Piroceno — ameaça à espécie humana
Especialmente a partir
de 2023/2024 a Terra foi tomada de grandes ondas de calor. Provocaram
megaincêndios em muitas partes do mundo. Em 2024 as mais devastadoras ocorreram
no Brasil, na parte da Amazônia, no Pantanal, no Cerrado em vários municípios
do Sudeste. A fumaça tornou o ar em São Paulo e em Brasília quase irrespirável.
A fumaça se espalhou por quase todo o sul do país.
Os cientistas tem
chamado esta difusão de fogo por quase todo o planeta, de a era do fogo, o
Piroceno (piros em grego é fogo). Desde tempos imemoriais os seres humanos
assumiram o controle direto desta força da natureza. Aprenderam a dominar o
fogo. Agora é o fogo que nos domina. Muitas são as causas, como o El Niño, o
acúmulo de CO2, metano e dióxido nitroso na atmosfera,as grandes estiagens, as
gramíneas altamente inflamáveis, material orgânico no e sub o solo. Só em 2023
foram emitidos na atmosfera 37,5 bilhões de toneladas de CO2 que permanece por
lá, cerca de cem anos.
Desde a era
pré-industrial (1850-1900) são lançadas na atmosfera bilhões de toneladas de
gases de efeito estufa, atingindo ao todo mais de dois trilhões de toneladas
acumuladas.
O fogo possui longa
história. Pensando na biografia da Terra de há 4,5 bilhões de anos, sabe-se que
por 800 milhões de anos a Terra permaneceu como uma incomensurável bolha de
fogo, derretida como uma sopa grossa borbulhando de calor. Era um imenso mar de
lava em fusão e extremamente quente. Vapores e gases formavam nuvens imensas.
Estas por milhões de anos provocavam chuvas torrenciais sem parar, o que ajudou
a Terra se resfriar juntamente com os imensos meteoros de gelo que por séculos
torpedearam o planeta. Eles aumentaram consideravelmente o volume de água a
ponto de a Terra ser constituída por 70% deste elemento.
A lava endureceu e fez
surgir o primeiro solo com todo tipo de montanhas. O fogo original foi
aninhar-se no coração da Terra em forma fluida que se mostra pelas erupções
vulcânicas e pelos tremores de terra. Mas continuou como uma energia
fundamental na superfície.
O atual aquecimento
global que ultrapassou o projetado 1,5 graus Celsius para 2030, se antecipou,
chegando em alguns lugares a 2 e até 3 graus Celsius.”Estou apavorado”disse
nosso melhor cientista em clima Carlos Nobre. A causa deste aquecimento
constitui a forma como nos últimos séculos o processo
produtivista-industrialista tratou a Terra. Era considerada sem nenhum
propósito, mero baú de recursos à disposição dos seres humanos. Podemos dizer
que se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra arrancando dela tudo o que se
podia.
Ocorre que a partir
dos anos 1970 com as pesquisas das ciências da Terra e da vida, Lovelock e
Margulis aventaram a hipótese de ser a Terra um super ente vivo que articula
sistemicamente todos os elementos essenciais à vida de tal forma que sempre se
mantém viva e produz inumeráveis formas de vida: a biodiversidade.
Denominaram-na Gaia, um dos nomes gregos para a Terra vida hoje vastamente
acolhida pela comunidade científica.
Pesquisas sobre o
estado da Terra a partir de 1968 (Clube de Roma) considerando o impacto da
atividade humana sobre o meio ambiente e do tipo de desenvolvimento que se
havia imposto por quase todo o planeta, concluíram que a Terra estava doente.
Impunham-se limites ao crescimento tido como ilimitado sem haver a consciência
dos limites do planeta, incapaz de suportar um crescimento ilimitado. Mostra-o
a Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot), revelada anualmente pela ONU.
Entretanto, o sistema
produtivista seja na ordem capitalista seja na antiga socialista estava e ainda
está de tal maneira azeitado que não se permite parar. As consequências se
fizeram sentir cedo, mas especialmente a partir dos anos de 1970 até os dias atuais:
emissão incontrolada de gases de efeito estufa, degradação dos ecossistemas,
erosão da biodiversidade, desertificação crescente, desmatamento de grandes
florestas, contaminação dos solos e da água com agentes tóxicos.
Essa guerra movida
pelo processo produtivo (produzir, consumir, descartar) contra Gaia representa
uma batalha perdida. O sistema-vida, dada a degradação geral, o aumento de CO2
e metano na atmosfera, o aquecimento tido por irreversível com seus eventos extremos,
a perversa desigualdade social despertaram a consciência em muitos: ou mudamos
nosso estilo de vida e nossa relação para com a natureza ou podemos não sermos
mais queridos pela Mãe Terra.
Geralmente, quando num
ecossistema, uma espécie se desenvolve de forma desregulada a ponto de ameaçar
as demais, a própria Terra se organiza de tal forma que o limita ou o elimina.
Destarte as demais espécies podem subsistir e continuar a co-evoluir no processo
global da geogênese. Talvez seja esta a atual situação da espécie humana, na
era do antropoceno, apesar de a grande maioria ser ainda inconsciente e
negacionista.
A expressão criada por
cientistas, o antropoceno, designaria o ser humano qual meteoro rasante é o que
mais ameaça a biosfera. Ao invés de assumir-se como seu cuidador, fez-se seu
anjo exterminador. O piroceno seria a forma mais perigosa e destrutiva do antropoceno.
O aquecimento global crescente, favorecendo a difusão incontrolada do fogo e as
megaqueimadas pode tornar o planeta inabitável.
A escassez aguda de
água potável, a frustração da produção de alimentos, o clima super-aquecido
levaria lentamente a espécie humana à sua extinção. Como tudo o que começa na
evolução, se desenvolve, chega ao seu clímax e desaparece. Assim é com as
galáxias, as estrelas e os seres vivos. Por que seria diferente com a espécie
humana?
Irrompemos na Terra
quando 99,98% estavam já constituídos. A Terra não precisou de nossa presença
para gestar sua imensa biodiversidade. Sem nós, a vida dos quatrilhões de
quatrilhões micro-organismos que trabalham no subsolo da Terra, levaria avante
o projeto da vida. A Terra continuaria a girar ao redor do sol, sob sua luz
benfazeja, mas sem nós.
Aqueles que ousam dar
o salto da fé, diriam que apenas a etapa terrestre do ser humano foi
irresponsavelmente concluída. Uma nova iniciaria num outro nível. Depois do
tempo vem a eternidade. Nela continuaria a viver numa forma que para nós
continua inefável. Mas a vida se perpetuaria.
Fonte: Por Leonardo
Boff, em A Terra é Redonda
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