Crise climática coloca resiliência dos
sistemas de saúde à prova
A crise climática já é
a maior ameaça à saúde do Século 21, de acordo com a Organização Mundial da
Saúde (OMS). A entidade alerta que, entre 2030 e 2050, a previsão é de que as
mudanças climáticas provoquem 5 milhões de mortes adicionais – 250 mil ao ano
–, fruto de doenças respiratórias, transmissão de arboviroses – como dengue e
malária – e agravamento de doenças crônicas. Os custos diretos dos danos
causados à saúde acompanham esse quadro e podem chegar à casa dos US$ 4 bilhões
por ano até 2030. Diante desse cenário, discutir estratégias para preparar os
sistemas de saúde para as consequências dos eventos climáticos se tornou pauta
urgente, uma vez que, para se adaptar às consequências no futuro, muitas
decisões precisam ser tomadas agora, no curto prazo.
“A crise climática
ameaça anular o progresso realizado nos últimos 50 anos no desenvolvimento, na
saúde global e na redução da pobreza, e ampliar ainda mais as desigualdades de
saúde existentes”, alertou Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente
Israelita Brasileira Albert Einstein, durante o painel “Resiliência Climática e
Saúde: Impactos das mudanças climáticas sobre as populações e os sistemas”,
realizado na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, na
última quinta-feira (19).
O debate fez parte da
programação do “SDGs in Brazil”, maior encontro de sustentabilidade corporativa
do mundo, realizado pela rede brasileira do Pacto Global da ONU. O fórum tem
como objetivo avaliar o avanço dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) no país, e Klajner é porta-voz do ODS 3 – Saúde e Bem-Estar, no Programa
de Liderança com ImPacto, do Pacto Global.
Na mesa de debate, que
também teve a participação de Márcia Castro, professora de Demografia no
Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard,
foi abordada a importância do desenvolvimento de um ecossistema de saúde que suporte
as demandas trazidas pelo novo cenário. “Sistemas de saúde resilientes às
mudanças climáticas são aqueles capazes de antecipar, responder, enfrentar,
recuperar e se adaptar aos choques e ao estresse relacionados ao clima, para
trazer melhorias sustentadas na saúde da população”, explicou Klajner.
Durante o encontro, os
especialistas defenderam soluções em diversas frentes. A criação de planos de
contingenciamento ou de catástrofe para garantir a prestação de serviços
durante eventos extremos e surtos de doenças sensíveis ao clima foi uma delas.
Mas, segundo Klajner, é preciso ir além dos eventos extremos para pensar também
nas alterações climáticas mais perenes. “É a resiliência do sistema de saúde
como um todo, não é de um hospital ou de um outro equipamento, para lidar tanto
com os eventos mais agudos, como chuvas e secas intensas ou queimadas, quanto
com alterações climáticas que vão ficar um pouco mais.”
Segundo Márcia Castro,
a dimensão que os eventos climáticos tomaram recentemente é resultado da falta
de ação preventiva, e, para evitar a piora do cenário, é preciso focar no
desenvolvimento de um planejamento a longo prazo, com um olhar especial para a
atenção primária.
“A gente não tem um
planejamento de longo prazo, não tem medidas de mitigação que já antecipam o
que vai acontecer, e o resultado é o que temos vivido hoje. Então, precisamos
pensar a longo prazo. E um dos pontos chaves de um sistema de saúde resiliente é
uma atenção primária resiliente, porque a atenção primária é a espinha dorsal
de qualquer coisa que o sistema de saúde faça. E ela está doente: falta gente,
falta treinamento, falta redirecionamento. Isso não é gasto, é investimento.”
• Eventos extremos recorrentes no Brasil
O debate sobre este
tema se torna ainda mais urgente diante do que o Brasil tem enfrentado nos
últimos meses: as fortes enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, e as
queimadas que cobriram de fumaça grande parte do país.
Neste último caso,
entre 1 e 20 de setembro, foram registrados cerca 65 mil focos de incêndio no
Brasil, segundo dados da plataforma BDQueimadas. A fumaça decorrente delas
chegou a cobrir 60% do território nacional e, no primeiro fim de semana de
setembro, quase 200 cidades registraram umidade do ar menor ou igual a 20%. O
nível ideal de umidade do ar para o organismo humano é entre 40% e 70%, segundo
a OMS.
Por consequência, a
incidência de doenças respiratórias também sofreu um pico no período. Dados
observados no pronto-socorro das unidades privadas do Einstein em São Paulo,
por exemplo, mostram uma alta no atendimento de pacientes diagnosticados com
CIDs relacionados a problemas respiratórios nas semanas que tiveram uma maior
incidência de fumaça das queimadas na capital paulista.
O ar com baixa umidade
pode provocar o ressecamento das mucosas das vias aéreas, o que aumenta a
vulnerabilidade para infecções virais e bacterianas. Para alguns grupos, o
cenário é mais sensível. “As queimadas geram material particulado que pode
provocar inflamações. Em pessoas fragilizadas ou com fatores de risco
associados, aumentam os riscos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC)”,
pontuou Klajner.
Outra consequência é a
mudança no perfil geográfico de incidência de doenças provocadas por vetores,
como é o caso da dengue. Nos primeiros meses de 2024, a região das Américas
registrou mais de 3,5 milhões de casos e mais de mil mortes pela doença, segundo
a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Em 21 de setembro, o painel de
atualização do Ministério da Saúde mostrava o acúmulo de mais de 6,5 milhões de
casos, e pelo menos 5 mil óbitos decorrentes da arbovirose. Uma marca
histórica.
“A mudança climática
pode mudar o limite geográfico de algumas doenças, porque você tem condições
mais favoráveis para vetores ou para sobrevivência de patógenos. E é importante
deixar claro que algumas áreas podem começar a ter menos incidência de determinadas
doenças, não é só um cenário de aumento. A mudança climática é um evento a
longo prazo e estamos vendo agora manifestações dessa tendência”, aponta
Castro.
As enchentes também
entram nesse rol de eventos extremos, como as ocorridas em maio de 2024, no Rio
Grande do Sul e afetaram cerca de 900 mil pessoas diretamente. Um dos
principais desafios nessa situação é a exposição prolongada a água e lama
contaminadas, o que eleva a possibilidade de contato com bactérias e vírus que
causam, por exemplo, a leptospirose.
Na ocasião, ao menos
290 estruturas de serviços de saúde foram atingidas de alguma forma pela
tragédia, avaliou o Ministério da Saúde. Isso reforça a importância da
discussão de como a infraestrutura dos serviços de saúde é desenhada – outra
das demandas apontadas no evento em Nova York. “Esses eventos extremos acabam
com a capacidade do sistema de saúde de entregar o atendimento a uma população.
E, geralmente, as pessoas mais vulneráveis, que já têm menos acesso, passam a
ter menos ainda”, disse o presidente do Einstein.
O problema não é
exclusivo do Brasil. No continente americano, 67% das unidades de saúde estão
em áreas de risco. Só na última década, mais de 24 milhões de pessoas tiveram o
acesso aos serviços de saúde interrompido em decorrência de danos às infraestruturas,
de acordo com informações da OPAS.
• Foco nas populações vulneráveis
A própria OMS salienta
que, embora o impacto da catástrofe climática atinja a todos, são as pessoas em
vulnerabilidade social – comumente indivíduos não-brancos, populações
quilombolas e ribeirinhas – as primeiras a serem afetadas de maneira mais
drástica, mesmo numa posição de menor contribuição para as causas desse
colapso. Por isso, a organização defende que ações para mitigar os danos da
crise climática devem considerar as desigualdades sociais existentes.
Castro explica que há
dois perfis de populações vulneráveis: aquelas vulneráveis por definição, como
indígenas e ribeirinhos, que dependem do nível do rio e residem em territórios
isolados, e populações que são vulneráveis pela maneira como a habitação foi
desenvolvida: “Há comunidades que vivem em áreas com uma inclinação de mais de
30 graus, que não deveriam ser ocupadas. Temos populações vivendo em áreas que
não têm acesso à infraestrutura básica, e são pessoas que moram nesses locais
porque não têm para onde ir.”
Para a pesquisadora, a
vulnerabilidade habitacional é um fator que caminha junto aos eventos
climáticos extremos. “Vemos deslizamentos em cidades como Maranhão, Pernambuco,
Rio de Janeiro, e as famílias retornam para a mesma área de risco após o
desastre, porque não há uma política de moradia. A vulnerabilidade é
constituída a partir de camadas, e são camadas de desigualdade que acabam
aumentando diante dos eventos climáticos”, aponta.
Nesse sentido, o
desenvolvimento de sistemas de monitoramento passa a ser indispensável. Este
acompanhamento é justamente o objetivo de um projeto que o Einstein inicia
agora em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Proadi-SUS. O foco é
analisar a situação de saúde de populações vulneráveis cruzando dois tipos de
dados: iniquidades em saúde existentes com os aspectos socioambientais e
climáticos. A avaliação será feita nos seis biomas brasileiros, nas principais
capitais do país.
As informações
coletadas serão apresentadas ao Ministério para auxiliar na tomada de decisões
e na melhora da saúde dessas populações. Estão previstos o mapeamento de
pacientes nestas microrregiões que tenham doenças crônicas, para que sejam
avisados com antecedência sobre excesso de poluição ou calor e possam planejar
sua rotina. A iniciativa contemplará também o monitoramento e registro do
surgimento ou agravo de riscos por meio de sensores que captam dados de
poluentes e clima via internet, além do planejamento econômico e de recursos
públicos.
“Nós já temos feito um
mapeamento da condição de saneamento da acessibilidade de populações
quilombolas à saúde, a disparidade que já existe e a possível detecção da
alteração climática que as afetem”, destaca Klaner. “Quando se coloca a coleta
de dados de modo transversal e as verticais de vulnerabilidade dessa população
no que diz respeito à questão climática, temos informações importantes a serem
compartilhadas com o governo, para que sejam tomadas as medidas necessárias.”
Há ainda outro
projeto, intitulado de Vigiambsi, também em parceria entre o Einstein e o
Ministério da Saúde, que visa desenvolver uma plataforma de integração de dados
de saneamento e qualidade da água com dados de saúde das populações em 10
Distritos Indígenas (cerca de 200 mil habitantes). A iniciativa pretende
fornecer subsídios para o planejamento de ações de saúde e vigilância ambiental
destas populações.
Para Klajner, o
momento pede a colaboração e compromisso de todos. “Esse não é um problema do
governo e sim de todos, já que o impacto traz ônus inclusive financeiro para
toda a população. Por isso, é importante uma união de forças entre sistemas
público e privado, com diferentes empresas viabilizando projetos. O debate
sobre clima e saúde precisa crescer, abarcar todos os entes envolvidos nisso,
em preparação e mitigação”, concluiu.
Fonte: Futuro da Saúde
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