‘O
insulto o protege, reforça as barreiras de seu narcisismo’
O termo deriva do
latim clássico insultum, literalmente significava assalto; era comumente
empregado na linguagem militar como sinônimo de ataque, exprimia ainda a ideia
de um lugar de proteção às ameaças do inimigo, isto é, “fora de insulto”. Com o
tempo, as línguas se dobram às exigências da história, o conceito identifica-se
a injúria, ultraje, palavra ofensiva à dignidade do outro.
O conteúdo coletivo
anterior deixa de existir e a dimensão individual predomina, o ato se volta
para um alvo preciso; há o insultador e o insultado, aquele que exerce a
violência verbal e aquele ao qual ela se dirige. Nesse sentido, ele se
diferencia da ideia de xingamento; os palavrões podem muitas vezes implicar a
depreciação das pessoas, entretanto, em algumas ocasiões, são enunciados sem
considerar a existência de alguém exterior a quem o professa (por exemplo,
quando digo “merda”, “caralho”, ao tropeçar).
Dizem os linguistas
que o insulto é inseparável do contexto, nele seu significado torna-se
completo, plenamente inteligível. Existem insultos rituais, geralmente se fazem
entre os jovens, quando um deles fala e o outro responde na mesma tonalidade
ofensiva; os impropérios mútuos não possuem necessariamente uma intenção
pejorativa, indicam simplesmente o pertencimento a um grupo específico (ocorre
principalmente entre os participantes de uma gangue).
Podem também fazer
rir; Henri Bergson dizia que o riso tinha a “função de intimidar e de
humilhar”, revelava a malícia oculta na alma de todo ser humano,
insensibilidade que “anestesiaria o coração” (os humoristas têm horror à sua
interpretação). Haveria assim uma espécie de afinidade eletiva entre o insulto
e o riso.
O insulto é um
artifício amplamente utilizado na política, na disputa argumentativa muitas
vezes desqualifica-se o adversário. Na batalha a ser vencida a estratégia de
combate escolhida combina desdém, descaso e menosprezo. Mas trata-se de uma
“luta” específica entre antagonistas, não propriamente de uma “guerra” de
destruição. Entretanto, sua generalização e recorrência a transforma em um
elemento constitutivo de um tipo de linguagem, quero dizer, de apreensão do
mundo.
Uma linguagem não se
refere apenas a um evento fortuito, as palavras que o nomeiam, ela modela o
pensamento. Constituem-se em categorias de classificação e de conhecimento da
realidade. Todo sistema autoritário almeja a disciplinarização da linguagem. Dessa
forma, a injúria torna-se um recurso natural de expressão linguística. Isso
ocorre com as afirmações agressivas feitas e repetidas pelos grupos de extrema
direita (em particular o que denominei Língua franca do boçalnarismo). Elas
fazem parte de um léxico no qual a intolerância tornou-se virtude.
O embate com o mundo
se funda em uma concepção filosófica, isto é, uma ideologia que pressupõe a
existência de um “nós” contra “eles”, perspectiva excludente na qual o
adversário é um inimigo, um estranho a ser rebaixado, de preferência eliminado.
A realidade, ou a verdade, como dizem os filósofos, nesse caso é um ruído
impertinente a ser afastado. A violência verbal cumpre o papel de reduzir o
outro à posição de humilhação e impotência, sua presença ilusória é desarmada
pela convicção e o alarido da ofensa.
Há uma correlação
entre insulto e espaço público. Restrito ao domínio privado sua implicação é
parcial, envolve apenas os participantes do ato discursivo. De maneira
sintética pode-se dizer que o espaço público é um território comum no qual as
opiniões individuais se manifestam. Ele pressupõe duas dimensões: o comum e o
individual. Entretanto, em sua origem, na modernidade industrial, distingue-se
claramente entre o público e o privado.
A modernidade do
século XIX amplia o espaço de inclusão das pessoas, independentemente de suas
raízes sociais ou estamentais. Porém, ela estabelece também uma nítida
separação entre privacidade e domínio público. Walter Benjamin costumava dizer
que no aconchego das casas burguesas a mobília vinha marcada pelas impressões
digitais de seus donos. A casa era o refúgio do burburinho da rua. As
fronteiras se exprimiam com nitidez em um gênero literário da época, os
romances femininos (penso em Jane Austen) nos quais as mulheres encontravam-se
confinadas ao espaço da moradia e suas adjacências (bailes e festas).
Mas a esfera pública
se transforma, particularmente com os meios de comunicação e as mudanças
tecnológicas; as redes sociais radicalizam esse processo, rompendo a
incompatibilidade que anteriormente existia. A interação se amplia, envolve um
conjunto de atores que habitam um universo compartilhado. Mas não se pode
esquecer, a deslocalização das interações digitais favorece uma exacerbação do
Eu, ele torna-se público, está em “todos os lugares”.
A subjetividade é
assim vivenciada em sua expansão, é percebida como uma qualidade infinita, não
pode ser restringida. Os entraves em relação à comunicação não constituem
propriamente uma censura daquilo que é dito, é a restrição que constrange, ela
circunscreve a ação do mínimo Eu à exiguidade de suas fronteiras.
Na solidão da tela
digital o indivíduo vive a ilusão de sua infinitude, o outro é percebido como
potencialmente disruptivo em sua presença invasora. A injúria o protege,
reforça as barreiras de seu narcisismo. Em seu significado originário, insulto
nos remetia à ideia de assalto; ironicamente os “novos tempos” nos aproximam de
seu passado etimológico. O exacerbamento do individualismo constrói um “lugar
de insulto” no qual o rumor da língua encontra-se ao abrigo das intempéries da
vida.
Fonte: Por Renato
Ortiz, em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário