'Devolvam nossa água': os pescadores da
Amazônia que ficaram sem saída para rio pelo 2º ano seguido
A pescadora Izabel
Serrão esteve a vida inteira a poucos passos de um rio.
Primeiro, na canoa
onde morava com pai, mãe e irmãos nas águas dos rios Jaú e Negro, no interior
do Amazonas.
Depois, em um
“beiradão”, a área imediatamente às margens de um rio — até ancorar raízes em
uma área alagada do Cacau Pirêra, comunidade na cidade de Iranduba (AM), na
região metropolitana de Manaus.
Mas os 38 anos vendo o
sobe e desce natural das águas amazônicas não prepararam Izabel para a situação
atual de seca dos rios e da estiagem na região.
“É o nosso costume ver
o rio subir e descer durante o ano. Mas, neste ano, veio muito rápido a seca,
pegou todo mundo de surpresa”, conta ela à BBC News Brasil.
Izabel agora está
"presa" em terra. Com um barco encalhado e outro recolhido, ela não
tem como sair para pescar, já que ao redor tudo virou areia — onde há água, a
cerca de 2 km de sua casa, virou uma lagoa sem saída.
De acordo com dados da
Defesa Civil do Amazonas, o rio Negro na região de Manaus está a menos de dois
metros de alcançar seu nível mais baixo, registrado na seca histórica de 2023.
Na quinta-feira
(26/9), o rio estava medindo 13,92 metros na régua da cidade, apenas 1,22 metro
a mais que a cota mais baixa já registrada em 121 anos de medição: 12,70
metros.
Segundo o Serviço
Geológico do Brasil, o curso d'água registrou nas últimas semanas uma taxa de
redução diária, em média, de 20 cm.
Se o ritmo for
mantido, isso poderia levar ao recorde histórico ainda em 2024.
A expectativa, porém,
é que a baixa do rio comece a andar a passos mais lentos, explica o professor e
doutor em Clima e Ambiente Rogério Marinho, da Universidade Federal do Amazonas
(Ufam).
“Está muito alarmante,
mas a gente tem a esperança que não chegue ao nível do ano passado por causa de
alguns sinais [como a subida no nível de rios] em alguns pontos da bacia do rio
Negro”, explica Marinho.
"Mas deve ficar
entre as maiores secas desses 120 anos de monitoramento."
Outros rios
amazônicos, porém, já chegaram em 2024 às suas mínimas históricas, como o
Solimões, em Tabatinga (AM), e o Madeira, em Porto Velho (RO).
O próprio rio Negro
também está no menor nível registrado em regiões do interior do Estado, como na
cidade de Barcelos.
Em Manaus, a maior
cidade da Amazônia, o Solimões se junta ao rio Negro para formar o rio
Amazonas.
As 62 cidades do
Amazonas estão em estado de emergência e, segundo o governo estadual, mais de
500 mil pessoas já estão afetadas pela seca diretamente.
Sem chuva e sem peixe
No Cacau Pirêra, cerca
de 90 famílias vivem em flutuantes, moradias que ficam sobre a água — ou, em
tempos de seca, encalhadas.
Segundo a comunidade
local, 90% das famílias sobrevivem da pesca.
Quando há água, Izabel
Serrão já está no rio às 4h: "É a hora boa para pegar peixe".
Na volta, o barco
costuma estar cheio de pacus, sardinhas e tambaquis.
Em tempos “normais”,
mesmo na época da vazante do rio, os pescadores da comunidade ainda conseguiam
sair com seus barcos — se não da porta de casa, a alguns metros de caminhada.
Mas, desde 2023, o
trabalho tem sido completamente paralisado.
"Como ano passado
a seca foi muito grande, não deu tempo de o rio encher. Muito lugar onde a água
chegava nem chegou mais", conta Izabel, apontando para os bancos de areia
que cercam a comunidade.
"Eu queria uma
explicação para isso. Devolva nossa água quem tiver com a nossa água."
O geógrafo Rogério
Marinho, da Ufam, explica que “naturalmente o rio tem seu trabalho de depositar
sedimentos e aparecer praias na sua história geológica”, mas que a frequência e
a intensidade atual dos fenômenos não é normal.
“As comunidades
ribeirinhas relatavam que demorava 20, 30 anos para vir uma seca dessa. Agora,
esses eventos estão acontecendo em menos de 10 anos e mais forte”, diz Marinho.
O geógrafo explica que
a intensidade da seca, em parte, pode ser explicada pelos fenômenos do El Nino,
que aquece as águas do Oceano Pacífico, dificultando a formação de chuvas na
Amazônia.
reduz a quantidade de
chuva na região.
No Cacau Pirêra,
quanto mais antigo o morador, maior a sensação de que o que se vive é sem
precedentes.
Na última vez que saiu
para pescar, no meio de setembro, Ronilson Silva, 38 anos de vida e de
comunidade, jogou a rede seis vezes e conseguiu apenas 25 peixes — um número
para lá de modesto para os milhares que conseguiam levar para vender no mercado
local.
“A gente está tudo
encalhado, com os barcos atolados, sem saída. E ainda tem mais 30 dias para
secar, então, acho que vai ser a maior estiagem da história”, diz Ronilson.
Além de pescador, ele
também é gari fluvial do município, recolhendo lixo dos moradores dos
flutuantes. “Mas agora, eu faço coleta por terra.”
O ministro de
Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT), chegou a anunciar em entrevistas
que o governo federal deve criar um auxílio emergencial para pescadores
atingidos pela seca na região Norte do Brasil.
O benefício seria uma
antecipação do "Seguro Defeso", normalmente dado a pessoas que vivem
da pesca artesanal durante o período em que não podem realizar suas atividades
devido à chamada "piracema", quando há o movimento migratório de
peixes no sentido das nascentes dos rios, com fins de reprodução.
Questionado pela BBC
News Brasil sobre valores e de quando a medida seria implementada, o ministério
repassou a demanda para outra pasta, a de Integração e Desenvolvimento
Regional, que, por sua vez, disse não ter responsabilidade sobre auxílio a
pescadores.
Até a publicação desta
reportagem, o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social não deu
detalhes sobre ajuda aos profissionais da pesca.
O governo do Amazonas
disse que têm realizado a entrega de ajuda humanitária às comunidades
ribeirinhas de Iranduba, com 2,5 mil cestas básicas dsitribuídas.
Já a Prefeitura de
Iranduba disse que iniciou a distribuição de cestas básicas e água potável nas
"comunidades rurais do município mais afetadas por esse fenômeno
natural" e "mais isoladas".
Os moradores do Cacau
Pirêra ainda não foram contemplados.
Queimadas
O Amazonas também tem
tido o maior número de queimadas desde que o Inpe começou a reunir dados, em
1998.
Segundo o órgão, até o
dia 25 de setembro, o Estado do Amazonas registrava 6.695 focos de incêndio
neste mês, totalizando 21.930 focos de incêndio no ano.
É um aumento de 66% em
relação ao mesmo período do ano passado.
O programa de
observação da Terra da União Europeia Copernicus também divulgou recentemente
que regiões da Amazônia e do Pantanal enfrentaram suas piores temporadas de
incêndios em 22 anos, incluindo o Amazonas.
O índice, que mede
emissões de carbono decorrente de incêndios florestais, mostra que, no
Amazonas, a poluição esteve significativamente acima da média durante julho,
agosto e setembro.
Quando a reportagem da
BBC News Brasil esteve em Iranduba, era possível ver ao longe diversos focos de
incêndio. O cheiro de fumaça é constante.
Em Manaus e sua região
metropolitana, tem sido rotina a população acordar com a cidade encoberta pela
poluição resultante das queimadas.
No ano de 2023,
segundo o relatorio da empresa IQAir, Manaus foi a capital com a pior qualidade
do ar, na média, no Brasil.
O governo do Amazonas
disse que o Corpo de Bombeiros vem atuando desde junho na região do Cacau
Pirêra com equipes em prontidão na operação Céu Limpo.
Desde o início de
junho até quarta-feira (25/09), foram combatidos 18.740 focos de incêndio no
Estado, segundo o governo.
Pelo que observa ao
seu redor, a pescadora Izabel Serrão acredita que o desmatamento tem
contribuído para o cenário em 2024.
“Onde não tem árvore,
o sol se aproveita, né? Como todos sabem, o sol seca tudo”, diz ela.
Mas, apesar do cenário
desanimador, os pescadores do Cacau Pirêra não pensam em sair do lugar de onde
vêm nem de deixar de fazer o que fazem.
“Pescar é o que o sei
fazer. Preciso desse rio para continuar o nosso trabalho, para continuar se
sustentando e também botando o alimento [peixe] na mesa das pessoas”, diz
Izabel.
Ronilson pensa da
mesma forma. “É o que tenho, é onde eu sei viver. Se você gostasse do lugar
onde você mora, você gostaria de deixá-lo para trás?”, questiona o pescador.
“Eu também não”.
Fonte: BBC News Brasil
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