Paulo Kliass: ‘O perigoso flerte de Lula
com o fracasso’
Presidente
não pode cometer o mesmo erro dos industriais brasileiros nos anos 90, que
abraçaram a agenda neoliberal e cavaram a própria cova. Sanha pelo déficit zero
implodirá o projeto de reconstrução — e pode desgastar o governo e
desesperançar parte das lutas sociais
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Uma das questões mais
intrigantes no campo da ciência política e da sociologia é a busca de
compreensão de fenômenos em que os chamados atores sociais assumem como suas
algumas bandeiras e programas que, na verdade, pertencem a seus adversários ou
mesmo inimigos na disputa ideológica, na chamada luta de classes. Situações
como estas podem ocorrer no nível micro e até mesmo individual, mas também em
uma abrangência mais ampla, envolvendo partidos, governos, sindicatos e
entidades associativas.
Um dos processos mais
recentes e surpreendentes foi a adesão das forças políticas vinculadas à então
chamada social-democracia europeia aos cânones do neoliberalismo e aos
preceitos do Consenso de Washington, em especial a partir da chegada ao poder
durante a década de 1980. Tal movimento teve início na França, logo depois da
vitória de François Mitterrand nas eleições presidenciais em 1981 e a
participação ativa de seu Partido Socialista (PS) nos governos a partir de
então. Ele foi reeleito em 1988 e assim completou 14 anos como chefe de Estado,
uma vez que à época o mandato presidencial era de 7 anos.
Na Espanha deu-se
processo bastante semelhante. O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE)
obteve maioria de votos nas eleições de 1982 e conseguiu indicar Felipe
González como primeiro-ministro daquele país. Na condição de importante
liderança do partido e secretário-geral do mesmo por um longo período, ele
dirigiu diversas formações parlamentares espanholas até 1996.
- Social-liberalismo europeu e a adesão ao receituário
neoliberal
Na Inglaterra o
movimento chegou quase uma década mais tarde. Com certeza a razão mais
importante deve ter sido o “reinado” do Partido Conservador, quando obteve
maioria no Parlamento e conseguiu emplacar Margaret Thatcher como
primeira-ministra. O governo thatcherista teve início em 1979 com a vitória
sobre os trabalhistas e terminou em 1990. Ao longo deste período, a então
chamada Dama de Ferro levou a cabo uma brutal mudança na estrutura social e
econômica britânica no pós-guerra. Em sintonia com as políticas de Ronald
Reagan nos Estados Unidos, os dois foram os principais responsáveis pelo
fortalecimento e pela implementação da agenda neoliberal pelo mundo afora.
Em 1997 os
trabalhistas voltam a obter maioria e conseguem indicar o primeiro-ministro
novamente. No entanto, a hegemonia interna no Partido havia sofrido uma
profunda mudança, com a ascensão das ideias de seu jovem líder Tony Blair e
suas propostas para um New Labor, a chamada Terceira Via. Ele
ocupou a posição de primeiro-ministro por uma década, tendo renunciado em 2007.
O elemento comum que
marca estas três experiências pode ser identificado na adesão às pautas do
neoliberalismo. Os três governos de partidos de tradição de esquerda em seus
respectivos países abandonaram seus compromissos históricos com projetos
progressistas em termos sociais e econômicos. Mergulharam de cabeça na agenda
do Consenso de Washington e das diretrizes incorporadas pela União Europeia, à
época ainda em seu processo de consolidação institucional. Assim, eles
converteram-se em defensores de reformas de matriz conservadora e
implementadores de políticas públicas contrárias aos interesses de suas
próprias bases políticas e eleitorais. Promoveram processos de privatização das
empresas estatais que haviam sido uma das características relevantes da construção
dos espaços nacionais no período posterior à Segunda Guerra. Levaram a cabo
processos de liberalização e desregulamentação econômicas, além de
implementação de políticas econômicas marcadas pela austeridade fiscal e pela
consequente redução das despesas orçamentárias voltadas para as políticas
sociais.
Esse período e as
ações desenvolvidas pelos dirigentes e partidos que tinham um passado mais
vinculado às correntes da social-democracia ficou conhecido como “social-liberalismo”. No
entanto, os prejuízos sociais e econômicos de tal experimento não ficaram
restritos às estruturas das nações que adotaram tal estratégia. Os partidos e
sindicatos que decidiram encampar os programas da direita e do sistema
financeiro internacional sofreram grandes derrotas, perderam espaços e votos
para os agrupamentos conservadores e encontram até hoje grandes dificuldades
para retornar à cena política com a recuperação de seu passado de vínculos com
os trabalhadores e os setores de menor renda em seus países.
- Submissão da indústria brasileira à agenda do financismo
Para o caso
brasileiro, chama atenção igualmente o processo de conversão quase absoluta de
amplos setores das classes dominantes à agenda neoliberal a partir dos finais
da década de 1980. As diferentes representações das chamadas “frações do
capital” aderiram de forma praticamente integral aos programas de privatização,
liberalização, desregulamentação e austeridade fiscal combinada ao arrocho
monetário. Na verdade, assumiram como se fossem seus os interesses do sistema
financeiro e abriram espaço para um verdadeiro processo de autodestruição.
Afinal, como explicar que representantes da indústria, do comércio, dos
serviços e mesmo da agropecuária apoiassem projetos e estratégias de governo
envolvendo a adoção de políticas públicas que apontassem para o reforço do
espaço e dos ganhos do financismo em detrimento dos demais setores das próprias
classes dominantes?
Ao que tudo indica, o
entusiasmo com a agenda anti-Estado e pró-liberalismo de forma geral foi
incorporado pelos dirigentes de tais ramos em termos prioritariamente
ideológicos, sem a devida e a necessária avaliação dos impactos que tais
propostas provocariam sobre a estrutura produtiva do Brasil e sobre os setores
não vinculados organicamente ao poder do sistema financeiro. Na ausência de
formuladores com capacidade de exercer a influência de pensamento sobre os
dirigentes e sobre as elites de tais áreas do capital, o que se verificou foi a
hegemonia sendo efetivada a partir da perspectiva da defesa dos interesses da
fração genuinamente financista do capitalismo por aqui. Um exemplo cristalino
de tal processo de submissão voluntário pode ser resumido na influência
da Pesquisa Focus. Este
levantamento de opiniões a respeito das perspectivas econômicas efetuado
semanalmente pelo Banco Central (BC) pretende ser a opinião do assim chamado
“mercado”. Mas não são consultados dirigentes de nenhum setor da economia real.
O órgão regulador do sistema das finanças ouve apenas os interesses de 171
dirigentes de bancos e demais instituições financeiras. Apesar disso, os
grandes meios de comunicação estampam em suas manchetes e telas que aquelas são
as opiniões do “mercado”, ou seja, de todos os agentes da oferta.
O pesquisador Haroldo
Silva tem trabalhado sobre o tema, indagando a respeito do que teria levado os
dirigentes da indústria a aderirem de forma tão acrítica à agenda neoliberal,
que esteve na base do processo de desindustrialização e de perda de espaço deste
importante setor no conjunto do processo de acumulação de capital no
país. Seu livro A ilusão neoliberal da indústria explora
bem o tema. Ou seja, tudo se passa como se os
industriais tivessem apoiado a onda neoliberal por alguma simpatia política e
ideológica, sem se dar conta de que isso levaria ao seu próprio desaparecimento
como fração de classe no interior do núcleo do capital. Pois ao longo das
últimas décadas de dominância do pensamento neoliberal, assistimos a um
processo crescente de financeirização, internacionalização e perda de espaço da
capacidade produtiva da indústria brasileira no conjunto das atividades
econômicas. Tudo se passa como se os representantes do chamado setor secundário
da economia se organizassem para caminhar pacifica e entusiasticamente rumo ao
seu próprio cadafalso. Uma loucura!
- Haddad, PT e a conversão ao credo neoliberal
Finalmente, cabe
indagar as razões para que processo com características similares esteja
ocorrendo no âmbito de um governo supostamente de esquerda. O fato é que a
adesão aos dogmas da austeridade fiscal e do arrocho monetário tem se dado
desde que Lula foi eleito pela primeira vez em 2003. No entanto, o entusiasmo
com que os dirigentes, parlamentares, governadores e prefeitos do Partido dos
Trabalhadores (PT) abraçaram, neste terceiro mandato de Lula, a agenda do
financismo causa bastante perplexidade. Afinal, a conversão à agenda
conservadora e ortodoxa é completamente contraditória com a tradição da
agremiação, que sempre havia mantido uma integridade de crítica ao
neoliberalismo e de defesa de pressupostos do desenvolvimentismo e de políticas
que hoje são chamadas genericamente de “progressistas”.
A obsessão do atual
ministro da Fazenda com o cumprimento das metas de austeridade fiscal se
combina com a disposição quase ideológica com que o mesmo articulou o Novo
Arcabouço Fiscal (PLP 200/23) para substituir o antigo Teto de Gastos (EC
95/16) de Michel Temer. Comportamento semelhante pode ser observado em seu
esforço quase militante por impedir qualquer tipo de flexibilização das metas
de inflação, medida essa que permitiria adoção de uma política monetária mais
amena. O apoio a que seu ex-secretário executivo seja nomeado por Lula como
presidente do BC a partir de janeiro de 2025 não vem acompanhado de um discurso
em prol de uma mudança substantiva na condução do órgão regulador e
fiscalizador de bancos e demais entidades do sistema financeiro. Galípolo se
apresenta como um fator de continuidade das políticas monetária e cambial de
seus antecessores. Aliás, Haddad jamais se manifestou a favor da revisão da lei
articulada por Guedes e Bolsonaro junto com o financismo, em favor de uma quase
independência do BC.
A adesão à agenda
financista tem provocado sérios desgastes ao governo Lula e ao PT. A começar
pelo afastamento das bandeiras históricas do partido em defesa de políticas
sociais previstas na Constituição Federal, a exemplo de previdência social,
saúde, educação, assistência social e outras. Além disso, o apoio indiscutível
à austeridade definida pelo próprio Haddad no arcabouço fiscal também provoca a
redução do peso do Estado na economia, abrindo espaço para medidas de
privatização como as Parcerias Público Privadas (PPPs) e o impedimento de novas
capitalizações necessárias nas empresas estatais.
Ora, tudo indica que,
salvo raras exceções, a desenvoltura do ministro da Fazenda em defesa dos
interesses do financismo conta com o apoio de boa parte das instâncias do
próprio PT. A tendência, no médio prazo, é que a avaliação de amplos setores da
sociedade brasileira a respeito de tais propostas acabe por responsabilizar o
partido e seus dirigentes pelos prejuízos que venham a ser provocados para a
inviabilização da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento econômico
e social.
Assim, a exemplo do
que ocorreu com a adesão da social-democracia europeia às teses do Consenso de
Washington ou com a adesão dos industriais brasileiros à agenda do financismo,
é bem provável que a atual obsessão fiscalista e o empenho pelo arrocho monetário
de Haddad terminem por provocar graves prejuízos às lutas dos setores que ainda
se mantêm coerentes com uma pauta comprometida com a defesa dos interesses dos
trabalhadores e da maioria da população. A rendição a que estamos assistindo
recentemente às propostas do financismo não tem a seu favor nem mesmo a
desculpa do ambiente mais geral em favor da austeridade, pois até nos países
desenvolvidos e no interior de organismos multilaterais (como o Banco Mundial e
o FMI) observa-se uma flexibilização de tais recomendações.
Enquanto na época de
Thatcher, e mesmo depois, se criou até o acrônimo TINA (“there is no
alternative”) para fazer crer que não havia alternativas à receita neoliberal,
hoje em dia há vários exemplos no mundo de medidas que vão na contramão daquilo
que impunha o esmagamento ideológico patrocinado pelo financismo. Estão aí os
processos de reestatização de empresas na área de serviços públicos
(saneamento, energia elétrica, entre outras) e o abandono das regras de
austeridade fiscal em situações como a crise econômico-financeira de 2008/9 e a
da covid.
A permanência de uma
esperança para mudanças efetivas na sociedade capitalista contemporânea depende
de vários fatores. Mas um deles, talvez o mais relevante, seja a manutenção de
um discurso e uma prática coerentes dos partidos, entidades e governos sobre os
quais foi depositada a confiança para levarem a cabo processo transformadores.
Caso contrário, a perspectiva é de que o processo histórico futuro seja
impiedoso na cobrança de tal abandono, que muitos críticos qualificam como
abandono de princípios basilares.
Fonte: Outras Palavras
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