A imprensa brasileira e o Oriente Médio
“Impressionante
operação”, “Sucesso” e “triunfo tático” são alguns dos títulos que encabeçam as
matérias de jornais brasileiros para se referir à ação de Israel que deixou
milhares de feridos (muitos perderam a visão ou tiveram membros amputados) e
dezenas de mortos — inclusive crianças — no Líbano, no dia 17 de setembro de
2024.
Além desse ar de
louvor, o acontecimento é tratado com um toque de curiosidade: “o que são
pagers?”; “Como foi a explosão dos pagers?”; “como Israel teria criado empresa
de fachada para colocar explosivos nos pagers do Hezbollah?” — não somente
militantes desse partido foram mortos e feridos de maneira indiscriminada. As
chamadas comportam-se, ainda, como se as explosões fossem meros incidentes:
“após pagers, ‘walkie-talkies’ do Hezbollah explodem em Beirute e no sul do
Líbano; 20 morrem”.
Daí em diante, os
títulos e abordagens só pioram. Verdadeiro vandalismo jornalístico. A ação
israelense é, no limite, apresentada como um ataque. As ações do Instituto de
Inteligência e Operações Especiais, o Mossad, e de outras divisões são
retratadas como aventuras hollywoodianas. Procuramos, em vão, nesses textos e
mesmos nas reflexões de colunistas e comentaristas — muitos dos quais se
apresentam como campeões da luta pela democracia e contra o terrorismo — uma
denúncia ou reprimenda contra tal ato de terrorismo. O termo inexiste na
linguagem da grande imprensa brasileira quando se trata de caracterizar as
ações de Israel, dos EUA e seus aliados. Na verdade, foi o grupo alvo do ataque
o representado como extremista.
Perante milhares de
indivíduos mutilados, crianças e mulheres perdendo mãos, braços e mesmo a
visão, ambulâncias em alta velocidade, cenas de funerais, pânico social, mortes
e ferimentos, jornalistas estão preocupados em falar sobre o uso e
funcionamento de pagers e walk talks há algumas décadas. Para que houvesse uma
condenação ao terrorismo na imprensa brasileira só se o ataque foi desferido
por algum grupo armado do “Mundo Árabe” e se tivesse como alvos Israel, EUA ou
a Europa.
Só haveria
perplexidade e alarde se o presidente da República se posicionasse, como o fez
em fevereiro deste ano, quando comparou, de maneira acertada, as ações de
Israel em Gaza à atuação do Terceiro Reich. Lembremos que, já naquela altura, a
mídia apresentava o massacre em curso contra o povo palestino como “resposta de
Israel” — “Lula compara resposta de Israel em Gaza à ação de Hitler contra
judeus”.
Até na imprensa de
esquerda temos certa dificuldade em encontrar de forma mais aberta e frequente
a justa utilização da categoria terrorismo para se referir a ações como a
perpetrada no Líbano esta semana, não obstante os veículos se posicionem de
maneira mais crítica e combativa. Eduardo Vasco nos lembra que quando um jovem
afegão atacou com uma faca algumas pessoas na Holanda, em 2018, logo a ação foi
caracterizada como terrorismo. Um ano antes, também foi apontado como
terrorista o atropelo de seis pessoas em Paris.
Trata-se de um
fenômeno mais complexo. O filósofo Domenico Losurdo apontou que a linguagem do
império buscou apresentar todos os seus inimigos — os quais deveriam ser
fisicamente aniquilados — como terroristas. Fala-se em terrorismo “apenas se o
ataque for organizado a partir de baixo, apenas se seus perpetradores não
tiverem poder”. É desse modo que procura argumentar a linguagem dominante. Essa
linguagem, acentua Domenico Losurdo, constituiu-se ao longo do tempo não apenas
a partir dos discursos políticos e da abordagem da grande imprensa comercial,
mas até por historiadores e outros estudiosos que apresentaram de forma
romântica e cheia de omissões as ações dos EUA e dos seus aliados no Ásia,
África e América Latina.
Ao longo do século XX
as tentativas da CIA de eliminar os rivais dos Estados Unidos, como Stalin,
Lumumba, Sukarno e, repetidas vezes, Fidel Castro, nunca foram denunciadas como
ações terroristas, mesmo quando se entendia “terrorismo individual” como o ataque
a determinada autoridade política. Do mesmo modo, ao falar-se em “terrorismo de
massa” só entra em cena o morticínio de 11 de setembro. Ignora-se a história.
Mesmo compreendemos “terrorismo de massa” pelo desencadeamento da violência
contra a população civil para atingir determinados objetivos políticos e
militares, a aniquilação nuclear de Hiroshima e Nagasaki não é apresentada como
tal.
A categoria
“terrorismo” tem sido utilizada — inclusive, com muita veemência nos nossos
dias — para justificar a legitimar massacres de milhares de indivíduos no
Oriente Médio. Ao recorrer a tal terminologia, tenta-se desumanizar não só os
grupos armados em combate, mas toda a população vitimizada pelos bombardeios.
Na verdade, as mortes de civis apresentam-se como algo aceitável, se se tratar
de uma consequência de uma “caça aos terroristas”.
Não esqueçamos da fala
de Jorge Pontual: “atacar terroristas do Hamas é um direito que Israel tem. Se
eles estavam em uma ambulância, infelizmente era isso que Israel tinha que
fazer: alvejar esses seus inimigos”.
Há ainda outro
problema em cena. Não é lúcido apontar os jornais como órgãos homogêneos. Em
certa medida, há polifonias mesmo dentro de um mesmo veículo. Vê-se
contrapontos, debates, etc. Contudo, quando os assuntos são economia (sobretudo
quando as medidas liberais estão em pauta) e geopolítica, o nível de
heterogeneidade das discussões diminui de maneira assustadora. Nesse sentido,
desde que o conflito em Gaza voltou a tomar conta dos noticiários, após a ação
militar do Hamas em solo israelense, há, com efeito, uma série de críticas à
“maneira como Israel age” na guerra. Fala-se, inclusive, “violações” e “crimes
de guerra”.
No entanto, o alvo das
críticas, na maioria das vezes, é a posição de “extrema direita” de Benjamin
Netanyahu. É como se fosse esse indivíduo uma mutação no tempo-espaço na
história de Israel e no modo como esse Estado vem agindo em relação aos
palestinos e a outros grupos no Oriente Médio.
Voltemos, portanto, a
Domenico Losurdo: “o uso terrorista da categoria terrorismo atinge seu pico na
Palestina”. É justamente no conflito israelo-palestino que são caracterizadas
como “ataques terroristas hostis” as ações de garotos que atiram pedras nos
tanques, o que leva o filósofo italiano a provocar: “mas se o menino palestino
que protesta contra a ocupação atirando pedras é o ‘terrorista’, devemos
considerar o soldado israelense que o elimina como campeão da luta contra o
terrorismo?”.
Ainda nos últimos
dias, Danny Danon, o embaixador israelense da ONU, chamou de “Terrorismo
Diplomático” a resolução da Assembleia Gral, elaborada pelos palestinos e
assinada por 124 países, a qual exige que Israel ponha fim à “sua presença
ilegal no Território Palestino Ocupado” em 12 meses.
Tudo o que não
convergir com os interesses imperialistas de Israel parece ser terrorismo.
Qualquer denúncia a massacres, violações, e outras atrocidades cometidas pelas
tropas e governo israelenses é apresentada como apoio ao terrorismo, quando não
antissemitas. Assim foi quando o chefe do Poder Executivo brasileiro denunciou
as atuações de Israel em Gaza, assemelhando-as às do hitlerismo. Naquela
ocasião, o genocídio contra o povo judeus — de fato, um grande trauma — foi
apresentado como algo único, singular e incomparável a qualquer outro fenômeno,
sem paralelo na História. Isso num país — num continente! — no qual houve a
aniquilação de milhares e milhares de povos nativos e séculos de escravidão de
africanos e afrodescendentes.
Ao chamar atenção para
os “interesses manipuladores que podem muito bem ter um papel na formação de
conceitos ou na utilização da memória”, Dominick LaCapra aponta para o Oriente
Médio, no conflito israelo-palestino. O historiador reflete como Benjamin Netanyahu
tem tentado traçar um paralelo direto entre a ameaça representada pelo Terceiro
Reich aos judeus no período que antecedeu o Holocausto e a “ameaça
contemporânea” representada pelo Irã a Israel. Além disso, em seu discurso numa
conferência sionista de 2015, Benjamin Netanyahu culpou os palestinos por
iniciarem o genocídio durante o Holocausto, afirmando que “Hitler não queria
exterminar os judeus na época, ele queria expulsar os judeus”.
A grande imprensa
brasileira, apenas para a surpresa dos incautos, não obstante critique “o líder
da extrema-direita israelense” — como se o problema se resumisse a isso —, tem
ratificado as suas perspectivas, legitimados as suas ações. Isso se evidencia
nos títulos de reportagens que romantizam e banalizam milhares de mortes no
Líbano, nos analistas de política internacional convidados para os programas,
sempre com visões pró-Israel, e ao demonizar grupos e países que não se alinham
aos Estados Unidos.
Hoje, com os
bombardeios se intensificando e a carnificina se ampliando com quase 500 mortos
num único dia, o teor das reportagens começam a mudar um pouco. Mas ainda sem
nenhuma condenação a Israel — muito menos ao terrorismo.
¨ Ausência do que fazer com Netanyahu expõe fraqueza dos EUA e
debandada do Ocidente, dizem analistas
A relação do Ocidente
com Benjamin Netanyahu não anda das melhores, em um cenário no qual as partes
têm uma relação antiga de cooperação para o mesmo interesse: manter-se no
poderio mundial. Algo que, segundo analistas, está por um triz.
Com a aproximação das
eleições israelenses de 2026, fica cada vez mais visível a linha tênue na qual
a gestão Netanyahu se encontra, apontam especialistas no assunto.
Ao podcast Mundioka,
da Sputnik Brasil, o doutor em história pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e analista internacional Eden Pereira Lopes sintetizou que
"a ausência do que fazer com Netanyahu" é um dos principais problemas
do Ocidente, em especial dos Estados Unidos.
"O Ocidente,
sobretudo os Estados Unidos, não sabe como resolver a situação. Eles não têm
uma fórmula para resolver a situação envolvendo as agressões de Israel contra a
Palestina. Ao mesmo tempo, eles não conseguiram construir e não têm aliados internos
de Israel no país que possam ser capazes de substituir a figura do Netanyahu,
que habilmente se coloca em uma posição de ser o principal aliado e a figura
que pode, em alguma medida, representar os interesses dos Estados Unidos
naquela região", detalhou.
Ele continuou, dizendo
que ao mesmo tempo que, "de uma maneira geral, o Ocidente, a Europa,
principalmente os países europeus, têm um grande desconforto com a figura do
Netanyahu, eles sabem que não podem fazer muita coisa, porque a capacidade de
influenciarem a política de Israel é menor ainda do que a que têm, por exemplo,
os Estados Unidos hoje".
<><> Países
aliados sofrem com custos políticos
O analista
internacional pontuou à Sputnik que Netanyahu é rejeitado publicamente por
vários líderes, mas os países que são aliados de Israel não conseguem reverter
o curso da política israelense.
"Eles [os países
ocidentais] não têm essa capacidade, e isso faz com que o Netanyahu tenha a
capacidade de fazer o que ele está fazendo hoje, que é ligar o piloto
automático, no sentido das agressões e da violência […]. […] o Ocidente, ele se
encontra em uma posição onde ele tenta, o máximo possível, enfraquecer a figura
do Netanyahu, sem necessariamente abandonar Israel", arrematou o
especialista.
Segundo Eden, o
recente discurso do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, expressando
desconforto com as ações de Benjamin Netanyahu, reflete um momento crítico nas
relações entre o Ocidente e Israel. Ele afirmou que "a grande questão que
está posta para o Netanyahu hoje é que os atuais governos na Europa e nos
Estados Unidos estão completamente desconfortáveis com o que está acontecendo
na Palestina".
Lopes destaca que a
pressão crescente da opinião pública nos países ocidentais não pode mais
ignorar as atrocidades documentadas: "As pessoas literalmente recebem nos
seus celulares, recebem nas suas TVs todos os dias, nas redes sociais, imagens
de massacres que acontecem na Palestina".
Ele observa que os
cortes de armamentos pelo Reino Unido, "temendo que essas armas fossem
usadas contra a população civil", são uma resposta a essa pressão, e
outros países ainda buscam mitigar sua responsabilidade histórica na situação.
O analista compara as
ações do governo Netanyahu a um genocídio, afirmando que "o que nós vemos
por parte das autoridades israelenses é um amplo e largo apoio a essas práticas
violentas de genocídio que estão acontecendo no território palestino".
"As manifestações
contra o governo do primeiro-ministro Netanyahu não expõem que a sociedade
israelense, em alguma medida, tem apoiado algumas das operações que são
conduzidas dentro da Faixa de Gaza", critica o analista sobre a
desumanização dos palestinos, sustentada por uma sociedade que, em parte,
valida essas práticas.
<><> Preocupações?
EUA são 'ponto-chave para manutenção de Netanyahu'
Questionado sobre
quais adversários deveriam despertar a preocupação de Netanyahu, André Frota,
professor dos cursos de relações internacionais, ciência política e geografia
no Centro Universitário Internacional Uninter, afirmou: "Toda decisão de
política externa envolve sempre dois cenários, o nível externo e o nível
doméstico".
Ele destaca que tanto
o Hamas quanto o Hezbollah representam problemas externos, enquanto a opinião
pública israelense se configura como uma questão interna crucial. "A
sobrevivência política dele depende em grande medida da manutenção do conflito."
O cientista político
também ressaltou a importância da busca pelos reféns mantidos pelo Hamas,
afirmando que isso é "extremamente sensível" para a política interna
de Israel.
"Boa parte das
conquistas que ele detém se relaciona também com a manutenção da busca pelos
reféns." Além disso, ele observa que "enquanto não houver uma solução
para a situação individual do Netanyahu, o status quo para ele é manter o que
está acontecendo".
Em relação ao apoio
internacional, Frota afirmou que "do ponto de vista do poder bélico,
sim", os Estados Unidos são fundamentais para a manutenção de Israel. Ele
lembrou que a maioria das armas vem dos EUA, e "isso não vai deixar de
existir, não existe nenhuma possibilidade de a aliança estratégica Estados
Unidos-Israel deixar de acontecer".
Sobre a possibilidade
de sanções a Israel, Frota destacou as limitações do sistema das Nações Unidas,
afirmando que "nenhuma resolução do Conselho de Segurança que vai querer
impor um pacote de sanções vai passar pelo veto norte-americano".
Isso, segundo ele,
resulta em um "isolamento de Netanyahu com relação ao restante do mundo
ocidental".
¨ EUA alertam Israel que ataques ao Hezbollah podem levar a uma
guerra regional, diz mídia
Os Estados Unidos
alertaram Israel que ataques ao movimento libanês Hezbollah podem atrapalhar os
esforços diplomáticos para resolver o conflito e levar a região a uma guerra,
informou a mídia norte-americana nesta quarta-feira (25), citando autoridades dos
EUA.
De acordo com a AP,
nos dias que antecederam os ataques aéreos de Israel ao Hezbollah, autoridades
dos EUA alertaram o governo israelense de que tal estratégia levaria
provavelmente a região à guerra. Conforme as fontes, as autoridades dos EUA
indicaram a Israel que uma solução diplomática ainda era possível e que uma
campanha militar poderia atrapalhar esses esforços.
Autoridades
israelenses adotaram uma abordagem diferente para alcançar a paz e disseram aos
representantes dos EUA que era hora de "escalar para desescalar",
sugerindo que atacar o Hezbollah obrigaria o movimento a participar de
negociações para encerrar o conflito.
Mais cedo hoje (25), o
movimento xiita libanês Hezbollah disse que atingiu um centro de comando do
Mossad perto de Tel Aviv, acrescentando que o movimento o responsabiliza pela
eliminação de vários de seus líderes e pelas explosões de pagers no Líbano.
"Os combatentes
da Resistência Islâmica alvejaram nesta quarta-feira, 25 de setembro de 2024 às
06h30 da manhã [00h30, horário de Brasília], a sede do Mossad nos subúrbios de
Tel Aviv com um míssil balístico Qader-1. Esta sede é responsável por assassinar
líderes e explodir pagers, bem como dispositivos sem fio", escreveu o
movimento no Telegram.
Um correspondente da
Sputnik relatou que sirenes de ataque aéreo soaram pela primeira vez desde a
atual escalada com o movimento libanês Hezbollah em muitas cidades no centro de
Israel, incluindo Tel Aviv e Netanya.
As Forças de Defesa de
Israel (FDI), por sua vez, relataram que interceptaram um míssil terra-terra
lançado do Líbano.
"Após as sirenes
que soaram nas áreas de Tel Aviv e Netanya, um míssil terra-terra foi
identificado cruzando o Líbano e foi interceptado pelas Forças de Defesa Aérea
das FDI", disseram os militares no Telegram.
Fonte: Por Osnan Sousa,
em A Terra é Redonda
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