Com restauração de florestas e nascentes de
água, projetos buscam recuperar uma Mata Atlântica degradada
Quando o biólogo e
agroflorestor Thales Guedes Ferreira, de 37 anos, decidiu, em 2012, reativar as
atividades agrícolas no Sítio dos Ipês, ao lado da rodovia Presidente Dutra, em
Cruzeiro (SP), ele tomou um susto: onde antes existia uma linda nascente de
água, naquele ano só se via terra seca. A área, de nove hectares, está em sua
família há cinco gerações. A solução encontrada para ter água para a plantação
e a construção da casa foi furar um poço artesiano para auxiliar na construção
da casa e abastecer a produção. “Naquela época, um curso de agricultura
sintrópica, que une a produção de hortaliças, frutas e madeira, me despertou o
interesse em restaurar este espaço”, diz Ferreira.
Depois de viver vários
anos da venda de suas frutas e verduras, hoje o produtor vem se dedicando a
fazer uma agrofloresta e plantar muvucas – já produziu mais de duas toneladas -
e preparar o terreno para ‘plantar’ créditos de carbono, em uma parceria com o
marketplace Mercado Livre, costurada pela ONG parceira The Nature Conservancy
(TNC). A horta hoje é apenas para consumo próprio, mas, o mais valioso mesmo,
para ele é que, com cuidado com a terra, aos poucos, onde o chão estava seco,
agora voltou a brotar água. “Tínhamos pago 25 mil reais no poço artesiano e não
tínhamos certeza onde era a nascente, mas com o plantio, a água foi voltando à
superfície”.
A perda de água nos
biomas brasileiros é um dos grandes problemas enfrentados com o aquecimento
global associado ao desmatamento. Na Mata Atlântica, a instabilidade
pluviométrica pode ficar mais comum e afetar cidades, agricultura e a
biodiversidade que nela vive. Hoje, o bioma abriga os dois extremos: em algumas
áreas falta água e, em outras, ela vem em excesso.
Desde 1985, o Brasil
perdeu 6,3 milhões de hectares de superfície de água. E, quando há o aumento de
água nas bacias, a justificativa pode estar também nos eventos climáticos
extremos e inundações. Ao longo deste período, a Mata Atlântica registrou uma elevação
de 3% no volume de suas bacias, segundo levantamento do MapBiomas. Entre 1985 e
2023, ganhou 180 mil hectares de águas na superfície. O estudo ainda aponta
tendência de aumento.
Contudo, esse volume
de água foi influenciado pelas fortes chuvas no ano passado em São Sebastião
(SP), que causaram pouco mais de 70 hectares de perda de vegetação natural, e
também as chuvas no Vale do Taquari entre setembro e novembro do ano passado, no
Rio Grande do Sul, que causaram inundações. Na conta ainda não estão as
enchentes gaúchas deste ano.
“É preciso olhar com
atenção os dados de volume de água na Mata Atlântica, onde houve aumento dos
volumes intercalados aos períodos de secas extremas”, diz o doutor em Ecologia
pela UNESP-Rio Claro, Maurício Vancine. Ele adiciona que é evidente o papel da
proteção ambiental na melhora da qualidade e quantidade da água, assim como da
vegetação e biodiversidade.
É aí que a
instabilidade hídrica se conecta com o desmatamento. Atualmente, apenas 12% das
florestas originais da Mata Atlântica estão maduras e preservadas. A intensa
atividade humana fez com que boa parte dos solos ficassem ralos e diminuíssem a
absorção natural de água e direcionamento aos lençóis freáticos.
É também onde vivem
145 milhões de pessoas, cerca de 72% da população brasileira e onde estão boa
parte das grandes cidades e regiões metropolitanas do país, além de concentrar
os grandes pólos industriais, petroleiros e portuários do Brasil. Ainda que a
queda de 27% no desmatamento em 2023 tenha sido comemorada, a restauração de
tudo que foi degradado é a principal chave e o maior desafio para salvar o
bioma e reequilibrar os recursos hídricos.
Vancine destaca que é
preciso combinar medidas de preservação com a conscientização das pessoas “que
a água não nasce da torneira” e desenvolver pagamentos por serviços ambientais
(PSA) financeiramente atraentes.
O exemplo de Thales
sinaliza que não só é possível, como há um potencial econômico na restauração
da Mata Atlântica e os mananciais de seus cursos d´água, mas isso está longe de
ser uma tarefa simples. É preciso dedicação, paciência e investimento. “Na Mata
Atlântica o foco é reconstruir uma área completamente desmatada, diferente de
outros biomas como o Cerrado e a Amazônia em que podemos trabalhar para evitar
o desmatamento”, diz Adriana Kfouri, gerente regional da Mantiqueira da TNC
Brasil.
A história do bioma se
confunde com o desenvolvimento econômico do Brasil, uma vez que cedeu lugar a
culturas agrícolas como o café e a cana-de-açúcar. Agora, o desafio é engajar
os produtores na restauração de áreas, considerando que as atividades econômicas
continuarão existindo e precisam conviver em harmonia com as florestas e as
nascentes.
“Na Mantiqueira, por
exemplo, conseguimos entender como trabalhar em áreas produtivas e florestas ao
desenvolver novos atores para que eles espalhem as práticas, mesmo que não
estejamos fisicamente nos 17 estados que compõem a Mata Atlântica”, diz Adriana.
De acordo com ela, na
TNC, o trabalho acontece em quatro frentes: políticas públicas; governança
local; capacitações de práticas ambientais; e captação de recursos. Exemplo
disto é o Plano Conservador da Mantiqueira, firmado em 2016 e que hoje está
presente em 425 municípios nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro. A ação surgiu após a expansão do projeto municipal Conservador das
Águas de Extrema (MG), lançado em 2005 e implantado a partir de 2007 na cidade
de Extrema, após estudos e desenvolvimento de lei municipal, sendo pioneiro na
criação de legislação de PSA, e influenciando outras iniciativas na Mata
Atlântica.
O que este caso pode
passar de lição é que o dinheiro pode acelerar a mudança. “O PSA considera os
princípios do usuário-pagador e provedor-recebedor, em que aqueles que se
beneficiam dos serviços ambientais devem pagar por eles, e aqueles que
contribuem para a geração desses serviços devem ser compensados por
proporcioná-los”, explica Vanessa Victor, pós-doutoranda em Ciência Ambiental
da PROCAM/USP.
O financiamento dos
programas de pagamento por serviços ambientais pode vir de fontes tanto da
iniciativa privada como de órgãos ligados ao poder público. “É uma forma de que
boas práticas ambientais sejam recompensadas”.
A oportunidade
econômica é o que está atraindo Francisco José Pinto Nunes, geólogo e produtor
rural, de 70 anos. Há décadas ele investe em eucalipto, mas vê na floresta
nativa e no mercado de carbono uma nova forma de fazer negócio. “Conheço o
mercado de eucalipto e biomassa e sei das limitações. Agora, se o mercado de
carbono avançar no Brasil, muitas serão as empresas que vão buscar terrenos e
matas para a compensação”, diz.
Outro investimento
possível para ele é a venda de frutas nativas, utilizadas para o enriquecimento
da área, como a Grumixama, plantada no Sítio Floresta do Sol, em Cruzeiro (SP),
que faz parte do programa Protetor da Mantiqueira. O projeto visa a adequação
ambiental das propriedades rurais na Serra da Mantiqueira, de forma proteger
mananciais que abastecem de água municípios da região.
Quando entrou para o
programa, Francisco, com auxílio do Sindicato Rural de Cruzeiro, aplicou
técnicas de reflorestamento e preservação visando a melhoria dos mananciais em
15 dos 22 hectares da propriedade. Com isto, ele recebe o PSA de R$ 300 ao ano
por hectare durante cinco anos, a partir do Fundo de Recursos Hídricos do
Estado de São Paulo (FEHIDRO).
“Começamos o projeto
aqui em 2021, como um esforço para mantermos a água cristalina e com qualidade,
mas também engajando outros produtores para que todos tenham o benefício da
melhoria dos mananciais”.
Os recursos recebidos
por Francisco são reflexo da ampliação dos investimentos na região para o
combate à crise hídrica. Com a crise de 2014-2015 no estado de São Paulo, a
Câmara Técnica de Assuntos Institucionais (CT-AI), dentro do Comitê das Bacias
Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS), teve seu orçamento anual ampliado
para de R$ 320 mil para R$ 7 milhões, como explica Elias Adriano dos Santos,
educador ambiental e membro do Comitê.
“A tendência é termos
mais água e com melhor qualidade no Rio Paraíba do Sul. Para isto, são mapeadas
onde estão as nascentes e firmados os termos de cooperação com os produtores
rurais para que as áreas sejam cercadas e afastadas do gado, por exemplo”, conta
Santos.
Atualmente, 700
hectares estão sendo restaurados com foco em melhorar a qualidade da água na
região. A distribuição dos valores investidos e dos pagamentos por serviços
ambientais variam de acordo com os recursos disponíveis nas regiões, com os
projetos e os envolvidos. Francisco tem parceria com o Sindicato Rural de
Cruzeiro e Lavrinhas, mas há quem receba diretamente das organizações.
“Os valores a serem
pagos ao provedor de um serviço ambiental devem compreender a identificação dos
serviços prestados, a avaliação dos benefícios, a determinação dos custos de
implementação e manutenção do programa de PSA e o interesse dos pagadores”, afirma
Vanessa, do PROCAM/USP.
Para Marina Campos,
líder de Conservação e especialista em Restauração Florestal da TNC, o papel
das empresas é fundamental nesta missão. “Empresas mais conscientes já nos
procuram para compensar o uso da água ao financiar programas locais de
sustentabilidade. É preciso que isto aumente para que novas iniciativas
aconteçam”.
No caso de Thales, no
Sítio dos Ipês, por exemplo, é o setor privado quem financia. Em 2021, passou a
fazer parte de um programa do Mercado Livre de geração de crédito de carbono.
No contrato de 10 anos assinado entre as partes, ele recebeu um valor de R$ 7
mil por hectare para produzir as sementes e fazer a restauração em seis de seus
nove hectares. A expectativa é que, a partir do quinto ano, quando as plantas
já estiverem maiores, a apuração do crédito gerado seja feita e o Mercado Livre
possa usá-lo para compensar emissões de gases de efeito estufa (GEE). E, para
os últimos cinco anos, o agroprodutor poderá contratar uma consultoria para
mensurar novas emissões e ficar com parte do dinheiro da venda - Thales ficará
com 20% do valor de venda dos créditos e o Mercado Livre com 80%.
A parceria entre TNC e
o Mercado Livre foi firmada no primeiro semestre de 2021 e tem o objetivo de
contribuir com a restauração de 2.717 hectares na Serra da Mantiqueira, o
equivalente a 17 vezes o tamanho do Parque do Ibirapuera, em São Paulo (SP). “O
maior desafio é o custo, e estamos analisando a possibilidade de unirmos
diversos produtores para uma só consultoria em diferentes sítios após o
contrato de dez anos”, diz Thales.
Além da própria
pressão social, da evidente mudança do clima e seu impacto no regime hídrico e
dos incentivos econômicos, a Lei da Mata Atlântica, promulgada em 2006 para
impedir o desmatamento de vegetação primária, também pode estar ajudando a
mexer o ponteiro. Um estudo conduzido por Vancine na UNESP de Rio Claro,
conclui que há mudanças desde sua criação, ainda que mais devagar do que o
necessário.
Com base em dados de
1986 a 2020, foi possível perceber o ganho de 1 milhão de hectares a partir de
2005, com o aumento de fragmentos já existentes e a formação de quase 385 mil
novos fragmentos de Mata Atlântica com tamanho médio de 1 hectare.
“A regeneração se dá,
especialmente, em áreas abandonadas por questões como o êxodo rural. Neste
cenário, o desafio é fazer com que a área continue se desenvolvendo, ao mesmo
tempo em que a restauração pela ação humana aumente”, diz o pesquisador.
A conclusão dos
especialistas é que não há uma fórmula mágica. Agora, além da maturidade dos
projetos que começaram nos últimos anos, para que as florestas cresçam e os
reservatórios de água aumentem, eles acreditam na necessidade de fortalecimento
dos mecanismos de pagamento, desenvolvimento de técnicas sustentáveis no campo,
engajamento dos produtores e atração de mais pessoas para trabalhar na área,
especialmente os mais jovens.
“Para garantir
perenidade, estamos estudando novas formas e tecnologias de restauração da
vegetação nativa, assim como trabalhando para valorizar a mão de obra no campo,
mas é realmente um desafio. Trabalhamos também com as Prefeituras para que se
tornem autônomas na captação e gestão dos recursos, ampliando as possibilidades
no futuro”, diz Marina, da TNC.
Fonte: Um só Planeta
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