sábado, 28 de setembro de 2024

'Brasil deveria se acostumar com discurso duplo' da Europa, diz analista sobre lei antidesmatamento

O governo brasileiro, por meio dos ministérios da Agricultura e Relações Exteriores, enviou uma carta às autoridades da União Europeia pedindo que o bloco adie a implementação de sua lei antidesmatamento. Especialistas consultados pela Sputnik Brasil revelam o prejuízo que a legislação trará ao Brasil e as supostas motivações por trás da regulação.

Em junho de 2023, a União Europeia (UE) publicou o Regulamento Antidesflorestamento, também conhecido pela sigla EUDR (European Union Deforestation Regulation). A nova legislação proíbe a importação de sete commodities que tenham origem em áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020: borracha, gado, cacau, café, soja, palma e madeira.

Também ficam proibidas as importações de derivados desses produtos, como chocolates, no caso do cacau, e móveis, papel e celulose, no caso da madeira, e até mesmo vários alimentos industrializados no caso do óleo de palma.

Prevista para entrar em vigor já em janeiro de 2025, a lei europeia foi intensamente criticada por países exportadores à UE, que terão apenas 18 meses para se adaptar à nova legislação. Os únicos que ganharam um pouco mais de tempo para se adaptar foram os pequenos agricultores. Para eles, a medida passa a valer somente em julho de 2025.

Pela regulação, o importador europeu deve exigir do agropecuarista comprovações de diligência quanto ao uso da terra onde a mercadoria foi produzida. Os produtores deverão apresentar dados, como coordenadas de geolocalização e imagens de satélite para provar que o commodity não veio de área desmatada.

·        EUDR gera preocupações mundiais

Em setembro de 2023, um grupo de 17 países, 11 da América Latina, três da Ásia e três da África notificaram a UE sobre suas preocupações quanto à EUDR. Em junho deste ano, até mesmo o grande aliado da Europa, os Estados Unidos, pediram ao bloco que adiasse a implementação da lei.

Em uma manobra que coloca o Brasil na frente diplomática dessas negociações, uma carta assinada pelos ministros Carlos Fávaro, do Ministério da Agricultura e Pecuária, e Mauro Vieira, do Ministério das Relações Exteriores, foi enviada ao comissário europeu para a Agricultura e Desenvolvimento Rural, Janusz Wojciechowski.

O documento retoma o pedido pelo adiamento de implementação da lei e alerta que mais de 30% das exportações brasileiras ao bloco estariam comprometidas.

Apurado pela Sputnik Brasil, as preocupações com a EUDR são variadas e vão desde inseguranças jurídicas, pouco tempo de adaptação, embates no direito internacional, até mesmo questões maiores da diplomacia.

Eduardo Galvão, professor de políticas públicas e relações institucionais do Ibmec do Distrito Federal e diretor da consultoria Burson Brasil, diz que a medida, como está escrita, traz inseguranças ao produtor pela falta de clareza em sua linguagem. Por exemplo, não há uma definição clara sobre o que é uma "floresta" e se isso incluiria biomas como o Cerrado.

Tampouco há equivalências com as leis brasileiras, como na definição de pequenas e médias empresas e a ausência de distinção entre desmatamento legal e ilegal, algo previsto no Código Florestal do Brasil e visto com preocupação pelas autoridades brasileiras.

Além disso, ressalta Galvão, o período de transição de 18 meses é visto como "muito curto", especialmente "para produtores menores que precisam de mais tempo para implementar sistemas de rastreabilidade sofisticados, como a geolocalização das propriedades e auditorias regulares".

"Para grandes players, a adaptação pode ser mais fácil, mas para pequenos produtores os custos e as exigências de rastreabilidade podem ser um golpe duro, empurrando-os para fora da cadeia de exportação."

A preocupação com pequenos produtores, "como agricultores familiares, cooperativas e associações de trabalhadores rurais" é ecoada por Viviana Porto, pesquisadora plena da Plataforma Cipó.

"Se uma empresa ou cooperativa não conseguir comprovar a origem do lote de terra onde foi produzida certa mercadoria, como a soja ou o gado, mesmo que tenha sido feito de maneira legal, não poderá exportar mais para a União Europeia."

Segundo a pesquisadora, isso pode levar a uma queda significativa nas exportações agrícolas, setor que no ano passado foi responsável por 23,8% do produto interno bruto (PIB) do Brasil.

"Essa falta de preparação pode exacerbar as desigualdades no setor agrícola e afetar a competitividade dos pequenos produtores brasileiros no mercado internacional."

·        Lei europeia fere a soberania brasileira?

A desconsideração da EUDR com a legislação dos demais países afetados, em especial a existência na lei brasileira de desmatamento legal, foi classificada na carta dos ministros brasileiros como um "aspecto extraterritorial que contraria o princípio da soberania".

À Sputnik Brasil, Viviana Porto afirma que o Itamaraty "está certo em afirmar que a regulamentação extrapola os limites de legislar sobre seu próprio território e mercado", uma vez que sua lei não está alinhada às regulamentações brasileira e dos demais países.

A opinião é compartilhada por Galvão, que afirma que a UE está impondo regras externas "sobre um país que já possui uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo".

Ainda assim, destaca o professor do Ibmec, a demanda por produtos sustentáveis está em alta, em especial entre os consumidores europeus.

"Assim, a União Europeia tem o direito de decidir os critérios para os produtos que deseja comprar, especialmente quando se trata de questões ambientais globais."

·        Contradição europeia

À reportagem, Eduardo Manuel Val, professor associado de direito internacional na Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do doutorado em direito da Faculdade Estácio, destaca ainda que o bloco europeu é soberano e, portanto, tem o direito de tomar suas decisões, mas há uma "enorme contradição" em sua postura.

"Como a UE não considera os avanços de um governo que reverte a situação do governo anterior — e que implementa uma série de medidas que colocaram o meio ambiente no centro da agenda geopolítica internacional — e ainda impõe uma normativa que é altamente punitiva?", indaga Val.

Em sua análise, a EUDR é prova de uma "duplicidade do discurso de proteção ambiental".

"Temos que nos acostumar com as contradições europeias e das potências hegemônicas."

A mesma justificativa foi usada pelo bloco europeu para adiar a ratificação do tratado de livre-comércio com o Mercosul, muito em prol da França, lembra o jurista. Dessa forma, a norma ambiental aplicada do jeito que está tem o interesse velado de proteger os próprios produtores europeus, que desmataram suas florestas há séculos.

·        Bronca é necessária

Após a notícia do pedido brasileiro ser divulgado, ambientalistas criticaram justamente as prioridades do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que até mesmo em sua fala na 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), instou outros países a colocarem o pé no acelerador e intensificar as medidas contra as mudanças climáticas.

Por um lado, o Brasil pede por mais ações contra as mudanças climáticas e, por outro, opõe-se à nova legislação europeia, que visa justamente combater o desmatamento, questionam ambientalistas.

Ainda que os três especialistas entrevistados pela reportagem destaquem a necessidade de balancear novas leis com os impactos econômicos e tempos de adaptação justos, em sua fala à Sputnik Brasil, Val equilibra ambos os lados do discurso e diz que, ainda que parta de interesses protecionistas, a reprimenda europeia é "necessária".

As recentes queimadas são provas disso. Com grandes indícios de autoria criminosa por trás dos incêndios, pouco foi feito pelo governo em termos de repreensão legal. "O governo tem que investir de forma mais contundente na vigilância e, também, na punição."

"É importante o Brasil entender que não é suficiente colocar uma série de normativas para reverter o quadro de desmatamento do nosso patrimônio natural se não efetivarmos essas medidas."

 

¨      'Equalizar as relações entre Norte e Sul Global': Lula quer protagonismo equiparado, diz analista

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursou nesta quarta-feira (25) durante a Sessão de Abertura da Reunião Ministerial do G20 e, entre outras coisas, reforçou que o país avalia apresentar uma proposta para reformar a Organização das Nações Unidas (ONU).

Com esse movimento, o Brasil retorna ao cenário internacional com uma agenda ambiciosa de reforma na governança global e de combate às desigualdades. Essas pautas, historicamente defendidas pelos países em desenvolvimento, refletem uma busca contínua por maior representatividade e justiça no sistema multilateral, aponta o especialista ouvido pela Sputnik Brasil.

Rodrigo Barros de Albuquerque, professor da pós-graduação em ciência política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Centro de Estudos sobre a União Europeia da Universidade Federal de Sergipe (Ceuro/UFS), salientou que "as instituições multilaterais historicamente representam os interesses de atores do Norte Global", conferindo a esses países desenvolvidos maior peso nas decisões importantes.

Ele destaca que os países em desenvolvimento, em sua maioria no Sul Global, "disputam espaços e poder" nessas instituições, sem obter mudanças significativas na estrutura de poder.

A proposta do governo brasileiro para reformar essas instituições, segundo Albuquerque, é uma "defesa histórica e importante", já que o Brasil tem desempenhado um papel ativo na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) desde sua fundação, embora sem conseguir alterar significativamente a dinâmica do poder.

"O Brasil foi um dos países mais presentes na composição rotativa do Conselho de Segurança da ONU", lembra o professor, mas a estrutura de poder, especialmente no Conselho, permanece inalterada.

Agora, como presidente do G20, o Brasil enfrenta novos desafios. A agenda de inclusão social e combate às desigualdades, central para o governo de Lula, envolve uma série de propostas que visam "investimentos em educação e saúde" e políticas para "promover a inclusão de mulheres, jovens e minorias no mercado de trabalho e na sociedade", grupos historicamente marginalizados.

·        Protagonismo do Sul Global

Contudo, Albuquerque ressalta que, "sendo uma agenda majoritariamente atinente aos países em desenvolvimento", há dificuldade em implementá-la de forma uniforme entre os membros do G20, muitos dos quais não compartilham das mesmas prioridades.

Outro desafio que o Brasil enfrenta é o financiamento dessas políticas. "Em um cenário de restrições orçamentárias globais pode ser difícil conseguir garantir recursos financeiros" para programas de inclusão social, especialmente considerando a concorrência com os "significativos investimentos necessários para combater as mudanças climáticas".

A eficácia dessas políticas, segundo o professor, depende da "capacidade de cooperação entre os países do G20" e da habilidade de "monitorar e ajustar essas políticas", conforme necessário. No que diz respeito à governança global, Lula tem enfatizado a necessidade de uma "representação mais equitativa" nas organizações internacionais.

"A inclusão dos países em desenvolvimento nos processos decisórios importantes dessas instituições traria mais legitimidade", argumenta Albuquerque.

Ele acredita que isso seria crucial para lidar com as críticas frequentes sobre decisões impostas "de cima" aos países em desenvolvimento. Além disso, reformas no sistema de comércio internacional, liderado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), e maior transparência nas instituições financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, também são vistas como formas de "equalizar as relações entre o Norte e o Sul Global" e reduzir as injustiças históricas.

·        Aliança Global contra a Fome e a Pobreza

Outro ponto alto da agenda de Lula é a proposta da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que se alinha com as prioridades globais e do G20. "A luta contra a fome e a pobreza é uma prioridade global, refletida nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS]", afirma Albuquerque, especialmente o ODS 1 (Erradicação da Pobreza) e o ODS 2 (Fome Zero).

Ele também destaca que a Aliança Global está "alinhada com as discussões do G20 sobre segurança alimentar", uma preocupação crescente diante das crises econômicas e climáticas. Para o professor, a iniciativa também visa "promover práticas agrícolas sustentáveis e resilientes", cruciais para o desenvolvimento sustentável, e está de acordo com as metas ambientais e econômicas do G20.

A proposta de Lula, diz Albuquerque, "está firmemente enraizada na necessidade de cooperação internacional", um princípio fundamental do G20. No entanto, ele alerta que crises globais emergentes, como as guerras no Oriente Médio e na Ucrânia, ou novas pandemias, podem "redirecionar a atenção dos membros do G20" e relegar a segundo plano as políticas de inclusão social e combate às desigualdades. Mesmo assim, o Brasil permanece firme em seu papel de defensor das causas dos países em desenvolvimento, com Lula liderando a luta por um mundo mais justo e igualitário.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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