Marcelo Siano Lima: Marçal - parasita de
uma democracia impotente
O goiano Pablo Marçal,
candidato a prefeito da cidade de São Paulo pelo PRTB, que se declara cristão evangélico,
é um ator político estranho ao corpo da democracia liberal. Ele age como o
parasita que suga as energias do hospedeiro, não para se alimentar, mas para
levá-lo ao desaparecimento, quando, então, poderá se expor à luz, desprovido
das vestes enganosas, com suas feições reais, bem distintas dessas exigidas
pela estética da democracia liberal de todo personagem histórico que deseje
protagonizar o grande espetáculo das eleições, que constitui sua essência aos
olhos de todas e de todos. Marçal, como Jair Bolsonaro e uma farândola de
outros seres cínicos e sinistros, despreza a democracia liberal e trabalha de
forma constante para o seu colapso em público. Mas, sendo ela a norma nas
sociedades ocidentais, sabe dela valer-se para, no poder, matá-la de forma
sacrificial, simbolizando o fim de uma era e de seu modo de vida.
Ao longo da história,
desde o século 20, a democracia liberal tem dado reiteradas provas de
incapacidade – ou de falta de vontade – de expurgar, de seu interior, os
organismos vivos que nele parasitam, que o corroem e lhe tiram a necessária
dinâmica. Ela se perde no seu próprio regramento, em seu sistema de crenças e
símbolos, e, fundamentalmente, na imagem que tem de si, fruto do
desenvolvimento do capitalismo e das lutas sociais ao longo da história. A
visão que projeta da própria imagem é, portanto, distorcida, egóica, narcísica,
e, sob o ponto de vista da história, estéril e impotente diante da realidade
que consome suas energias e que a deforma. Insiste, como que encantada pela
pulsão de morte, a ver-se perfeita, com algumas marcas do tempo, mas nunca
deteriorada pela ação, em seu organismo, de seres parasitários que sugarão suas
energias até o alcance de seu fenecimento.
O fascismo histórico
italiano e alemão, nos anos 1920 e 1930, foi uma manifestação desses organismos
parasitários de seu corpo. Na atualidade, a onda avassaladora coordenada pelo
movimento – que é a poderosa organização internacional das forças e ideias autocráticas,
fundamentalistas, racistas, supremacistas e neofascistas de todos os gêneros
e espécies – é mais uma manifestação
séria da deterioração do modelo democrático liberal, que reluta em assumir uma
postura de autodefesa, tomado pela influência dos grupos econômicos e pelo
desarranjo do imaginário social e de suas emoções, abaladas severamente por
todo o conjunto de fatores da crise aguda do capitalismo na ordem neoliberal. O
neoliberalismo, em seu estágio crítico atual, paralisa a democracia liberal,
encanta-a com seus atributos ilusórios, permitindo que seu corpo se deteriore
sem que possa expelir os seres parasitários que o corroem. Isso explica, por
exemplo, o avanço, no hemisfério ocidental, do projeto político internacional
do movimento, um tema recorrente de análise por esta coluna de A Vírgula.
Tão logo observamos o
corpo da democracia liberal brasileira, uma construção sabidamente tardia em um
país de imaginário, estruturas, instituições e práticas autoritárias e
distorcidas de um modelo de sociedade e instituições que se apresenta
igualitário nas oportunidades, o campo para a ação do movimento e de seus
associados torna-se altamente promissor quando luta para a obtenção de sucesso
em seus projetos.
O corpo da democracia
liberal brasileira é marcado com as tradições da cultura política deste país,
que possui liames sólidos com o projeto do movimento. Personagens como Marçal e
Bolsonaro agem de forma impune, sugando as energias do corpo vivo da democracia,
sem que esta consiga, ou queira, articular seus movimentos biológicos para
expeli-los de dentro de si, ou autorizem as células para que possam combater,
em seu interior, a metástase que vai se consolidando.
É assim que ela age,
também, em relação a outros personagens dessa farândola, como as milícias e
organizações criminosas de toda ordem, cada vez mais fortes, ricas, influentes
e impunes. O modelo democrático liberal brasileiro, desde seu nascimento tardio,
moldou-se mais aos interesses de perpetuação de um sistema opressor do que às
transformações que a dinâmica histórica vai impondo, a partir de seus
movimentos intermitentes, que introduzem novos, múltiplos e prismáticos
personagens no grande arranjo da história de nosso país. Nossa democracia
demonstra um comportamento de um ser sequestrado e cativo das concepções
autoritárias que a geraram. Isso porque,
em suas raízes, a democracia brasileira tem um anacrônico viés antipovo,
selecionando os nacionais que dela podem desfrutar, bem como das maravilhas que
oferece.
Apenas com a
Constituição de 1988, fruto de todo um conjunto de lutas e de um imaginário
social, à época, desejoso de espaços para participação de um maior número de
nacionais, nossa democracia flexionou no sentido de agregar, em seu campo,
parcelas maiores de todo o povo brasileiro. Mas foi um espasmo breve, cuja
reversão começou a ser operada ainda no decorrer dos trabalhos de elaboração do
texto constitucional.
Assistimos, no Brasil,
ao longo desses anos, desde 2013, ao crescimento e a liberação de energias
movidas por uma pulsão de morte. A esfera pública vai sendo tomada por seres –
cada vez em maior número – que se opõem fortemente a uma convivência pautada em
mínimas regras e padrões civilizatórios, indo de encontro ao que foi duramente
conquistado, embora muitas vezes apenas inscrito, no texto da Constituição de
1988. Ao mesmo tempo em que se expandem, as ações desses seres vão sendo
normalizadas, sempre sob o discurso da tolerância. Ou, pior, com a conveniente
e prazerosa parceria das instituições e de todo o imaginário político e social
para com suas ações deletérias e criminosas.
O populismo soube
valer-se das tecnologias da informação do século 21 para alastrar, ao menos no
Ocidente, os grupos extremistas e sua ação permanente de mobilização das
emoções, em uma era de crise aguda do capitalismo de feições neoliberais.
Quanto mais se agudiza essa crise, mais consistentes e criminosas são as ações
dos grupos que agem para colapsar a democracia – tal qual nos anos 1920 e 1930
– como um dos grandes males que adoecem o tecido social. As ações do movimento
encontram um terreno fértil para a expansão do catecismo de sua gramática de
ódio, de exclusão e de cancelamento de indivíduos por ele classificados como
indesejáveis.
Houve no Brasil, nas
eleições de 2022, um frêmito de esperança de reversão dessas energias, que
resultou na derrota de Jair Bolsonaro (PL) por Lula (PT) nas eleições
presidenciais. Mas esse frêmito mostrou-se fraco, insuficiente para deter a
contaminação do corpo da democracia brasileira, sempre enamorada por paradigmas
autoritários e de exclusão, de subordinação e de dominação. Se derrotados nas
eleições presidenciais, e por pequena margem de votos, os extremistas, aliados
ao mega conservador Centrão, se corporificaram mais fortes nos governos dos
principais estados e nas representações com assento no Poder Legislativo. Era o
sinal inquestionável de que os tempos estavam bem distintos daqueles do período
de 1987 a 1988, quando foi elaborada a atual Constituição, e que o imaginário
social havia recuado de posições que permitiram, àquela época, avanços
substanciais, no caso brasileiro, no campo dos direitos e garantias
fundamentais da população como um todo.
A radicalização do
quadro clínico de nossa democracia agudizou-se, em 2018, com toda a grande peça
farsesca encenada que permitiu a eleição de Jair Bolsonaro, o primeiro
presidente de extrema-direita da história brasileira. E se faz aguda hoje,
quando o goiano Pablo Marçal, um cidadão possuidor de um currículo assemelhado
a uma verdadeira “capivara”, ganha o espaço público na condição de candidato a
prefeito da maior cidade do país, encantando multidões com sua gramática
oriunda do ecossistema das redes sociais, e com seus propósitos de colapsar a
democracia, a partir da afirmação reiterada de desrespeito aos seus princípios,
ao seu regramento e à sua estética.
Marçal, na visão do
professor João Cézar de Castro Rocha, um dos grandes analistas da história
contemporânea brasileira, é o personagem que, se valendo do populismo e dos
próprios insumos da democracia liberal, transpôs para a esfera pública toda a
gramática da “economia da atenção”, oriunda do universo digital e de suas
redes. Essa “economia” – e sua gramática – se materializam na permanente
lacração, fonte de likes essenciais para a obtenção de lucros, sob quaisquer
circunstâncias. Isso, como bem observa Rocha, é perfeitamente justificável na
esfera da vida privada, mas é inadmissível na esfera da vida pública, pois
implode as bases sobre as quais ela se construiu desde a antiguidade clássica –
o interesse de todos e de todas, de uma comunidade, de um povo, da pólis. O
discurso de ódio, o cancelamento e a imposição de uma realidade distorcida
propositalmente parecem desnortear a democracia e os nacionais, seduzidos e
perdidos no contexto de uma guerra informacional, híbrida e cultural.
Vai se normalizando,
na esfera pública da política, a violência como um insumo digerível e
desejável, numa sociedade encantada com um espetáculo dantesco de morte e de
ataques calcados na manipulação de fatos e na proliferação de elementos falsos.
O ordenamento jurídico brasileiro possui instrumentos de autodefesa, mas que,
por conveniência e aderência, não são acionados. Isso permite que o horror
protagonizado por Marçal, Bolsonaro e sua farândola vá se normalizando e se
tornando um perigoso padrão de regra social.
Marçal se beneficia da
crise das mídias corporativas as quais, ao arrepio da lei, abrem seus espaços
para que ele promova o horror e a violência que permitem o alcance de seus
objetivos autocráticos e excludentes. Marçal não se guia pela inclusão do todo
dos nacionais na vida do país, mas pela subordinação destes às suas concepções,
coerentes com as do movimento. Ele as expõe à normalidade em redes de televisão
e de rádio, nas redes sociais e nas ruas, de forma impune, com o apoio do
grande capital, que já manifestou sua simpatia para com ele e o que representa,
como o fez, a partir de 2018, com Bolsonaro. A performance do ódio de Marçal
tem apelo junto a frações do imaginário popular, sedento de escândalos e da
exposição cruel do indivíduo e da violência em múltiplas nuances.
No livro A escolha da
guerra civil: uma outra história do neoliberalismo (Ed. Elefante), os autores
apontam que o colapso da democracia liberal, com o consequente advento da
exceção autocrática, como pretendido pelo movimento e seus seguidores, é
perfeitamente acoplável e desejável aos e pelos interesses do grande capital.
Foi assim no fascismo histórico italiano e alemão, e assim permanece
inalterado. A leniência das instituições em se autodefender e preservar a
sociedade como um todo, tirando-a do encantamento populista que pulsa morte e
exclusão, pode ser fatal, levando ao colapso da democracia liberal e de todo o
modo de vida que, com suas contradições e dissensos, foi sendo erigido no
Ocidente a partir do século 19.
A democracia liberal
brasileira, em particular, na visão do professor Rocha, precisa agir no sentido
de conter seres como Pablo Marçal, que conspiram, de forma espetaculosa,
cínica, esgarçando a “economia da atenção”, contra ela mesma e todas as
perspectivas de vida em sociedade que sustenta. Medidas legais, bem como o
necessário enfrentamento político de seres oriundos das redes digitais,
descompromissados com a vida real, precisam ser adotadas em favor da maioria
absoluta do povo e da continuidade deste país como um espaço de convivência
possível.
É urgente deter a
tragédia que se prenuncia, talvez mais grave do que em 2018. Ou isso, ou iremos
para a repetição, como farsa, de toda a história recente do Brasil, só que de
forma ainda mais grave. A política não pode ser subordinada aos jogos econômicos
e à performance de pessoas que se apresentam como influenciadores digitais, uma
designação própria para seres parasitários, que vivem da exploração dos
indivíduos e de seu trabalho e renda, manipulando suas emoções em favor de seus
interesses obscuros.
Fonte: Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário