J. Carlos de Assis: O Estado mínimo e os
desastres climáticos
É uma ironia da
História que as mudanças climáticas, provocando desastres extremos em todo o
planeta, tenham encontrado no mundo e no Brasil grupos de direita ou de extrema
direita que vêm sustentando há décadas a ideologia neoliberal, cuja síntese é
justamente a promoção do Estado mínimo. De fato, em poucos momentos da História
o País precisou tanto, como agora, de um Estado forte, para dar conta dos
imensos custos de reconstrução e de prevenção dos danos materiais e humanos
devidos às mudanças do clima. Isso se manifestou principalmente no próprio Rio
Grande do Sul.
Contudo, os principais
dirigentes desse estado, o governador Eduardo Leite, do PSDB, e seu aliado
Sebastião Melo, prefeito da capital Porto Alegre, do MDB, têm-se destacado como
próceres aliados em favor do neoliberalismo. Melo fez um verdadeiro estrago na
legislação ambiental, suprimindo dela centenas de artigos e eximindo
investidores de apresentar pareceres técnicos para construir empreendimentos em
áreas de conservação. Melo também assumiu uma posição privatista, sob críticas
de que grandes projetos urbanísticos estavam sendo aprovados, contrariando
normas ambientais. Com isso, o extremismo privatista, que, nos tempos de
Bolsonaro, efetivamente subordinou os interesses sociais aos interesses
específicos de blocos econômicos, confronta-se agora com as consequências de
sua própria ideologia, que tem tido como meta afundar o que se tornou agora seu
próprio barco de salvação, o Estado. No caso dos bolsonaristas isso não é de
estranhar, porque sua radicalização não tem qualquer compromisso com os
interesses reais da Nação. Contudo, seus aliados na prática, PSDB e MDB, que se
dizem sociais-democratas, não são menos radicais quando se trata de
desestatizar. Veja-se o que fez Fernando Henrique Cardoso em seus governos.
O neoliberalismo não
tem sido apenas um projeto econômico de apropriação pelas classes dominantes de
parte relevante da renda produzida pelas classes dominadas. É um projeto de
utilização consciente da Economia como instrumento para a destruição do Estado
Nacional, de forma a limitar a ação deste em favor das camadas mais vulneráveis
da população e mais necessitadas de apoio estatal. É na implementação desses
dois objetivos que se manifesta o jogo político que, no Brasil, tem colocado
secularmente em planos opostos conservadores e progressistas.
Agora os
conservadores, hoje denominados neoliberais, se encontram diante de um impasse.
Se insistirem na doutrina do Estado mínimo estarão privando a sociedade de seu
principal suporte para se defender ou se adaptar aos desastres climáticos
extremos. Não se trata de ideologia. É um princípio de realidade. Leite e Melo
foram correndo atrás do governo federal para obter recursos absolutamente
necessários para que pudessem superar as tragédias climáticas que as populações
que governam estão sofrendo. Um Estado fraco não poderia socorrê-los. E, se
negasse o socorro, o governo federal não estaria se opondo a eles, mas ao povo
gaúcho.
Se há dúvidas quanto a
isso, o Estado forte é fundamental principalmente para países em
desenvolvimento ou emergentes, como o Brasil - onde o setor privado não tem
condições de responder por todos os investimentos de infraestrutura essenciais
para o desenvolvimento sustentável. Entre esses, destacam-se agora as medidas
de prevenção e as ações que devem ser adotadas para enfrentar os danos
provocados pela crise climática. O setor privado não tem interesse em fazer
isso, a não ser que receba compensações dadas pelo próprio Estado.
É possível que se
tenha de voltar até os anos 1930 do século passado para entender como nasceu e
se desenvolveu a ideologia do Estado mínimo no Brasil, hoje francamente
dominante e, na Era dos desastres climáticos extremos, também altamente
perigosa para a sociedade. Ela representou, originalmente, uma reação liberal
por parte das oligarquias rurais à centralização do poder político no Estado
Nacional centralizado, comandado justamente por um gaúcho, o presidente Getúlio
Vargas, chefe da Revolução de 30 e, especialmente, autor do golpe que a
consolidou com o Estado Novo em 1937.
Por Vargas foram
criados importantes órgãos do poder central em setores-chave da administração
pública, como IBGE, DASP, Conselho Federal de Comércio Exterior, Conselho
Federal de Economia, Conselho Nacional de Petróleo, Conselho de Mobilização
Econômica. Tratava-se do ponto inicial da modernização do país, sob a condução
do Estado, em choque direto com os oligarcas conservadores e seus asseclas, que
queriam manter o sistema de poder político descentralizado através das
províncias, que governavam como mandatários supremos.
Getúlio iniciou
paralelamente a construção da infraestrutura industrial e econômica do Brasil.
Usando, com habilidade, o propósito norte-americano de nos afastar dos braços
de Hitler, aceitou a oferta dos Estados Unidos de ajudar a criar a Companhia
Siderúrgica Nacional, ou CSN, em troca da construção de uma base militar contra
a Alemanha, no Rio Grande do Norte. Com isso surgia a indústria siderúrgica
brasileira, que seria complementada por outra significativa iniciativa do
Presidente, a criação da Companhia Vale do Rio Doce. Contando com aço e com
minério, e futuramente com petróleo, teríamos as bases de uma economia
industrial.
Diferente do movimento
tenentista que o apoiou na Revolução, Vargas tinha importantes compromissos
sociais, tendo sido o maior exemplo desses a criação do salário mínimo, que
enfureceu ainda mais as oligarquias rurais remanescentes e o empresariado urbano.
Isso, contudo, deu-lhe a marca progressista que sobreviveu por décadas. As
forças conservadoras, porém, preparavam-se para derrubá-lo em 1937. Ele foi
mais rápido. Percebendo que não tinha sucessor capaz de enfrentá-las,
antecipou-se e, com apoio do Exército, criou o Estado Novo.
A guerra que se
desenrolaria na Europa a partir de 1939 traria consequências políticas
importantes para o País. O Brasil ditatorial, de forma pragmática, havia se
aliado ao bloco democrático contra Hitler, e essa contradição, após a vitória
dos democratas, deu margem a uma crescente mobilização política interna contra
o antigo ditador, depois da democratização de 1945. A eleição para presidente
do general Eurico Dutra, ministro da Guerra de Getúlio, muito influenciado
pelos Estados Unidos, representou uma virada política importante em favor dos
conservadores liberais. Dutra adotou medidas ultraconservadoras, no plano
econômico, em confronto direto com o legado progressista de Vargas, inclusive
esgotando as reservas externas do País acumuladas durante a Guerra.
Entretanto, Getúlio
voltou ao poder, pelo voto, em 1951. Os conservadores não aceitaram facilmente
esse fato. Embora responsável pela maior revolução na infraestrutura econômica
do País, de interesse concreto do empresariado e, sobretudo, do Brasil, temiam
a possível volta a políticas sociais dele e de seu grupo, que atingiam seus
interesses diretos. Disso resultou uma aliança improvável entre a UDN (União
Democrática Nacional), liderada por um político extremamente carismático e de
convicções democratas, como Carlos Lacerda, e as velhas oligarquias da UDN,
agora urbanizadas em torno poder econômico crescente dos setores industrial e
bancário.
Crises políticas
recorrentes, entre as quais a que levou Vargas ao suicídio, abalaram o País
entre os anos 50 e 60, opondo conservadores e progressistas. Juscelino, o
principal herdeiro de Getúlio, foi o último progressista a cumprir, com um
notável programa de desenvolvimento, um mandato presidencial completo. Foi
sucedido por Jânio e Jango, este também herdeiro de Vargas e progressista.
Porém, foi atropelado pelo golpe militar de 1964. O golpe reverteu as pautas
sociais de Getúlio e sua obsessão na defesa do Estado Nacional. Manteve, porém,
o objetivo de fortalecer a infraestrutura econômica do País, à custa de um
elevado endividamento externo.
O período que sucedeu
ao golpe caracterizou, também, o início do desmonte do Estado Nacional pelos
conservadores em todos os seus aspectos. É aí que a política econômica desponta
como instrumento de aliança do grande capital interno e externo, com o suporte
das Forças Armadas, sob o pretexto inicial de afastar o risco comunista, mas,
de fato, com o objetivo por parte das oligarquias civis dominantes de
desconstrução dos mecanismos institucionais criados por Getúlio para fortalecer
os trabalhadores e as classes desfavorecidas contra seus apetites desmedidos.
É igualmente aí que
surge o aristocrata neoliberal no Estado, conquistando postos de carreira
privilegiada para destruí-lo por dentro, como fizeram, ainda no Governo Castelo
Branco, seus principais ministros liberal-conservadores, Roberto Campos e
Octávio Gouvêa de Bulhões. Pelo Decreto-Lei 200, da época, foram eliminadas as
precauções importantes de Getúlio contra as oligarquias rurais a fim de
preservar o Estado de sua apropriação por grupos de interesse, introduzindo o
princípio do concurso público para acesso e progressão nas carreiras da
administração pública. O Decreto, como se sabe, passou depois a proteger apenas
as carreiras superiores.
Embaixo, na medida em
que o processo de desmonte avançava, permitiu-se inclusive a terceirização de
serviços públicos que deveriam ser prestados exclusivamente pelo Estado,
transferindo-os a concessionários privados, com a inevitável consequência do
aumento de seus custos para o Estado e de degradação de sua qualidade.
Entretanto, são os programas de privatização, exigidos pelos Estados Unidos
para a negociação da Dívida Externa conduzida pelo FMI, que representaram uma
verdadeira expropriação do patrimônio público, construído com suor e sangue do
cidadão brasileiro, o qual, uma vez privatizado, passou a render dividendos
bilionários para particulares que não precisaram de investir previamente em sua
construção um único centavo.
Esses ativos seriam
extremamente valiosos, hoje, como garantias do Estado para ter acesso a
investimentos e créditos externos a fim de criar um programa abrangente para
minimizar os efeitos e fazer a prevenção dos desastres climáticos extremos.
Imagine se uma megaempresa como a Vale do Rio Doce, cujo controle foi vendido
por menos de um terço do que valia, lançasse hoje, na condição de estatal,
títulos verde, garantidos por seu imenso patrimônio, para absorver recursos
externos e internos para o financiamento da preservação ambiental!
Tudo isso tem sido
parte da ação deliberada dos conservadores/neoliberais, apoiados do exterior,
para enfraquecer o Estado Nacional e nos deixar à deriva no sistema
internacional controlado pelas potências estrangeiras. Já o controle político
da economia, dentro do País, garante a apropriação da renda nacional pelas
classes dominantes internas e externas, a serviço das quais se alinham a grande
mídia, a aristocracia dos servidores públicos que asseguram a si mesmos
salários crescentes, e os políticos corruptos que, formando blocos como o
Centrão, fazem de seus mandatos meios para assaltar os cofres públicos através
de emendas parlamentares.
No plano político,
antes da redemocratização que se seguiu ao fim do regime ditatorial, houve, na
campanha das Diretas Já para derrubá-lo, uma breve articulação entre
progressistas e conservadores, estes ainda não chamados de neoliberais, para
desmontar o controle hegemônico dos militares sobre o Estado nacional. Esses
haviam atendido aos interesses das classes dominantes em dois sentidos
contraditórios: primeiro, controlando os trabalhadores e as massas em suas
reivindicações econômicas e socais; segundo, complementando o processo de
construção da infraestrutura econômica iniciado por Vargas e pelos presidentes
progressistas que haviam assumido seu legado, Juscelino Kubistchek e João
Goulart.
Na redemocratização,
quando a vitória da aliança entre conservadores e progressistas deu ao PMDB,
que a liderava, uma posição política hegemônica, o presidente Sarney,
inicialmente cercado por um ministério conservador herdado do não menos
conservador Tancredo Neves, que morreu antes de assumir a Presidência, ofereceu
a Dilson Funaro o Ministério da Fazenda. Funaro, um empresário progressista de
São Paulo, trouxe para o Governo, como seus principais assessores, Luiz Gonzaga
Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello, destacados economistas progressistas
da Unicamp.
Dessa forma, com um
toque político surpreendente e inesperado em sua biografia, o Presidente, que
havia sido um dos próceres do PDS, partido que sucedeu à Arena da ditadura,
cercou-se de um grupo de conselheiros políticos de vanguarda, que o levaram a
decretar o Plano Cruzado, em 1985, a mais progressista tentativa de
estabilização da economia entre as muitas que viriam depois. É verdade que o
Plano Cruzado fracassou. Não por seus erros, porém. Nem pela falta de coragem
de Sarney de baixá-lo, no início. Mas por sua falta de coragem posterior em não
complementá-lo com uma moratória da Dívida Externa, que era uma condição
fundamental para a estabilidade interna.
O Plano Cruzado
determinou um ponto de inflexão entre neoliberais e progressistas nos domínios
econômico, social e político. E teve efeito direto na elaboração da Carta de
1988. A linha neoliberal assumiu seu caráter político em face da linha
progressista, dissimulando sua posição real por trás da concordância com os
dispositivos constitucionais que asseguram amplos direitos sociais à cidadania.
Contudo, no plano econômico, revelou abertamente seu caráter conservador, em
especial na política fiscal-monetária e na posterior Lei de Responsabilidade
Fiscal, que, desde então, amarra o desenvolvimento sustentável do Brasil.
Temos de considerar
que não houve concretamente controle político no Brasil por parte de
progressistas, a não ser por Vargas e seus sucessores aliados, e no breve
momento acima assinalado de Sarney. Mesmo com Lula, antes e agora, há uma
oscilação entre medidas progressistas e conservadoras, ora sociais, ora
econômicas, essas em geral dominantes, por causa da forte influência da mídia
controlada pelo grande capital nas decisões políticas do Estado. Ademais, somos
uma democracia e, como toda democracia, temos de nos apoiar no voto popular.
Mas o voto popular no Brasil é majoritariamente o voto do semianalfabeto, do
evangélico ingênuo, do pobre comprado a dinheiro e, em outros meios, do voto
suscetível à manipulação pelos ideólogos das classes dominantes.
Diante disso, a
política econômica que foi introduzida no País com o golpe de 64 reflete ainda
hoje as características essenciais do neoliberalismo contra os progressistas.
Da forma como está inscrita na Constituição de 88, e conforme foram sendo
acrescentados depois dispositivos legais coerentes com ela, mantém, em nossa
estrutura fiscal-monetária, seus fundamentos neoliberais. Nesse ponto, ela tem
grande coerência econômica, pois está sujeita à hegemonia conservadora apoiada
pela grande mídia e sustentada pelo grande capital e por uma maioria
parlamentar corrupta no Congresso, contra a qual os progressistas não têm força
para se contrapor.
A única forma de se
romper esse círculo neoliberal de ferro em torno das políticas econômicas que
mantêm o Brasil prisioneiro das forças conservadoras e regressivas, que impedem
seu desenvolvimento sustentável a altas taxas, é alguma força externa que, por
ventura, possa desafiá-lo a partir de fatos incontornáveis da realidade
objetiva. Poderia ser, por exemplo, uma grande crise internacional, diante da
qual teríamos de reagir a qualquer custo. Ou pode ser as crises causadas pelas
mudanças climáticas, que nos colocam o desafio da própria sobrevivência,
exigindo, para confrontá-las, a reconstrução do Estado Nacional nos termos de
Getúlio Vargas.
Entretanto, como o
neoliberalismo está incrustado na consciência de grande parte das elites
financeiras brasileiras, inclusive altos funcionários públicos, os quais
comandam o aparelho midiático, qualquer tentativa de escapar de seu “quadrado”
esbarra em terríveis resistências. Entre essas destacam-se as chantagens
segundo as quais, se tentarmos evitar as políticas neoliberais, o Brasil
enfrentaria uma corrida cambial desastrosa. Isso se aplica sobretudo à defesa
da política fiscal e monetária, sobretudo dessa última, que sustenta uma moeda
financeira e taxas de juros extravagantes, inexistentes em qualquer outra parte
do mundo, e que garantem transferências imensas de renda de pobres para ricos.
Na verdade, temos uma
posição favorável em reservas internacionais para funcionar como garantias de
empréstimos externos para investimentos internos em máquinas e equipamentos
necessários para o desenvolvimento sustentável da indústria (US$ 355 bilhões),
e recursos naturais abundantes para que o País possa progredir. A partir desses
recursos, e com uma prévia e profunda mudança em sua política econômica,
superando divergências ideológicas, o País poderia entrar numa fase de
desenvolvimento a altas taxas. Isso implicaria, na era dos desastres climáticos
extremos, voltar ao Estado máximo da era getulista para dar suporte ao que virá
a ser exigido pela Sociedade a fim de garantir a sua segurança e sobrevivência.
Fonte: Brasil 247
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