quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Brasil e as drogas: a vanguarda do atraso?

Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar: a “guerra contra as drogas” é travada contra pessoas e não contra “as drogas”, afinal, estas são substâncias inanimadas. As pessoas em questão, por sua vez, são precisamente as mais pobres, de pele mais escura, migrantes, imigrantes, periféricas, faveladas e com baixo nível de educação formal mundo afora.

Apesar de ser encabeçada e impulsionada pelos Estados Unidos a partir dos anos 1970, a war on drugs não é uma novidade. Séculos de preconceitos de raça, de classe, de gênero, de origem e contra a experimentação de estados alterados de consciência estavam incrustados na superestrutura de sociedades em todo o globo quando as primeiras leis e tratados antidrogas começaram a ser produzidos na década de 1910. Também no Brasil.

Do mesmo modo que não foi preciso que nenhuma potência estrangeira impusesse à sociedade brasileira o racismo, a exploração do capital, a violência de gênero e as formas genocidas contra povos originários, a proibição às drogas e os seus dispositivos repressivos têm raízes locais antigas. Em alguns casos, o proibicionismo praticado por brasileiros antecipou-se a tendências mundiais, como com a maconha.

Foi do Brasil a primeira lei municipal a criminalizar a maconha (no Rio de Janeiro de 1830); foram médicos e diplomatas brasileiros que defenderam, nos anos 1920, que a maconha deveria ser proibida em todo o mundo por ser o “ópio dos pobres”; e a Cannabis foi proibida antes aqui (1932) do que nos Estados Unidos (1936). Hoje os tempos são outros, práticas sociais e costumes foram modificados, mas o regime de proibição das drogas – o proibicionismo – segue demonstrando ter grande capacidade de se adaptar às demandas de lucratividade do capital. No Brasil, portanto, existe um proibicionismo à moda da casa.

Para funcionar, o proibicionismo precisa de alguns elementos:

1) a existência de valores morais que repudiem estados alterados de consciência e prazeres sensoriais,

2) a presença estrutural de práticas racistas, xenofóbicas e de ódio a divergentes sexuais ou comportamentais,

3) a necessidade de conter pela violência uma massa cada vez maior de excluídos e marginalizados,

4) um aparato jurídico-político controlado por e a serviço de uma elite a fim de administrar essa massa em crescimento,

5) o investimento da indústria farmacêutica e da classe médica para o uso de algumas substâncias enquanto outras, associadas a terapêuticas de grupos sociais marginalizados e racializados, são perseguidas,

6) o funcionamento de um poderoso mercado legal para drogas cujo consumo é estimulado, tanto para o uso recreativo (álcool, tabaco), quanto para o médico (benzodiazepínicos, opioides, anfetaminas e, crescentemente, o canabidiol – CBD – extraído da Cannabis).

O Brasil testa positivo para todos os itens acima e, apesar das movimentações progressistas no edifício global do proibicionismo, o país continua apegado ao proibicionismo, com algumas poucas brechas que se abrem enquanto muitas portas se fecham, ou ameaçam bater, no ambiente fascistoide-neopentecostal em que está afundado.

·        Alvos negros

A “guerra às drogas” nunca foi apenas um controle sobre substâncias psicoativas, mas um modo de organização da sociedade que extrapola a regulação das substâncias e incide sobre a vida das pessoas entendidas pelo capitalismo racializado como indesejáveis, apesar de paradoxalmente necessárias para a expansão do capital. Trata-se de uma política que tem na sinergia entre ódio de classes e racismo o dispositivo ideal para atualizar o colonialismo, ajudando a conformar as disputas no interior da luta de classes.

É a classe trabalhadora, e sobretudo a juventude negra, a mais vitimada pelas disputas por territórios, pelas incursões militarizadas das polícias contra traficantes e pelos conflitos dos grupos ilegais entre si. Décadas de confrontos armados em nome dessa “guerra” criaram as condições para que a circulação de inúmeras outras mercadorias, bens e serviços ilegais se tornassem altamente lucrativas nas cidades do Brasil.

É nas periferias que as violências do proibicionismo se mostram mais deletérias, já que todo o tecido social é controlado a partir do poder do tráfico e das tentativas do Estado de contra-arrestá-lo. É nas favelas e periferias que as escolas são fechadas quando há confrontos, que o comércio é extorquido, que a vida cotidiana da população é marcada pela brutalidade policial, pela coação de facções e de milícias e pela ameaça constante de uma “bala perdida” fatal. Nas áreas urbanas precarizadas, que concentram a população mais vulnerável e marginalizada, a “guerra às drogas” funciona como dispositivo de controle social que é operado simultaneamente pelas práticas disciplinares e repressivas de milícias, por facções do tráfico e por forças de segurança do Estado. Essa imensa população é, portanto, sobregovernada e superexplorada num ambiente estruturado pelas “disputas do tráfico, das milícias e de uma polícia que se faz presente  não para a garantia da segurança e da vida, mas para a repressão, quando não o extermínio”.

        Passos à frente, passos atrás 

Em junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um longo julgamento no qual ficou decidido que pessoas flagradas com até quarenta gramas de maconha ou seis pés de Cannabis deveriam ser consideradas “usuárias” e não “traficantes”. A decisão veio como uma tentativa de superar o vácuo deixado pela Lei n. 11.343/2006, que diferenciou traficantes de usuários, mas não estabeleceu uma métrica quanto às quantidades de drogas ilegais máximas para definir quem era o quê. A lei deixou a decisão a cargo da autoridade policial (delegado/PM), o que terminou por oficializar a seletividade penal, fenômeno pelo qual apenas um determinado perfil de pessoas é efetivamente impactado pelo aparato repressivo estatal.

No caso brasileiro, esse perfil é o de pessoas negras, pobres, de baixa escolaridade, moradoras de favelas e periferias. O resultado da Lei de Drogas foi um crescimento exponencial da população carcerária brasileira. Hoje, o Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo, com aproximadamente 850 mil presos. Estima-se que um terço deles esteja nessa condição por crimes relacionados a drogas.

Ao contrário do alardeado, o STF não “descriminalizou” (deixou de considerar a conduta crime), tampouco “despenalizou” (diminuiu as penas), o uso ou porte de maconha. O art. 28 da Lei de Drogas não foi alterado, permanecendo a previsão de “penas alternativas à prisão”. Portanto, a pessoa condenada por uso ou porte de Cannabis continuará perdendo o réu primário e ficando com a ficha suja. A polêmica foi grande, mas a decisão nada teve de radical. Além disso, ela bizarramente não se estende às outras drogas ilegais, que continuam sem métrica definida.

Para completar, a votação no STF foi constrangida pelo trâmite simultâneo da Proposta de Emenda Constitucional n. 45, que visa incluir a criminalização do uso de drogas na Constituição Federal. Tirando o período da Lei Seca nos Estados Unidos, entre 1920 e 1933, quando o álcool foi proibido por uma emenda constitucional, o Brasil inovaria ao ser o único país do mundo a incluir o proibicionismo na sua Carta Magna. Ainda assim, há avanços, principalmente quanto à autorização para o uso de CBD no tratamento de uma série de condições médicas graves.

Segundo o jurista marxista Piotr Stutchka, o direito é um arranjo normativo que espelha “relações sociais segundo os interesses da classe vencedora”. O proibicionismo, ao mesmo tempo, é e não é isso. De fato, o regime de ilegalidade das drogas potencializa os instrumentos à disposição do Estado para controlar a massa de pessoas que Achille Mbembe precisamente denominou de vidas matáveis.

No entanto, o proibicionismo não é apenas uma imposição das elites. Existe uma hegemonia proibicionista no sentido gramsciano, ou seja, a ilegalidade das drogas não é meramente imposta pela força ou pela doutrinação ideológica, mesmo que os aparelhos hegemônicos de hoje – mídias sociais, serviços de streaming etc. – difundam constantemente o “perigo dos cracudos” ou a “ameaça das facções”.

As bases morais das posturas antidrogas são profundas e estão atadas à própria hegemonia burguesa capitalista. Uma pesquisa de 2023 indicou que 61% das pessoas são contrárias à legalização das drogas, enquanto 22% são favoráveis. Sobre o uso medicinal da maconha, o apoio foi de 56%. O repúdio ao uso recreativo segue firme, mas algo se move na correlação de forças sobre as drogas em nossa sociedade civil.

No Brasil, para inverter a famosa frase de Lênin, quando se trata das drogas, caminha-se um passo à frente, dois passos atrás. Cada conquista de direitos e consequente enfraquecimento da lógica repressiva é combatido com uma artilharia pesada, pois a questão das drogas está capturada pela chamada “pauta dos costumes”. A centro-esquerda se amedronta diante da ultradireita, enquanto poucos na política institucional bancam enfrentar o debate. Entre as forças progressistas existe o perigo de que a luta socialista, necessariamente interseccional – antirracista, antiproibicionista, antipatriarcal, antiLGBTfóbica e classista –, seja fracionada por escolhas táticas diante das dificuldades impostas pelo ultraconservadorismo. São tortuosos, enfim, os caminhos do antiproibicionismo no Brasil.

 

Fonte: Por Thiago Rodrigues e Daniela Ferrugem, no Blog da Boitempo

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