Dados, custos e formação são barreiras para
avanço de IA na oncologia pediátrica
O uso da inteligência
artificial na saúde tem sido visto como uma oportunidade para auxiliar o
desenvolvimento de novos tratamentos, a análise de dados e a assistência, entre
outros desafios enfrentados pelo setor. Uma das áreas que têm buscado soluções
nesse sentido é a oncologia pediátrica. Sendo uma especialidade que lida com
casos sensíveis e um público que tem um desenvolvimento da doença que muitas
vezes é considerado inesperado, a perspectiva é que o uso de IA contribua com a
prevenção e redução de quadros graves e efeitos colaterais, colaborando com a
intervenção médica no momento ideal.
Um dos mais modernos
hospitais do segmento, o SickKids – Hospital for Sick Children do Canadá,
considerado o 2º melhor hospital pediátrico do mundo de acordo com o Ranking
2024 elaborado pela revista Newsweek, dá seus primeiros passos para utilizar IA
no dia a dia da instituição.
O “PREDICT”, machine
learning em desenvolvimento pelo SickKids, é comandado por Lilian Sung,
professora, cientista sênior e cientista-chefe de dados clínicos. A ideia é que
o grupo consiga antecipar informações sobre risco de vômitos em crianças em
tratamento de quimioterapia, podendo atuar antes do efeito, mas também outros
desafios da oncologia pediátrica, como permanência de internação, mortalidade e
indicação de medicação personalizada, estão no horizonte.
“Muitos problemas são
importantes, mas muitos não conseguimos medir muito bem ou demoram muito para
acontecer. Por exemplo, a recidiva é realmente importante, mas muito mal
documentada nos registros de saúde. É muito difícil medir. Também queríamos que
nossos primeiros projetos tivessem uma janela de previsão curta. Dos problemas
que são imediatos, nós temos uma das maiores especialistas do mundo em vômitos
em crianças”, explica Sung.
A cientista-chefe de
dados aponta três barreiras principais para o desenvolvimento das IA no âmbito
da oncologia pediátrica: dados, custos e expertise das equipes. No Brasil, o
GRAACC observa os mesmos desafios para conseguir ampliar seu projeto na área.
Sandra Shiramizo, gerente de Projetos & Processos do hospital, aponta que
apesar de ser referência na área, o GRAACC só conta com dados digitalizados dos
últimos 4 anos.
“Hoje, o nosso
racional depende do humano. Quando falamos do uso de dados, principalmente de
inteligência artificial, é todo um cenário necessário. Preciso de ferramentas,
tecnologia, analytics, etc. A gente envolve pessoas e conhecimento,
principalmente”, explica ela, que participou junto com Lilian Sung do Congresso
GRAACC 2024, para abordarem o tema Medicina do Futuro.
• Experiência do SickKids na oncologia
pediátrica
“Machine learning em
genética para o câncer tem sido muito importante, por exemplo. Mas usar machine
learning para entender padrões de crianças se tornará muito importante em um
futuro próximo, buscando personalizar o tipo de terapia que damos, seja quimioterapia
ou tratamento de suporte. Isso deve acontecer nos próximos anos. O desafio será
apenas garantir que estamos nos concentrando nos problemas mais importantes e
que estamos apoiando nossos médicos e enfermeiros, bem como nossos pacientes,
para aplicar essa tecnologia”, observa Lilian Sung.
Com o boom da
inteligência artificial e do ChatGPT em 2022, a sociedade começou a olhar com
mais foco para a tecnologia. No entanto, a cientista-chefe de dados explica que
pelo menos 2 anos de testes “silenciosos”, isto é, antes de colocar na prática
clínica, são necessários para que consiga mostrar a efetividade de uma machine
learning para a oncologia pediátrica.
Mas para isso avançar,
é necessário ter as condições ideais, o que envolve orçamento, equipe
capacitada e dados. Esses dados coletados ao longo dos anos pelos hospitais
serão utilizados para treinar modelos e encontrar padrões. Dessa forma, é
possível que a IA consiga trazer informações que contribuam com a equipe
assistencial.
Apesar de hospitais ao
redor do mundo terem problemas semelhantes, Sung explica que não é tão simples
apenas que as instituições compartilhem suas tecnologias. Isso dificulta que se
construa um único modelo, mesmo que fabricado por uma grande corporação para
comercializar, e forneça para diferentes unidades.
“Nossos modelos são
treinados com nossos dados para nossos resultados. Então, se pegar o nosso
modelo e entregá-lo ao seu hospital, ele não funcionará muito bem. Existem
algumas técnicas novas, ainda em estudo, que dão indícios de que podemos
desenvolver modelos juntos que funcionarão bem em ambos os centros. Entretanto,
para países com poucos recursos isso sempre será uma grande barreira, pela
falta de experiência ou orçamento”, afirma Lilian. A participação das big
techs, nesses casos, pode ser de grande suporte a pequenas instituições de
saúde.
O modelo de predição
para casos que podem ocasionar vômitos em pacientes em tratamento de
quimioterapia pode entrar em uso no SickKids nos próximos meses. A perspectiva
é que a publicação científica com os resultados seja publicada em novembro
deste ano, embasando a inclusão gradual no dia a dia da instituição.
Os próximos passos
serão enfrentar outros desafios da oncologia pediátrica.”Nos próximos cinco
anos veremos muitas implementações no mundo. Algumas delas não funcionarão.
Vamos aprender muito mais sobre onde elas funcionam, onde não funcionam, e
minha esperança é que comecemos a ser capazes de desenvolver abordagens onde
possamos compartilhar modelos entre os hospitais. Isso é muito importante para
o futuro”, observa Sung.
• Realidade brasileira
Ter dados é essencial
para o treinamento de IA, mas existem alguns desafios em torno dessas
informações. Quais dados foram coletados, a qualidade, a forma como está
armazenado e organizado são alguns deles. Apesar de ser enfrentado em
diferentes lugares do mundo, o Brasil teve uma transformação digital mais
atrasada que outras regiões.
“O que a gente faz no
papel durante quase 30 anos, acaba sendo consumido de maneira muito específica,
ou para um estudo ou pela equipe assistencial. Isso para o mundo do negócio não
tem tanto valor, a gente acaba interpretando as coisas de maneira diferente.
Dentro desse cenário de quatro anos que começamos a coletar de forma digital,
conseguimos construir dashboards. Quando falamos de inteligência artificial uma
das premissas para o uso é ter uma massa de dados”, explica Sandra Shiramizo,
do GRAACC.
O hospital oncológico
pediátrico realizou, em 2023, cerca de 21 mil consultas médicas e 17 mil
aplicações de quimioterapia em 3.605 pacientes. Mesmo compilando os dados de
quatro anos, o montante ainda é baixo, principalmente pensando em cada
condição, sintoma ou tipo de câncer específico. Por isso, a equipe da
instituição ainda dá os primeiros passos, tentando construir um modelo que
colabore na predição de casos em que um paciente internado apresenta sinais de
deterioração clínica.
“Sem dados não temos
com o que trabalhar. Ainda estamos bem embrionário no projeto. Até porque a
gente já tem conhecimento de alguns modelos rodando em outros hospitais, mas
temos a particularidade de ser um hospital muito especializado. Cuidar de
criança é uma caixinha de surpresa. Temos campo para explorar e, de fato,
melhorar a assistência que prestamos ao paciente”, observa Shiramizo.
A gerente de Projetos
& Processos reforça a importância de ter profissionais qualificados para
atuarem na construção desses modelos, com suporte da equipe assistencial e
profissionais da saúde que atuam no dia a dia dos pacientes. São eles que sabem
os problemas que enfrentam junto aos pacientes e captam os dados que serão
utilizados. No entanto, a questão do financiamento ainda é um desafio.
“A gente precisa
investir em tecnologia e não é barato. O retorno também não é instantâneo.
Mesmo para fazer um modelo de inteligência artificial preciso entender a
acurácia e acompanhar este modelo para ver se traz uma resposta satisfatória ou
não. Precisamos definir o que queremos, quais são as linhas para acompanhar,
qual o detalhe do dado que a gente quer acompanhar e investir em capacitação e
treinamento”, explica.
• Captação de dados
Para melhorar a coleta
de informações é preciso ter objetivos claros para orientar a equipe
assistencial, que está na ponta do atendimento ao paciente. No entanto, é
preciso se atentar que o processo de captação de dados não pode tornar o
cuidado mais burocrático e atrapalhar a relação do profissional de saúde com o
paciente.
Existem tecnologias já
em uso no mercado que podem colaborar. É o caso, por exemplo, de wearables como
relógios inteligentes, que captam informações de saúde no dia a dia dos
pacientes. Também existem ferramentas de captação de voz, utilizando inteligência
artificial, que registram o diálogo do médico com o paciente, preenchendo o
prontuário eletrônico automaticamente.
Jamil Cade, médico,
professor e fundador da W3.Care, observa que essas tecnologias, aliadas ao uso
da telessaúde, podem trazer ganhos para as instituições e na coleta de dados.
Em casos de acompanhamentos clínicos, por exemplo, é possível fazer o atendimento
à distância, principalmente em casos de câncer infantil.
“Muitos centros
especializados estão nas capitais e logicamente todo o restante do Brasil tem
casos. A gente consegue levar um bom atendimento ou pelo menos uma orientação
às regiões que não tem centros. A telemedicina é muito importante nesse sentido
para você levar acesso a uma população que não tem aquele profissional”,
observa Cade.
O médico também
observa que o uso da IA pode colaborar com os próprios médicos para trazer
lembretes e alertas relacionados às consultas, que podem contribuir com o
diagnóstico ou tratamento do paciente. Utilizando informações do prontuário
eletrônico, é possível utilizar modelos que contribuam com o cuidado. Cade
também defende a ampliação das discussões sobre telessaúde com outros
profissionais, como enfermeiros e técnicos de enfermagem.
No entanto, a
discussão sobre o uso da telessaúde para auxiliar na coleta de informações
também esbarra na tecnologia. “As barreiras no Brasil são gigantes
principalmente no quesito social. Muitos lugares não têm internet, por exemplo.
Vilas de pescadores e áreas rurais têm mais essa dificuldade. Mas depois de
superada, temos dificuldade do paciente ter uma cultura digital, como uma
pessoa que nunca acessou um sistema de computador poder fazer a consulta”,
observa o fundador da W3.Care, que
reforça o papel da educação nesse sentido.
• Tecnologia, desafios ambientais e novas
competências para líderes da saúde
O avanço exponencial
das novas tecnologias e a urgência por atuações sustentáveis frente às demandas
climáticas estão entre os desafios que pautam as agendas institucionais. No
setor da saúde, que cumpre um papel social inerente ao negócio, esses
movimentos ampliam as exigências por competências específicas dos
profissionais, sobretudo, dos líderes da saúde.
Nossa sociedade tem
sido descrita como frágil, ansiosa, não-linear e incompreensível. Traduzida do
acrônimo BANI, esta definição demonstra a complexidade de um mundo que
experimenta mudanças em maior volume e velocidade. Populações hiper conectadas,
impactadas por informações que circulam velozmente, impõe aos líderes cuidados
redobrados no que diz respeito a uma atuação que evidencie coerência entre
discurso e prática.
Mais recentemente, o
uso das Inteligências Artificiais Generativas (GenAIs) tem se consolidado como
novo marco da revolução tecnológica. No setor da saúde, se por um lado a
Inteligência Artificial (IA) viabiliza o diagnóstico de doenças, otimiza
recursos e prioriza demandas, por outro, há a preocupação de que, dependendo do
seu uso, pode trazer frieza e impessoalidade. É o que diz a Organização Mundial
da Saúde (OMS) em seu recém-lançado “Guia de Ética e Governança da Inteligência
Artificial na Saúde”.
A publicação destaca
seis princípios éticos relacionados às GenAIs: proteção da autonomia humana,
assegurando que profissionais tragam a palavra final em decisões no sistema de
saúde, e não as máquinas; promoção da proteção e bem-estar das pessoas além do
interesse público; garantia da transparência, explicabilidade e
inteligibilidade da tecnologia para que profissionais da saúde tenham total
compreensão do que estão utilizando e em quais condições a tecnologia foi
desenvolvida; promoção da responsabilidade e prestação de contas da IA;
garantia da inclusão e da equidade na aplicação e desenvolvimento da
tecnologia; e, por fim, a promoção de uma IA responsiva e sustentável.
Liderar em meio a esse
cenário exige boas doses de resiliência, muita disposição para mediar e
resolver conflitos – incluindo os geracionais – e ampla escuta ativa. Aqui,
cabe um olhar cauteloso sobre a
habilidade de ouvir atentamente: uma cultura justa, na qual os colaboradores se
sentem seguros e livres para trazer suas sugestões, reportar eventuais falhas,
erros e não conformidades, é o que potencializa – ou abre caminho – para a
prática dessas competências.
Nesse sentido,
retórica não basta: é preciso começar praticando com quem é de dentro. No
ambiente assistencial, falamos que é preciso “cuidar de quem cuida”, o que pode
tomar corpo por meio do fomento à diversidade e inclusão, oferta de cuidado aos
colaboradores, acolhimento, prevenção de riscos, promoção de uma relação de
confiança, transparência e meios de fortalecer uma cultura justa que estreita
vínculos. Isso não pode ser visto como gasto, mas como investimento, que traz
ganhos para o negócio e toda a sociedade.
Em janeiro deste ano o
Fórum Econômico Mundial lançou um relatório em que aponta o calor extremo como
o principal risco global no curto prazo. Em 2025, o Brasil será palco da 30ª
Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30). Mais que apontarmos culpados
para as catástrofes humanitárias, é preciso assumir nosso papel como agentes de
transformação.
Tempos desafiadores
exigem criatividade e inovação. E inovar não significa, necessariamente, fazer
algo novo, e nem pode ser visto como sinônimo de tecnologia, mas buscar formas
diferentes de fazer. É tornar o ordinário extraordinário. Que possamos buscar
na simplicidade do ordinário, começando por quem está a nossa volta, caminhos
para os desafios do presente.
Fonte: Futuro da Saúde
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