segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Narcotráfico ganha terreno na América Central

A América Central tem sido uma tradicional rota de passagem de cocaína produzida em países sul-americanos até os Estados Unidos. Nem a próspera Costa Rica é exceção. Considerado um oásis de tranquilidade na região, o país viu aumentar nos últimos anos a violência ligada ao tráfico de drogas.

Um artigo recente do jornal americano The New York Times gerou revolta entre os costa-riquenhos. O texto cita um documento do Departamento de Estado dos EUA, segundo o qual, "desde 2020, a Costa Rica está entre as principais escalas da cocaína na rota da América do Sul até os EUA e a Europa, o que provocou um aumento dos crimes e da corrupção.

Em entrevista à DW, o ministro de Segurança Pública da Costa Rica, Mario Zamora, concordou com a argumentação do jornal, mas sublinhou que "esse artigo faz referência à situação de 2020, sendo que, em 2024, conseguimos uma redução visível em relação à estatística que essa matéria mostra".

Ainda que o caso da Costa Rica chame a atenção, devemos situá-lo no contexto centro-americano. "É um problema da região", afirmou à DW Alex Papadovassilakis, analista para América Central da organização de jornalismo investigativo InSight Crime.

"Guatemala e Honduras têm sido os países mais fortes do transporte de cocaína. Contudo, o Panamá e a Costa Rica também têm seus lugares nesse panorama, por que possuem portos importantes", explicou. 

O especialista acrescenta que "há países onde o problema tem sido mais grave, mas há rotas de transporte de cocaína em toda a América Central, incluindo El Salvador e Belize. Isso tende a mudar, dependendo das dificuldades esses países encontrarem".

·        Novos elementos

Carolina Duque, pesquisadora do Centro de Estudos Latino-americano sobre Insegurança e Violência (Celiv) da Universidade Nacional Três de Fevereiro, na Argentina, chama atenção que "as nações centro-americanas sempre estiveram na cadeia do narcotráfico como países de trânsito da droga".

Mas, surgiram também algumas novidades. "Na última década, em alguns países como Honduras e Guatemala, apareceram cultivos ilícitos de coca. Ainda que não em grande escala, é possível que as máfias estejam mudando os locais de produção de cocaína em razão da logística e dos custos de produção", disse a especialista à DW.

Um estudo da Universidade de Ohio , nos EUA, publicado na revista Environmental Research Letters afirma que "desde 2017, grupos criminosos organizados vem estabelecendo plantações de coca na América Central para a produção de cocaína. Isso rompeu o amplo monopólio da América do Sul sobre a produção de folha de coca"

Segundo os autores, "47% do norte da América Central - Honduras, Guatemala e Belize - apresenta características biofísicas muito adequadas para o cultuvo da coca"

Outro novo elemento é a utilização de áreas protegidas. "Considero importante chamar a atenção para como o narcotráfico e as máfias começam a usurpar terras e territórios de áreas protegidas para instalar pistas clandestinas, plantações [...] o que também implica em desmatamento e acabar com a biodiversidade", afirma Carolina Duque.

Por outro lado, a pesquisadora fala de uma "diversificação dos mercados criminosos” que também facilita o tráfico de drogas. Ela menciona como exemplo o fato de que "o tráfico de pessoas aumentou na América Central" no contexto da migração.

·        Corrupção endêmica

De modo geral, o problema subjacente é geralmente a fraqueza institucional e a corrupção. "O exemplo mais forte é o de Honduras. O ex-presidente Juan Orlando Hernández foi condenado nos Estados Unidos por tráfico de drogas. Esse é um caso extremo de um padrão observado em muitos países", diz Papadovassilakis.

"Não é algo novo, mas é gravíssimo para a democracia, porque as instituições respondem aos interesses do crime organizado, e não às necessidades da população", afirma. Ele acrescenta que, "na Guatemala, não estamos falando apenas de governos locais. Os traficantes de drogas também conseguiram posicionar aliados estratégicos no Congresso, nos ministérios, por exemplo, no Ministério do Interior, que controla a polícia. Essa infiltração "resulta em uma grande proteção aos grupos de tráfico de drogas".

Duque também destaca a corrupção. "Isso já é endêmico. O Estado se torna, através da corrupção, um mercado, por assim dizer, onde os funcionários também participam de diferentes maneiras do negócio do tráfico de drogas". Ela lamenta que Honduras tenha encerrado o acordo de extradição com os Estados Unidos.

·        Políticas malsucedidas

Na opinião do especialista em crimes da InSight, "os Estados centro-americanos não só não têm capacidade para enfrentar os grupos de narcotraficantes, como também não há vontade política, porque em vários países os traficantes de drogas conseguiram corromper as instituições estatais. Levei quase seis anos investigando o tráfico de drogas na América Central e não vi nenhuma política inovadora que tenha conseguido reduzir a incidência do tráfico na região", afirma.

Ele sublinha que "as autoridades costumam se concentrar na apreensão e destruição de carregamentos e plantações de droga, mas isso não tem levado a resultados concretos a longo prazo".

Papadovassilakis defende políticas mais focadas na prevenção e não tanto na realização de apreensões e prisões. Ele também diz que devemos olhar para o que está acontecendo nos mercados de consumo. "Na Europa e nos EUA, as pessoas consomem cocaína sem pensar nas consequências para os países da América Central, que não têm capacidade para lidar com o tráfico de drogas."

 

¨      Após dez anos, massacre em Ayotzinapa ainda assombra México

Na noite de 26 setembro de 2014, estudantes viajavam em ônibus de Ayotzinapa para participar de uma manifestação contra o então prefeito da cidade de Iguala, no estado de Guerrero, no México. Eles foram parados pela polícia do município, que disparou contra eles e matou seis no local. O que aconteceu depois disso até hoje é um mistério. Um ônibus foi encontrado, mas três desapareceram. Neles estavam 43 passageiros, que nunca mais foram vistos.

As investigações levantam a possibilidade de os estudantes terem sido confundidos com uma gangue rival do grupo narcotraficante dominante na região, o "Guerreros Unidos". Eles foram forçados a entrar em viaturas e entregues ao cartel. O caso até hoje não foi esclarecido pela Justiça, e ninguém condenado. Não há nenhum sinal de que eles estejam vivos.

Testemunhas relataram sobre a participação e conivência da polícia e até de militares do Exército no crime, recebendo ordens diretas de traficantes. O atual governo de Andrés Manuel López Obrador reconheceu que o desaparecimento dos estudantes foi um crime de Estado, no qual autoridades de todos os níveis estavam envolvidas.

Dez anos depois do caso – um dos mais emblemáticos na história mexicana –, a violência das organizações criminosas e o tráfico de drogas ainda causam estragos profundos não apenas em suas vítimas diretas. Pesquisadores apontam que o massacre e o desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa geraram um trauma coletivo. O que acontece com a psique de um país submetido a esses níveis de pressão?

De acordo com o Índice de Paz do México 2023, publicado pelo Instituto de Economia e Paz, os homicídios anuais associados ao crime organizado quase triplicaram em sete anos – eram 8.000 em 2015, passaram a 23.500 em 2022. Embora as taxas de sequestro, tráfico de pessoas e crimes graves tenham diminuído nos últimos anos, a incidência do crime organizado cresceu.

"O grande número de vítimas deixa cada vez mais traumas pessoais, mas também sociais", disse à DW Markus Gottsbacher, do Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento (IDRC), no Canadá.

"A sociedade mexicana foi traumatizada psicossocialmente. Esses são impactos e danos que vão de uma experiência pessoal a uma experiência coletiva e social. Eles são reproduzidos e têm efeito não apenas em um determinado momento, mas também transgeracionalmente", disse à DW Clemencia Correa, diretora da organização de acompanhamento psicossocial Aluna no México.

"Não se trata de traumas individuais, nem de um conjunto de traumas. É um trauma que se estende por diferentes dimensões da sociedade e faz com que o tecido social se rompa pouco a pouco", acrescenta Correa.

·        A violência como parte da identidade e das rotinas

"O caso dos desaparecidos de Ayotzinapa é uma ferida aberta, um luto inacabado que continuará enquanto a verdade não for conhecida. Já foi visto que os impactos do trauma duram muito tempo, são de longo prazo", afirma o psicólogo Alfredo Guerrero, professor da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). "Na psique coletiva há um retraimento, há medo, em casos extremos há até terror."

Gottsbacher pontua que "é difícil falar sobre a psique de um país inteiro, especialmente em um país tão heterogêneo. Há muitas pessoas que vivem em suas bolhas de segurança privilegiada, enquanto outras enfrentam a violência mais diretamente".

A psiquiatra Dení Álvarez enxerga "uma mudança na identidade, ou seja, na maneira como os próprios mexicanos qualificam ou definem sua identidade como país. Estamos começando a considerar a violência no imaginário social como parte de nossa vida cotidiana".

A insegurança faz com que as pessoas mudem seus hábitos, saiam menos ou deixem de ir a determinados lugares. "A violência atinge os espaços de convivência social. Um dos primeiros efeitos é a deterioração da vida comunitária", disse a especialista.

·        O perigo da normalização

"Todos os dias há relatos de violência, desaparecimentos, assassinatos, e também há conluio entre agentes estatais e o crime organizado. Estamos vendo uma banalização e normalização da violência", avalia Gottsbacher. Isso se manifesta em uma falta de empatia social com as vítimas e há também uma certa amnésia coletiva, uma negação do problema.

"Os números são tão grandes que há uma despersonalização. No início, esses crimes horríveis causavam muito escândalo, mas agora não mais. A desconfiança, a raiva, a deslegitimação e a estigmatização das vítimas se infiltram, o que tem um impacto sobre a coesão social", acrescenta o especialista do IDRC.

A normalização, embora necessária para que as comunidades não fiquem paralisadas pelo medo ou pelo isolamento, tem conotações perigosas, adverte Álvarez: "Ela não ativa mecanismos para resolver o problema da violência de forma organizada e facilita sua reprodução em outros espaços sociais. As crianças expostas a certas atrocidades podem acabar considerando normal ou aceitável cometer certos atos de violência".

"O processo de naturalização é como um mecanismo de defesa em face de décadas de violência que envolveram trauma, medo, desesperança, apatia e desconfiança", diz Guerrero. Em sua opinião, o povo mexicano tem uma alta capacidade de resiliência e ele acredita que a melhora em alguns índices de criminalidade relatados pelo governo pode estar gerando uma diminuição do medo e um aumento da confiança em nível social. 

Entretanto, ele reconhece, com relação ao caso Ayotzinapa, que "se não houver verdade, os desaparecidos não forem encontrados e o sentimento de impunidade for mantido, será difícil curar a ferida aberta na sociedade".

·        Ruptura do tecido social

Viver em um continuum de violência impede que a sociedade processe sua dor. "O trauma psicossocial gera impactos muito profundos, incerteza e uma dinâmica de relacionamentos, que também são afetados", diz Correa.

"Com os fenômenos de violência, há uma perda de confiança moral, que é, acima de tudo, a perda de confiança em estranhos, pessoas que não são membros do nosso círculo mais próximo", diz a psiquiatra Dení Álvarez.

A coeditor do livro Saúde mental e violência coletiva. Uma ferida aberta na sociedade indica que os grupos tendem a se isolar e a convivência com aqueles que não são considerados familiares ou conhecidos diminui. Quanto menos as pessoas vivem juntas na sociedade, menor é a capacidade de organização comunitária, o que, por sua vez, dificulta a promoção do desenvolvimento local. Redes de apoio também são necessárias para que as vítimas superem eventos traumáticos.

 

Fonte: DW

 

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