Como queimadas em terras indígenas
aumentaram 76% e deixaram crianças e anciãos 'sufocados'
Quando deixou o Oeste
do Amazonas rumo à Terra Indígena Capoto-Jarina, em Mato Grosso, a psicóloga
Jaqueline Aparício, indígena da etnia Kokama, sabia que encontraria um cenário
difícil ao desembarcar. Mas nada a havia preparado para aquilo. A aldeia
Piaraçu, onde havia sido enviada para trabalhar, estava engolida pela fumaça.
"O nosso
território é extensão do nosso corpo. Faz parte da nossa espiritualidade. Ver a
destruição dos animais ou de uma árvore é como ver a nossa própria
destruição", disse à BBC News Brasil.
O relato de Jaqueline
Aparício ilustra um dos aspectos menos visíveis da crise ambiental causada
pelos incêndios florestais no
Brasil: a destruição deixada pelo fogo nas terras indígenas brasileiras neste
ano.
Mas um levantamento
feito com exclusividade pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)
para a BBC News Brasil mostra o tamanho do estrago deixado pelas queimadas
nesses territórios.
Segundo o
levantamento, entre janeiro e agosto deste ano, o fogo destruiu 3,08 milhões de
hectares em áreas destinadas aos povos indígenas do país. Isso equivale a 27%
dos mais de 11 milhões de hectares de área queimada em todo o Brasil.
Em relação ao ano
passado, o crescimento no tamanho da área queimada em terras indígenas foi de
76%.
Nas comunidades, os
efeitos de tanta queimada são sentidos por toda a população, mas especialmente
por jovens e idosos que sofrem com problemas respiratórios. Mas o impacto do
fogo não é sentido apenas no ar.
O avanço das queimadas
vem dificultando o acesso a territórios, destrói casas e roças e coloca em
risco a segurança alimentar de comunidades inteiras.
Lideranças indígenas e
ambientalistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que os dois principais
fatores responsáveis por esse aumento na área queimada em terras indígenas são:
os efeitos das mudanças climáticas e o avanço do agronegócio.
Procurado, o
Ministério do Meio Ambiente (MMA) enviou nota dizendo contratou mais de três
mil brigadistas e que metade deles é indígena. A nota também informou que o
governo liberou R$ 514 milhões a mais no orçamento para o combate a incêndios
em todo o Brasil.
A Fundação Nacional
dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) foram procurados, mas não responderam aos
questionamentos.
·
Crise nacional
O aumento das áreas
destruídas pelo fogo em terras indígenas ocorre durante a pior temporada de queimadas no Brasil em 14 anos. De acordo com dados do Inpe, até 23 de setembro, o país havia
registrado 202 mil queimadas, um aumento de 98% em comparação com o ano
anterior.
Enquanto o Inpe
contabiliza o número de queimadas, o IPAM avaliou a área total destruída. O
IPAM é uma organização não-governamental que atua no combate às mudanças
climáticas e na preservação do meio ambiente. Segundo os dados, entre janeiro e
agosto deste ano, o fogo consumiu 11,3 milhões de hectares no Brasil, um
aumento de 117% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram
destruídos 5,2 milhões de hectares.
Ambos os levantamentos
utilizaram dados de satélites, mas focaram em aspectos diferentes: o Inpe no
número de focos de incêndio e o IPAM na extensão das áreas afetadas.
Esse cenário reflete a
crescente destruição ambiental no Brasil, com grandes impactos em áreas
protegidas e terras indígenas.
O governo federal,
responsável pelo combate aos incêndios em terras indígenas, anunciou uma série
de medidas para lidar com a esta crise como o aumento no número de brigadistas
e contratação de mais aeronaves para o combate às queimadas, mas, até agora, o
número de focos de calor continua crescendo.
Em meio ao aumento no
número de incêndios, comunidades dentro das terras indígenas relatam uma piora
nas condições de vida nesses territórios.
·
'Sufocados'
A técnica em
enfermagem Márcia Glauciane de Araújo Pereira dos Santos, que também trabalha
na Terra Indígena Capoto-Jarina, disse que não consegue ver o céu da aldeia
Piaraçu há mais de um mês por conta da fumaça causada pelas queimadas.
"A gente vem
sofrendo com isso e o cenário está complicado porque as crianças e idosos estão
com mais problemas respiratórios", contou Santos à BBC News Brasil.
A psicóloga Jaqueline
Aparício descreve a rotina no posto de saúde localizado na aldeia.
"A rotina agora é
de uma grande procura, principalmente por crianças e idosos, que estão com
problemas respiratórios. Os anciãos estão sufocados pela fumaça", disse.
Santos disse que os
impactos do fogo na terra indígena não se resumem apenas aos problemas
respiratórios.
Encravada em uma área
de floresta amazônica razoavelmente bem preservada, aldeia Piaraçu é abastecida
com energia levada por uma linha de transmissão que conecta o local à cidade
mais próxima.
O problema, segundo
ela, é que desde o agravamento dos incêndios na região, o fogo derrubou árvores
que romperam os cabos de transmissão de energia e deixaram a aldeia no escuro.
Agora, a única eletricidade da comunidade é a que vem de grupos geradores movidos
a gasolina ou óleo diesel.
Isso também teve,
segundo ela, impacto direto na saúde da comunidade.
"Sem energia,
estamos com problema para armazenar medicamentos em ambientes refrigerados. Há
pacientes que fazem uso de insulina que também estão enfrentando dificuldades
por conta disso", contou.
Outro impacto das
queimadas é sobre o deslocamento de pacientes. Como a aldeia é localizada em
plena floresta amazônica, a forma mais fácil de remover pacientes que precisam
de atendimento urgente é por avião. Mas como a fumaça encobre a região há mais
de um mês, pilotos têm evitado pousar na pista que atende a comunidade.
Ela contou à BBC News
Brasil que, na semana passada, uma indígena com nove meses de gestação precisou
de atendimento urgente e teve de ser removida da aldeia por terra para a cidade
mais próxima. Uma viagem que de avião demoraria pouco mais de uma hora, de
carro durou aproximadamente oito horas.
Segundo ela, a
indígena e a criança, que ainda não nasceu, estão bem apesar do susto.
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Agronegócio e mudanças
climáticas
Para a Diretora de
Ciência do IPAM, Ane Alencar, os dois principais fatores que causam o
crescimento da área queimada em terras indígenas neste ano são: as mudanças
climáticas e o avanço do agronegócio sobre esses territórios.
Por um lado, as
mudanças climáticas geram estiagens prolongadas e severas como a que atinge o
Brasil neste momento.
Isso faria com que
regiões como o Cerrado fiquem extremamente suscetíveis ao alastramento de fogo.
"Qualquer fagulha e o fogo escapa de controle e pode tomar grandes
proporções", explicou.
Alencar explica que os
indígenas também utilizam o fogo como técnica ancestral de manuseio da terra,
mas que, historicamente, as queimadas realizadas por eles seriam feitas de
forma controlada e adaptada à realidade local. Ela levanta a tese de que, à medida
que as mudanças climáticas alteram as condições do solo e da umidade, algumas
dessas queimadas poderiam estar saindo de controle.
Apesar disso, ela
disse reforçar que, na sua avaliação, a grande maioria dos focos de incêndio
que atingem as terras indígenas no Brasil são registrados fora desses
territórios e seriam resultado da pressão do agro.
"É importante a
gente entender que nós não estamos dizendo que foram os indígenas que colocaram
fogo na floresta. Esses territórios são cercados por regiões agropecuárias onde
se utiliza muito o fogo", afirmou.
"Eu diria que
grande parte desse aumento na área queimada é resultado dessa pressão que vem
de fora para dentro das terras indígenas", afirmou.
A avaliação é
semelhante à do coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib), Dinamam Tuxá. A Apib é uma das principais organizações
não-governamentais que atuam na defesa dos povos originários no país.
Para ele, parte
significativa desse crescimento na área queimada é fruto de ações criminosas.
"Para além das
mudanças climáticas, temos a ação humana nesse processo e aumento das
queimadas. Uma ação humana criminosa que ateia fogo dentro, fora e no limite
das nossas terras para promover o avanço do agronegócio", afirmou.
·
Mais punição
Tuxá disse avaliar que
as ações do governo federal em relação ao avanço das queimadas nesses
territórios têm sido insuficientes. Para ele, falta "efetividade" na
punição dos responsáveis pelas queimadas.
"O governo tem
feito um discurso de conter o avanço do fogo. Temos visto algumas
movimentações, mas a nossa análise é de que isso ainda é insuficiente porque
precisamos de mais efetividade para conter tanto as mudanças climáticas quanto
esses criminosos que ateiam fogo em nossas terras", disse.
Tuxá disse é preciso
que o governo implemente uma estratégia permanente para penalização das pessoas
responsáveis por queimadas ilegais.
Em meio às críticas
que vem sofrendo nos últimos meses, o governo federal passou a coletar
propostas de ministérios e agências como o Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para conter o avanço das
queimadas. Parte dessas propostas, que ainda não foram formalmente
apresentadas, prevê o aumento nas punições a pessoas ou empresas responsáveis
por queimadas ilegais.
Para Ane Alencar, do
IPAM, teria faltado planejamento ao governo federal para lidar com uma crise do
tamanho da que atingiu o Brasil neste ano.
"Esse
planejamento e a articulação com os governos estaduais deveria ter começado
antes. Acho que esse foi um dos grandes equívocos do governo federal",
afirmou a pesquisadora.
Ela disse acreditar
que, além disso, o governo se viu surpreendido com a dimensão da ação criminosa
que se seguiu à estiagem. Segundo ela, criminosos estariam aproveitando a seca
para atear fogo em áreas onde, normalmente, o fogo não era identificado.
"Acho que teve
uma expectativa de que o MMA seria capaz de lidar com esse problema com as
forças que normalmente eram mobilizadas, só que a gente visto um número de
focos de calor em áreas inusitadas, o que indica que pessoas estão usando esse
momento para colocar fogo. Isso tem feito com que nenhum esforço seja
suficiente para combater os incêndios", disse.
A BBC News Brasil
enviou questionamentos ao Ibama, ao Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade, ao MMA e à Funai. Apenas o MMA respondeu.
Em nota, o MMA disse
que os incêndios florestais no Brasil são intensificados pela mudança
climática, que teria sido responsável pela maior seca em 75 anos. Ainda segundo
a pasta, o Ibama e o ICMBio mobilizaram mais de 3 mil brigadistas, sendo metade
indígenas, para combater os incêndios.
O ministério disse que
a ação do governo federal é coordenada por uma sala de situação, criada em
junho, que envolve diversos ministérios.
Fonte: BBC News Brasil
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