Enchentes no Rio Grande do Sul consolidam
conservadores em Porto Alegre, diz sociólogo
“Como a cidade que
inspirou utopias democráticas e igualitárias, entre os anos 1990 e o início dos
2000, tornou-se um polo do liberal-conservadorismo brasileiro?”, pergunta o
sociólogo Marcelo Kunrath em um artigo, publicado em junho, no qual tenta explicar
a guinada à direita de Porto Alegre.
Após a
redemocratização, a capital gaúcha teve sucessivos prefeitos ligados à
centro-esquerda – incluindo 16 anos de governos do Partido dos Trabalhadores
(PT). Mas a situação mudou na última década, com a ascensão de nomes da
direita. Para Kunrath, esse processo se deu, em parte, pela formação de uma
rede de políticos e empresários que tomou o controle da cidade.
Ele mapeou cerca de
500 pontos – entre pessoas, empresas, instituições, partidos e organizações
sociais – com múltiplas conexões entre si. São o que professor da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chama de “os donos de Porto Alegre”, pessoas
que, em suas palavras, “elegem representantes políticos, alteram legislações,
instituem políticas públicas, controlam processos decisórios e fazem negócios
que impactam profundamente o presente e o futuro da cidade”.
Os pontos centrais da
teia são representantes de famílias tradicionais da elite porto-alegrense:
Gerdau, Ling, Fração, Vontobel, Zaffari e Logemann. Eles se conectam em pontos
de intersecção, como no Instituto Cultural Floresta (ICF), ONG que reúne mais de
50 donos de grandes empresas gaúchas, é próxima à produtora conservadora Brasil
Paralelo e atua direcionando recursos da segurança pública.
O estudo mostra que
esses atores se conectam também com políticos da direita e centro-direita, como
o atual prefeito, Sebastião Melo (MDB) – que recebeu grandes doações dos
empresários em 2020 e este ano, na campanha à reeleição.
Com as enchentes que
devastaram várias cidades do estado em maio, incluindo Porto Alegre, esses
grupos passaram a atuar com mais visibilidade. O ICF ficou conhecido por
doações de antenas Starlink, de Elon Musk, e foi indicado como local para
receber doações pelo vice-prefeito, Ricardo Gomes, e pela Brasil Paralelo.
Depois da tragédia,
parte da população passou a desacreditar a política tradicional pela falta de
ação e deu credibilidade para voluntários das instituições conservadoras. Foi o
momento em que esses atores aproveitaram para ganhar pontos na disputa de poder
ideológico, acredita o sociólogo, e consolidar a hegemonia na cidade.
<><> Eis a
entrevista.
• Durante a tragédia, ganhou força um
discurso antipolítica, como se o Estado tivesse sumido. Como o senhor vê essa
questão?
De fato, foi um caos,
porque não tinha coordenação. Era cada setor do Estado e, às vezes, cada
pessoa, operando numa lógica própria. Teve muito o discurso do “povo pelo
povo”, “nós por nós”. Tanto do setor empresarial, com seus jet skis e suas
lanchas, quanto dos setores populares.
O Instituto Cultural
Floresta [ICF], por exemplo, atuou de uma forma bem organizada e midiática. As
doações que eles recebiam eram no estacionamento de um grande shopping center,
eles transmitiam os caminhões chegando. Eles fizeram um negócio ostensivo de
dizer: “Ó, o Estado não vai te ajudar, mas nós vamos porque nós temos essa
capacidade, agilidade, competência”.
Se tu for em alguns
lugares, como o bairro Sarandi [em Porto Alegre], aquilo te destrói por dentro.
A enchente ali não era água, era esgoto, esgoto contaminado, e aquilo ficou
acima dos telhados. Aí, quando finalmente aquele negócio baixou, depois de quatro
semanas, as pessoas voltaram para suas casas. Não há o que limpe aquilo ali,
porque impregnou no telhado, nos forros, e não tem Estado, não tem ninguém. O
que eu faço? Limpa tua casa, porque não vai ter alternativa para ti.
Claro que também tem a
parte das pessoas que foram lá ajudar a limpar, e foram muitas. Teve muita
solidariedade, foi emocionante. Mas aí a população, quem conseguiu alguma
ajuda, não vai ficar perguntando sobre o interesse político daquilo. É questão
de sobrevivência imediata.
Comecei a fazer a
pesquisa vendo as coisas do ICF. Saíram muitas matérias, muitos posts
impulsionados, uma grande visibilidade. Pensei: “Pô, quem são esses caras?”.
Comecei por eles e fui encontrando uma rede, que se cruza em muitos espaços.
• O que esses grupos querem para Porto
Alegre?
Há um trabalho de
transformar Porto Alegre na capital da inovação, do empreendedorismo, todo um
rebranding. É bem assustador para quem viveu uma outra Porto Alegre.
Hoje tem uma
secretaria da prefeitura [de Desenvolvimento Econômico] que funciona dentro do
Instituto Caldeira [organização formada por 42 grandes empresas “com o
propósito de impulsionar transformações através da inovação”, como diz o seu
site]. Pra você ter uma ideia, um prédio que era da Secretaria Municipal de
Indústria e Comércio ficou literalmente abandonado e chegou num estágio de
degradação que teve que ser implodido.
A prefeitura está
tentando leiloar vários imóveis em áreas centrais. E para essa secretaria, de
Desenvolvimento Econômico, ela aluga no Caldeira. E o Tribunal de Contas,
outros órgãos, ninguém faz nada.
• Esses grupos já têm poder, aliança com a
prefeitura, muito dinheiro. O que eles ganham fazendo trabalho voluntário e
buscando visibilidade?
Acho que é a aposta da
disputa ideológica. Não é só uma questão de interesse econômico ou político,
porque isso eles já têm. Eles têm muito poder sobre a Câmara de Vereadores
também, por meio de doações de campanha.
Esses caras, de fato,
têm um controle quase total. Não tem nenhuma proposta de lei do interesse deles
que não passou na gestão do Melo. Alterações do Plano Diretor, mudança da
legislação urbanística para poder construir empreendimento em área que não pode,
autolicenciamento [de obras].
• É curioso porque grandes empresários
geralmente não querem aparecer quando têm uma influência na política.
Tem gente que ainda
opera na moda antiga, digamos assim, como os Ling [donos da holding Évora, que
atua nos setores de embalagens plásticas e metálicas, de não tecidos e
florestamento] e os Gerdau [de um dos maiores grupos de siderurgia do mundo],
que financiam vários programas sociais, culturais, mas ficam mais na posição de
patrono.
Agora, a geração mais
nova das famílias está assumindo a frente, estão mais engajados politicamente –
não necessariamente na política partidária eleitoral, mas na disputa política
na sociedade. É uma geração que se envolveu no processo do impeachment da [ex-presidente]
Dilma Rousseff, que ajudou a bancar o MBL [Movimento Brasil Livre], a Brasil
Paralelo.
• Porto Alegre foi bastante destruída
pelas enchentes, e isso poderia impactar a corrida pela prefeitura. Por que
você acha que Melo se mantém na liderança?
Ele é uma figura
carismática. Aqui, algumas pessoas o desqualificam dizendo que é “chinelão” –
um termo que acho meio elitista e preconceituoso. Mas ele não é chinelão. Ele
tem uma inserção popular grande. Era de um MDB popular, tanto que em 2016 a sua
candidata a vice era a Juliana Brizola, do PDT [também candidata este ano]. Ou
seja, ele já foi a candidatura de centro-esquerda.
E aí ele voltou
repaginado, bolsonarizado, digamos assim, e com o Ricardo Gomes de vice em
2020. Foi a guinada para a direita.
Por exemplo, outro dia
morreu um líder comunitário [Paulo Jorge, liderança da Associação de Moradores
da Vila Tronco] que foi muito importante, e qual foi o único político que foi
no enterro? O Melo. Então ele ainda mantém conexões.
Ele também criou a
figura do “prefeito da praça”, um cargo voluntário para pessoas ajudarem nas
ações da prefeitura. O cara ganha um crachá, um uniformezinho e vira uma
autoridade no bairro. Melo também fomentou uma série de serviços oferecidos em
parceria da prefeitura com entidades comunitárias. Há toda uma rede de pessoas
envolvidas com a sua gestão, e isso o favorece.
• Certo. E como isso se conecta com os
“donos de Porto Alegre”?
Esses setores de alta
renda não elegem ninguém em Porto Alegre. Eles precisam se articular com quem
tem os votos. Por exemplo, o grande candidato deles nessa eleição seria o
Felipe Camozzato, do Novo, que tem 5% das intenções de voto. Já Melo tem os
contatos. O Melo e a sua rede é quem têm os votos.
O Melo não é o
candidato ideal deles, mas é o cara que consegue ser eleito e que faz as
políticas que eles querem. O [ex-prefeito] Nelson Marchezan foi o cara que esse
empresariado bancou para defender seu projeto liberalizante, mas ele não foi
bem avaliado. Se pegar os dados de financiamento, em 2016 o Melo não tinha o
dinheiro do grande empresariado. Em 2020, ele foi o cara onde os caras botaram
a grana. Tem um deslocamento do recurso, e eu acho que tem muito a ver com a
aliança com o Ricardo Gomes [vice-prefeito]. Pra mim, ele é o personagem que
conecta esses mundos.
Houve um “balão de
ensaio” no início desse ano, do Cláudio Goldsztein [empresário e um dos
fundadores do ICF] ser candidato a vice do Melo. Acabou não sendo, mas serviu
para testar essa possibilidade. Então acho que é uma disputa ideológica. Algo
menos preso aos tempos e às dinâmicas da política eleitoral e mais ao ato de
construir uma direita ideológica e organizada.
• Já falamos na Pública que a origem do
nome do ICF é de um pensamento do Olavo de Carvalho, de que não basta ser uma
árvore, tem que ser uma floresta, se infiltrar em todos os cantos que estariam
dominados pela esquerda, na visão dele.
Essa é a crítica que
eles fazem, que a esquerda quer construir uma hegemonia, e é exatamente o que
essa direita tem feito de uma forma muito hábil. Eu acho que o pessoal
subestima um pouco a capacidade desses caras. Para mim, é no campo religioso
onde está a grande disputa no Brasil hoje.
O discurso da direita
liberal é que nem o discurso da esquerda classista, ele não massifica no povão.
A esquerda se massificou, lá na redemocratização, via Igreja Católica e, em
parte, por políticas públicas. Agora, essa direita se massifica no discurso religioso.
Quando se esgotou o tema da corrupção, eles mudaram o foco para os costumes, a
moralidade.
Esse, para mim, hoje,
é o grande gargalo político. A esquerda não precisa fazer igual à direita.
Agora, tu tem que entender que existe uma cosmologia religiosa, que, mesmo as
pessoas que não tenham religião, ela está presente. Não passa pelo racional, passa
pelas emoções.
• Como a Maria do Rosário, a candidata do
PT, é vista?
Acho que ela tem poder
dentro do PT, o que não significa que tenha muita inserção social. Vejo que
houve um fortalecimento nos últimos anos de setores do PSOL, com a pauta
antirracista. Na última eleição foi eleita uma bancada negra para a Câmara.
O PT nasceu em Porto
Alegre, na classe média, portanto, não era um partido popular. É diferente de
São Paulo, por exemplo, que começou no movimento sindical. O PT passou a se
popularizar na prefeitura, com a vitória do Olívio Dutra [prefeito de Porto Alegre
entre 1989 e 1993] com 34% dos votos. Se tivesse segundo turno naquela época,
ele dificilmente ganharia.
Boa parte dos
eleitores não se baseava na ideologia do partido, mas numa ideia de moralidade,
de “posso não concordar com o PT, mas ele não rouba”. Mas aí o impacto do
Mensalão e da Lava Jato foi brutal. Houve uma guinada para um campo de direita
que era pequeno quantitativamente, mas importante politicamente. Ali houve uma
placa tectônica que se moveu.
• Como ficou a conversa sobre as mudanças
climáticas? O negacionismo afetou a opinião pública?
Tem uma pesquisa
recente que diz que a grande maioria das pessoas relaciona a tragédia das
enchentes com as mudanças climáticas. Então acho que, para a população, não é
mais uma questão, as mudanças climáticas existem, não são uma invenção.
Enquanto estávamos sem
aulas presenciais depois da enchente, tivemos uma disciplina em que os alunos
ouviram relatos de pessoas impactadas. Duas coisas me chamaram a atenção: um
pessimismo generalizado e um sentimento de culpa governamental, ou seja, que os
governos falharam em ter qualquer tipo de ação.
Fonte: Por Amanda
Audi, em Agência Pública
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