Brasil falha em implementar plano contra
acidentes químicos
O surfista e
ambientalista André Motta, presidente da Associação de Amigos do Canto do
Moreira, preparava-se para mais um feriado em Maresias, no litoral de São
Paulo, quando foi avisado de um acidente na rodovia SP-55. Ao chegar ao local,
deparou-se com uma carreta tombada e litros de óleo diesel escorrendo pelo
asfalto. André acionou imediatamente os serviços de emergência da Petrobras,
que chegaram cerca de nove horas depois, segundo ele.
Junto a outros
moradores e frequentadores da região, Motta tentou criar barreiras para impedir
o material de escorrer até desaguar no mar, entre as praias de Maresias e
Boiçucanga. Apesar dos esforços, o grupo não conseguiu impedir que o produto se
infiltrasse pelo asfalto, acostamento e calçadas, entrar pela drenagem da pista
e atingir o córrego Canto do Moreira, a vegetação ciliar, o costão rochoso e o
mar.
"Hoje sei que
poderíamos ter tentado chamar um caminhão limpa fossa para puxar o óleo, pois
ainda tinha mais da metade [da substância] dentro do caminhão. Mas a gente não
sabia o que fazer”, lembra Motta. O caso aconteceu no dia 6 de setembro de 2012.
Doze anos depois, a população local continua a se sentir despreparada para
lidar com esse tipo de acidente, mas não deveria ser assim.
O Brasil tem desde
2004 um Plano Nacional de Prevenção, Preparação e Resposta Rápida a Acidentes
Ambientais com Produtos Perigosos (P2R2). A ideia era criar estruturas para
prevenir a ocorrência de acidentes, aprimorar a resposta e mitigar os impactos
na saúde humana e no meio ambiente.
"O objetivo era
trabalhar os aspectos preventivos e corretivos, de integração das instituições
e discutir quais as atividades que geram mais acidentes naquele estado em
específico”, afirma Edson Haddad, químico da Companhia Ambiental do Estado de
São Paulo (Cetesb).
Vinte anos depois,
entretanto, a implementação do estabelecido no documento segue caminhando a
passos lentos. A Comissão Nacional do P2R2, órgão responsável por formular as
ações e supervisionar a execução do plano, foi extinta em abril de 2019,
segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. O governo federal
afirmou estar desenvolvendo uma nova instância para tratar do tema.
Já as Comissões
Estaduais e Distrital, estruturas responsáveis pela formulação e supervisão do
plano, não operam em todos os estados da federação. De acordo com um
levantamento realizado pela DW, a partir de consulta direta aos órgãos
ambientais estaduais e nos sites legislativos, apenas 14 estados e o Distrito
Federal possuem comissões instaladas. Mesmo assim, nem todas se reúnem com a
regularidade com que deveriam.
• Por que a execução do plano é importante
A indústria química
brasileira é a sexta maior do mundo, segundo a Associação Brasileira da
Indústria Química (Abiquim). Isso significa um intenso movimento de transporte
de cargas de produtos perigosos pelo país.
"Nós temos a
terceira ou quarta maior frota de caminhões do mundo. A maior parte deles já em
idade avançada. E quase a totalidade da carga movimentada é pelo modal
rodoviário”, afirma Mauro de Souza Teixeira, gerente de atendimento da Cetesb.
Desde que o plano foi
lançado, em 2004, foram registrados 4,9 mil acidentes com produtos perigosos no
Sistema Nacional de Emergências Ambientais, do Ibama. Não à toa, a maioria
deles, cerca de 49%, em rodovias. Neste ano, já foram 603 acidentes, sendo a maioria
parte em rodovias (20%) e em plataformas de petróleo (21%). Em 2023, foram 946
casos, um aumento de 17% em relação ao que foi registrado em 2022.
De acordo com o
secretário executivo da Associação Brasileira de Transporte e Logística de
Produtos Perigosos (ABTLP), Eduardo Leal, o país enfrenta dois desafios para
reduzir os acidentes com produtos perigosos nas estradas: a falta de
infraestrutura adequada e a fiscalização ineficiente.
"Estradas
mal-conservadas, com sinalização deficiente e pavimentação precária, aumentam
significativamente o risco de acidentes, sobretudo quando se trata do
transporte de produtos perigosos", diz Leal. Segundo ele, é preciso criar
infraestruturas, principalmente, em regiões remotas.
Para Leal, a
existência de normas e regulamentações não significa na prática a aplicação das
regras. "Fiscalizações esporádicas e a falta de recursos para a realização
de inspeções regulares deixam brechas para que veículos em más condições e
práticas operacionais inadequadas continuem em circulação."
Além disso, o Brasil
tem a ambição de ampliar a produção de gás naturalcom projetos tanto em área
terrestre como marítima, como o Gasoduto Rota 3 - para aumentar o escoamento de
gás da Bacia de Santos - e o Projeto Sergipe Águas Profundas (SEAP), entre Alagoas
e Sergipe, que deve começar a operar em 2028.
Da mesma forma, o
Brasil é um dos únicos três países do mundo com reservas de minério, tecnologia
para transformar o minério em matéria-prima e usinas capazes de produzir
energia nuclear. Até 2030, o país pretende ampliar a capacidade de geração de
energia nuclear por meio da usina Angra 3 e da exploração da maior reserva de
urânio do país, no Ceará.
Ter uma comissão ativa
e um plano em plena execução permitiria ao país ter pessoas treinadas e
infraestruturas criadas para prevenir e mitigar qualquer impacto decorrente de
incidente ou acidente decorrente desses projetos. Da mesma forma, teria
permitido agir de maneira mais efetiva no momento do ocorrido e na reparação de
casos do passado, como o rompimento das barragens em Brumadinho e Mariana, em
Minas Gerais.
• Como deveria funcionar o plano
De acordo com o P2R2,
o Governo Federal, estados, municípios e o setor privado deveriam atuar juntos
para monitorar e dar respostas rápidas a acidentes envolvendo cerca de 3 mil
materiais considerados perigosos para a Organização das Nações Unidas (ONU),
além de outros tipos de substâncias.
Isso inclui acidentes
envolvendo gases tóxicos, substâncias explosivas, líquidos e sólidos
inflamáveis, além de substâncias oxidantes, radioativas e corrosivas. É o caso
do tombamento de um caminhão contendo óleo numa rodovia, como aconteceu em
Maresias, ou até de um acidente radioativo, como o caso Césio-137, que ocorreu
em Goiás em 1987.
Caberia às comissões
estaduais a aplicação do princípio do poluidor-pagador, ou seja, de determinar
que o causador do problema arque com os custos de reparar os danos, e a
articulação de respostas com os setores de saúde, meio ambiente e equipes de
corpos de bombeiros e defesa civil.
Mas sem a atuação da
comissão nacional, as ações em âmbito estadual acabam diluídas. A existência
das comissões estaduais para cuidar dos acidentes se concentra nas regiões Sul
e Sudeste. Estados dentro da Amazônia Legal, como o Amazonas, Roraima e Amapá,
não possuem o órgão.
No Distrito Federal, a
comissão distrital do plano só foi instituída em 2017. Pernambuco tem uma
comissão desde 2010, mas ela passou um tempo sem funcionamento e foi reativada
no ano passado. Por outro lado, há comissões bem antigas no país, como a do Rio
Grande do Sul, que existe desde 2005.
Em São Paulo, desde
1978 há ações e articulação entre os órgãos para reduzir os impactos desses
acidentes. "A lei permite que os órgãos de fiscalização e controle
escolham dentro da cadeia produtiva quem tem o maior lastro econômico para
arcar com essa responsabilidade sob o dano”, diz Teixeira. Lá há também uma
comissão dedicada aos acidentes rodoviários.
• Falta de recursos compromete reparação
O P2R2 foi criado em
função do rompimento de uma barragem de resíduos, em março de 2003, na cidade
de Cataguazes, em Minas Gerais. Na época, a substância contaminou os rios Pomba
e Paraíba do Sul, afetando o fornecimento de água a 600 mil pessoas por duas
semanas.
O plano prevê o
repasse de recursos financeiros para que estados e municípios possam
implementar projetos, mapear riscos e treinar equipes. Porém, o repasse de
verbas do governo federal não tem sido feito a todos os territórios.
O MMA tem atualmente
convênios com três estados: Alagoas, Minas Gerais e Paraná. Nos últimos cinco
anos, foram repassados R$ 1,1 milhão. Entre 2004 e 2012, também foram
estabelecidos convênios já encerrados com: Acre, Bahia, Ceará, Mato Grosso, São
Paulo, Pernambuco, Tocantins, Paraíba, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.
Há estados que
utilizam os próprios recursos, como o Distrito Federal, que registrou pelo
menos 20 ocorrências de acidentes ambientais com produtos perigosos desde 2022,
e o Rio de Janeiro, que destinou R$ 9,5 milhões para capacitar as equipes. No
Rio, foram 690 ocorrências entre junho de 2020 e o início de setembro deste
ano.
Sem recursos, uma
parte fundamental pode ficar alheia à reparação: as comunidades afetadas pelos
acidentes. É como se sente parte da população em Maresias. Nesse caso, os
Ministérios Público Federal e Estadual abriram uma ação civil pública. Além de
indenização pelos danos ambientais e morais coletivos, a ação solicitava a
reavaliação e reestruturação do plano.
Neste mês, um grupo de
instrutores de surfe e locadores de equipamentos aquáticos, que também tinha
uma ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), conseguiu uma indenização pelos
prejuízos. Apesar da decisão judicial, a briga dos moradores é pela implementação
do P2R2. "Eles [as transportadoras] deveriam procurar todas as associações
de moradores e dar treinamento, dar informação, não só de como funciona a
tramitação desses produtos pela rodovia Rio-Santos, mas também de outras
atividades da Petrobras na região”, defende Fernanda Carbonelli, advogada que
representou os instrutores e locadores na ação.
De acordo com a
Cetesb, na época do ocorrido foram constatados danos ambientais na praia de
Maresias, bem como incômodos à população após o acidente. O órgão afirmou que
atuou na colocação de barreiras absorventes para contenção do óleo e aplicação
de turfa absorvente para remoção do produto da água. E disse que multou a
Petrobras e a cooperativa em R$ 92 mil cada, além de determinar o auxílio no
reparo e restauração das áreas atingidas.
Fonte: DW Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário