigar
o risco de sua continuidade.”
Segundo ela,
atualmente há uma distinção pouco definida entre falsificação e adulteração de
medicamentos. A falsificação, de acordo com regulamentações internacionais,
ocorre quando alguém que não é o fabricante forja um produto similar ao de uma
empresa legítima. Já na adulteração, o produto original é modificado em algum
aspecto – seja na embalagem, composição ou pesagem -, ainda que mantenha alguns
componentes do produto regularizados. São práticas diferentes, mas ainda
precisam de um melhor enquadramento regulatório.
“Ainda não temos uma
definição clara da Anvisa sobre o que será considerado falsificação,
adulteração e outras infrações. Essa questão também envolve as autoridades
policiais, já que esses atos são classificados como crimes no Brasil, assim
como outras infrações às normas sanitárias e de saúde pública”, esclarece.
Fonte: Futuro da Saúde
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