segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O que Israel quer com o banho de sangue no Líbano

Na segunda-feira, Israel praticou os ataques mais letais contra o Líbano desde sua invasão no país, em 2006, atingindo áreas densamente povoadas em toda a região sul, inclusive centros de saúde e ambulâncias, segundo o ministro da Saúde do Líbano, e ampliando seus ataques até Beirute e o vale do Beca, a leste. Dentre os ataques israelenses, um dos alvos era um prédio alto no subúrbio de Dahieh, em Beirute, que supostamente teria o objetivo de matar Ali Karaki, alto comandante do Hezbollah.

O grupo divulgou um comunicado dizendo que Karaki estava “bem e em perfeita saúde, e se mudou para um lugar seguro”. Quando chegou a noite na região, o número de mortos no Líbano chegava a 492 pessoas, incluindo pelo menos 35 crianças, e já havia mais de 1.600 feridos, enquanto algumas autoridades israelenses ameaçavam a perspectiva de uma guerra de aniquilação como a de Gaza contra o país. 

No início do dia, os habitantes locais começaram a receber mensagens de texto e ligações com gravações de áudio alertando-os para deixarem suas casas e vilarejos. Os militares israelenses defendem que seu ataque, que eles afirmam ter atingido 1.300 “alvos”, teria o objetivo de destruir as instalações de fornecimento de armas e lançamento de foguetes do Hezbollah.

As estradas que saíam do sul estavam completamente engarrafadas na segunda à tarde, enquanto as pessoas tentavam fugir das bombas de Israel. A Associated Press chamou a situação de “o maior êxodo desde 2006”. Escolas e universidades fecharam em todo o país, e autoridades libanesas estão abrindo as instalações educacionais para abrigar os desalojados.

Avichay Adraee, porta-voz em língua árabe das Forças de Defesa Israelenses, FDI, também publicou várias mensagens ameaçadoras no Twitter, também conhecido como X, orientando as pessoas a deixarem suas casas, inclusive na região do vale do Beca. “Se você está dentro ou nas proximidades de uma casa que contém armas do Hezbollah – você deve sair e se afastar dela em duas horas, para uma distância não inferior a 1.000 metros fora do vilarejo, ou ir para a escola central perto de você e não voltar até receber outro aviso”, escreveu, e acrescentou: “Qualquer pessoa que esteja próxima de elementos, instalações, e armas do Hezbollah está colocando sua vida e a dos integrantes de sua família em risco”. Em seguida, as forças isrelenses bombardearam a região. 

Não se pode esperar que os civis saibam onde podem estar os estoques de armas, o que aumentam a sensação de que Israel está realizando uma “guerra psicológica”, como chamou a agência oficial de notícias do Líbano, além de uma intensa campanha de bombardeio. Embora as FDI tenham apresentado essas ordens como alertas de evacuação com motivação humanitária, diversos comunicados idênticos foram feitos em sua guerra de 11 meses contra os palestinos em Gaza, e, na sequência, as áreas para onde os moradores haviam sido orientados a fugir foram bombardeadas. 

“As pessoas já viram o que aconteceu em Gaza e sabem do que os israelenses são plenamente capazes, e entendem que o Ocidente essencialmente desistiu de sequer fingir que vai fazer alguma coisa a respeito”, diz Karim Makdisi, professor de política internacional na Universidade Americana de Beirute. “Não há razão para acreditar que os israelenses não pretendam avançar e essencialmente tentar esvaziar uma grande parte do sul, para deixar a região toda completamente inabitável pelo futuro próximo.” 

Quando Israel retomou seus ataques, na segunda-feira, o Hezbollah intensificou suas próprias operações, lançou centenas de foguetes contra a base Ramat David e outras instalações militares no norte de Israel, e alegou que também teria atacado um complexo industrial perto de Haifa. Vídeos nas redes sociais também mostraram mísseis do Hezbollah atingindo o leste de Tel Aviv, perto de vários assentamentos ilegais na Cisjordânia, a região mais distante que a organização já atingiu em conflitos anteriores. O Comando da Frente Interna de Israel declarou um estado de emergência conhecido como “situação especial”, mencionando a “probabilidade” de ataques em áreas civis, permitindo que o governo exerça autoridade ampliada sobre a vida civil nas próximas 48 horas.

Após um dia inteiro de ataques intensos e contínuos, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, divulgou um vídeo nas redes sociais. Em sua “mensagem ao povo do Líbano”, Netanyahu afirma que “o Hezbollah vem usando vocês como escudos humanos” ao disparar foguetes contra Israel. O primeiro-ministro também caracterizou como defensivos os enormes bombardeios de segunda-feira no Líbano. As “FDI alertaram vocês para saírem do caminho do perigo”, dizia ele, com o tom de um governador emitindo um aviso sobre um furacão, não o governante de uma potência nuclear que está liderando um imenso bombardeio de vilarejos. “Peço encarecidamente: levem este alerta a sério. Não deixem o Hezbollah colocar em risco suas vidas e as vidas dos seus entes queridos. Não deixem o Hezbollah colocar o Líbano em perigo.”

Israel lançou diversas campanhas militares violentas no Líbano em décadas anteriores. A alegação de que seu objetivo seria proteger vidas civis com mensagens de evacuação foi amplamente rejeitada pelos libaneses e outros observadores, e alimentou a suspeita de que Israel estaria tentando promover a limpeza étnica do sul do Líbano e seus habitantes para estabelecer uma zona tampão militar dentro do território libanês. 

“Não foi a primeira vez que Israel alertou centenas de milhares de civis no Líbano para fugirem, antes de bombardeá-los impiedosamente”, diz Sarah Leah Whitson, especialista em direito humanitário internacional, e diretora executiva da organização de direitos humanos DAWN. “Alertar os civis para fugirem não libera Israel da regra mais básica do direito de guerra, que é não atirar deliberada ou indiscriminadamente contra civis. Como o número de mortos no Líbano deixou claro, essa não é uma regra que Israel pretende seguir.”

Não há nenhum indício de que os EUA, o principal apoiador militar de Israel, tenham planos de deter o governo israelense em seus ataques expansionistas contra o Líbano, Gaza e a Cisjordânia. 

O Pentágono anunciou na segunda-feira que os EUA estão destacando um número não especificado de tropas americanas em acréscimo aos 40 mil soldados que já estão na região. Na ata de uma chamada com o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, reiterou o posicionamento padrão do país, de que Israel está agindo em legítima defesa. “O secretário manifestou seu apoio ao direito de Israel de se defender à medida que o Hezbollah aprofunda seus ataques em Israel, e destacou a importância de encontrar um caminho para uma saída diplomática que permita que os habitantes dos dois lados da fronteira possam retornar a suas casas o quanto antes e da forma mais segura possível”, dizia o texto. 

Makdisi diz que os israelenses não teriam lançado ataques em escala tão grande sem um “sinal verde” dos EUA. “Acho que eles receberam uma espécie de acordo claro de que têm até as eleições para fazerem o que quiserem”, disse ele ao Drop Site News. 

Ao longo das últimas semanas, autoridades dos EUA deram declarações públicas alegando que gostariam de ver uma “solução diplomática” para o impasse entre Israel e o Hezbollah, que começou após 7 de outubro do ano passado. Algumas autoridades também alegaram que os EUA estariam atuando para evitar uma escalada, e o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, chegou a dizer à rede ABC News no domingo que os EUA estavam tentando evitar “guerra total” entre os dois países, e que o governo Biden discordava da política de Israel de expandir o conflito para o Líbano. 

Enquanto isso, Barak Ravid, jornalista da Axios conhecido por seu acesso privilegiado aos altos escalões israelenses e estadunidenses, noticiou durante o fim de semana que as autoridades dos EUA haviam dito em privado que apoiavam uma política israelense de “desescalada por meio da escalada” – uma postura contraditória que permitiria a Israel acelerar a destruição do Líbano e abrir o caminho para um conflito mais amplo. 

“Os assustadores ataques de Israel contra o Líbano ao longo da última semana são o resultado totalmente previsível da contínua permissividade do governo Biden com o desvairado governo Netanyahu, recompensado com um fornecimento infinito de armas independentemente de quantas vezes ele rejeite os pedidos dos EUA para deter o conflito”, diz Whitson, a ex-diretora da divisão do Oriente Médio e Norte da África na organização Human Rights Watch.

Israel já disse que anunciará suas “fases seguintes” para as operações no Líbano nos próximos dias. Na segunda-feira, perguntaram a Daniel Hagari, porta-voz das FDI, se os militares estavam preparados para uma invasão terrestre. “Se o exército está preparado? Sim, o exército está totalmente pronto e faremos o que for necessário para trazer de volta para casa todos os nossos cidadãos da fronteira norte com segurança”, respondeu.

Makdisi avalia que os EUA querem separar as frentes de Gaza e do Líbano para tentar obrigar o Hezbollah a interomper seus ataques contra o norte de Israel. O Hezbollah sustenta que não fará isso até que se obtenha um cessar-fogo em Gaza, um ponto que o secretário geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, enfatizou em seu pronunciamento na última sexta-feira. “Não importam os sacrifícios, não importam as consequências, não importa o que possa acontecer, não deixaremos de apoiar Gaza, e a frente do Líbano contra Israel não cessará até que cesse a agressão em Gaza”, disse Nasrallah.

Foi o primeiro pronunciamento de Nasrallah após os ataques surpresa de Israel na semana passada, que fizeram milhares de pagers explodirem simultaneamente, matando dezenas de pessoas e ferindo outras centenas. Na quarta-feira passada, walkie-talkies usados pelas forças do Hezbollah detonaram de forma semelhante, matando mais pessoas, e na sequência um enorme ataque aéreo ao bairro de Daieh, em Beirute, matou pelo menos 45 pessoas na sexta-feira. O Hezbollah confirmou que o ataque aéreo matou o comandante Ibrahim Aqil e 15 outros oficiais importantes da sua força de elite Radwan. Os EUA, que negam qualquer envolvimento nos ataques, e até mesmo ciência prévia sobre eles, haviam oferecido uma recompensa de US$7 milhões (R$38 milhões) por informações sobre o paradeiro de Aquil após seu suposto papel no atentado contra a embaixada dos EUA em Beirute, em 1983. “Ninguém derramará uma lágrima por ele”, disse Brett McGurk, enviado do presidente Joe Biden para o Oriente Médio. “Mas dito isso, temos divergências táticas com os israelenses.”

Makdisi diz que os recentes ataques israelenses representaram “um duro golpe, mas não um golpe decisivo” contra o Hezbollah. Ele considera que as repostas militares relativamente silenciosas da organização na semana passada não são “necessariamente um indicativo de fraqueza, mas mais um sinal de que ainda são disciplinados, ainda têm a disciplina de que não serão sugados e arrastados para o que Netanyahu quer, pelo menos não agora, de qualquer forma”. 

Israel já disse que seu objetivo declarado no ataque ao Líbano é garantir o retorno de dezenas de milhares de israelenses que foram evacuados do norte do país desde 7 de outubro. “Você não poderá voltar com os colonos e usurpadores de terras para o norte”, afirmou Nasrallah na sexta-feira. “A única forma de retornarem é acabar com a matança e a agressão em Gaza e na Cisjordânia.” 

Makdisi afirma que, desde a invasão ao Líbano em 1982, Israel pretende desmilitarizar o sul do país, inclusive por meio da guerra de 2006. Considera-se, de forma geral, que o Hezbollah derrotou Israel no conflito de 2006, ao obrigar o país a um cessar-fogo. Makdisi avalia que Israel, com o apoio dos EUA, considera que desta vez pode atingir seu objetivo, destruindo os recursos militares do Hezbollah no sul e impondo sua vontade na região. 

“Eles não podem coexistir com nenhum país ou nenhum povo ao seu redor sem aceitar a derrota. Isso é apenas um pré-requisito. Então isso precisa ser contextualizado não apenas na história do Líbano, mas no próprio sionismo”, diz Makdisi. Israel “precisa que os palestinos desistam, precisava que os egípcios desistissem. Precisava que os jordanianos desistissem e precisa que os libaneses desistam. Esse é o contexto.”

Nos anos que se passaram desed a guerra de 2006, a capacidade militar do Hezbollah se fortaleceu, e sua força de combate aumentou de tamanho. O Hezbollah é considerado a mais poderosa força militar não estatal do mundo, com um estoque estimado entre 150 mil e 200 mil mísseis de curto e longo alcance, uma frota de veículos não tripluados em rápida expansão, uma rede avançada de túneis e instalações subterrâneas, e dezenas de milhares de combatentes treinados. 

O grupo também tem amplo apoio militar e logístico do Irã, e mantém relações com governos regionais e redes de milícias aliadas. A ascensão do Eixo da Resistência, uma aliança pouco coesa entre países e facções de resistência, que inclui o Irã, o Hezbollah, o Hamas, o Ansarallah no Iêmen, e outros que se comprometeram com o enfrentamento militar a Israel, também representa uma nova nova dinâmica que Israel precisa levar em consideração ao avaliar que tipo de guerra poderia lutar e vencer.

Amal Saad, uma especialista em Hezbollah, explicou recentemente ao Drop Site: “Basicamente, tudo que o Irã tem, todas as armas que o Irã tem, pode ter certeza de que o Hezbollah também tem. É o que sabemos. E isso, além das coisas que o Hezbollah está fabricando internamente, como sua tecnologia de drones — está fabricando seus próprios drones agora. Então, estamos falando aqui de uma criatura militar muito diferente da de 2006.”

Makdisi diz que, até o momento, o Hezbollah não empregou seu armamento mais avançado, nem lançou grandes ataques contra importantes alvos civis, como o aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, ou o grande porto de Haifa. Se isso acontecer, segundo ele, pode ser uma indicação de que o grupo está entrando em modo de guerra total. 

“Eles não vão entrar em pânico. E eles conseguem enxergar que o que Israel pretende fazer, em termos de tentar esvaziar o sul e atingir esse tipo de infraestrutura no sul, também vai ter várias etapas. Então eles vão esperar e ver o que vai acontecer”, avalia. “Se eles lançarem um enorme ataque sobre áreas civis ou aeroportos, se mudarem a forma como estão atacando e lançarem mão dos recursos tecnológicos [mais avançados] de que dispõem, isso seria um indicador. Mas acho que isso estaria no final da linha deles, e é uma linha muito mais longa do que imaginamos.” 

O papel que o Irã pode desempenhar em meio a uma escalada da guerra é uma grande preocupação de todas as partes, e no Líbano, as pessoas começam a se perguntar por que o principal apoiador do Hezbollah tem se mantido passivo, apesar da ampliação da guerra. “Atualmente existe mais um sentimento do tipo ‘Onde diabos está o Irã?’. Eles ficam aparecendo e ameaçando uma coisa ou outra. Mas agora que o Líbano está nessa situação, nada aconteceu ainda”, diz Makdisi.

Especificamente, Teerã ainda não deu uma resposta militar ao assassinato de Ismail Haniyeh, líder do Hamas, em agosto. Haniyeh foi morto em uma casa de hóspedes controlada pela força de elite Guarda Revolucionária Iraniana. Apesar da forte divulgação da ideia de um Eixo da Resistência, Teerã não ataca Israel abertamente desde abril, quando lançou uma série de ataques aéreos em grande escala, embora praticamente simbólicos

Em comentários feitos a repórteres antes da Assembleia Geral da ONU em Nova York esta semana, o recém-eleito presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, declarou que a morte de Haniyeh “não ficaria sem resposta”, mas acrescentou que o Irã não deseja entrar em uma guerra regional mais ampla por incitação de Israel. O presidente, que representa o bloco reformista dentro do país, também adotou um tom de conciliação ao sugerir que o Irã poderia reduzir o conflito na região caso os EUA também moderassem seu apoio a Israel. “Estamos dispostos a colocar as armas de lado, desde que Israel esteja disposto a fazer o mesmo”, disse. “Mas não podemos aceitar que atores externos cheguem, armem um dos lados até os dentes, e impeçam o outro lado de ter meios para se defender.”

A política externa regional do Irã é considerada o domínio do sistema de segurança linha dura do país, em especial as forças da Guarda Revolucionária. Em seus comentários aos jornalistas, Pezeshkian mencionou que Israel estaria cometendo “genocídio” na Faixa de Gaza. Em resposta a uma pergunta sobre a possibilidade de intervenção do Irã para defender o Hezbollah dos ataques israelenses, declarou que o Irã “defenderá qualquer grupo que esteja se defendendo, e a seus direitos”.

Em um dia da campanha aérea estendida de Israel, centenas de civis libaneses já haviam sido mortos, e milhares ficaram feridos. Esses números certamente aumentarão nos próximos dias. 

As autoridades israelenses já deram diversas declarações nos últimos meses indicando que consideram que a população do Líbano equivale ao próprio Hezbollah, e ameaçando de violência os civis libaneses. 

Em julho, o ministro da Educação de Israel, Yoav Kisch, declarou que “o Líbano, como o conhecemos, não existirá”, após uma futura guerra, e acrescentou que “não há diferença entre o Hezbollah e o Líbano”, e que o país estaria enfrentaria “aniquilação”. Amichai Chikli, ministro da diáspora e do combate ao antissemitismo de Israel, propôs essa semana a criação de uma zona tampão pelo exército de Israel no sul do Líbano, “livre da população inimiga”, e acrescentou que o controle militar de Israel sobre o Líbano “deve ser ampliado, e a população inimiga removida da área”. 

“Hezbollah = Líbano”, escreveu o ex-primeiro-ministro Israelense Naftali Bennett, de forma ainda mais contundente, nas redes sociais. “O Hezbollah controla o governo do Líbano, e não consegue sobreviver sem apoio popular.”

Esta reportagem foi feita em parceria com o Drop Site News, um novo projeto criado por alguns de nossos amigos do The Intercept nos EUA.

 

Fonte: por Jeremy Scahill e Murtaza Hussain, em The Intercept

 

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