Brasil e as drogas: a vanguarda do atraso?
Pode parecer óbvio,
mas é importante lembrar: a “guerra contra as drogas” é travada contra pessoas
e não contra “as drogas”, afinal, estas são substâncias inanimadas. As pessoas
em questão, por sua vez, são precisamente as mais pobres, de pele mais escura,
migrantes, imigrantes, periféricas, faveladas e com baixo nível de educação
formal mundo afora.
Apesar de ser
encabeçada e impulsionada pelos Estados Unidos a partir dos anos 1970, a war on
drugs não é uma novidade. Séculos de preconceitos de raça, de classe, de
gênero, de origem e contra a experimentação de estados alterados de consciência
estavam incrustados na superestrutura de sociedades em todo o globo quando as
primeiras leis e tratados antidrogas começaram a ser produzidos na década de
1910. Também no Brasil.
Do mesmo modo que não
foi preciso que nenhuma potência estrangeira impusesse à sociedade brasileira o
racismo, a exploração do capital, a violência de gênero e as formas genocidas
contra povos originários, a proibição às drogas e os seus dispositivos repressivos
têm raízes locais antigas. Em alguns casos, o proibicionismo praticado por
brasileiros antecipou-se a tendências mundiais, como com a maconha.
Foi do Brasil a
primeira lei municipal a criminalizar a maconha (no Rio de Janeiro de 1830);
foram médicos e diplomatas brasileiros que defenderam, nos anos 1920, que a
maconha deveria ser proibida em todo o mundo por ser o “ópio dos pobres”; e a
Cannabis foi proibida antes aqui (1932) do que nos Estados Unidos (1936). Hoje
os tempos são outros, práticas sociais e costumes foram modificados, mas o
regime de proibição das drogas – o proibicionismo – segue demonstrando ter
grande capacidade de se adaptar às demandas de lucratividade do capital. No
Brasil, portanto, existe um proibicionismo à moda da casa.
Para funcionar, o
proibicionismo precisa de alguns elementos:
1) a existência de
valores morais que repudiem estados alterados de consciência e prazeres
sensoriais,
2) a presença
estrutural de práticas racistas, xenofóbicas e de ódio a divergentes sexuais ou
comportamentais,
3) a necessidade de
conter pela violência uma massa cada vez maior de excluídos e marginalizados,
4) um aparato
jurídico-político controlado por e a serviço de uma elite a fim de administrar
essa massa em crescimento,
5) o investimento da
indústria farmacêutica e da classe médica para o uso de algumas substâncias
enquanto outras, associadas a terapêuticas de grupos sociais marginalizados e
racializados, são perseguidas,
6) o funcionamento de
um poderoso mercado legal para drogas cujo consumo é estimulado, tanto para o
uso recreativo (álcool, tabaco), quanto para o médico (benzodiazepínicos,
opioides, anfetaminas e, crescentemente, o canabidiol – CBD – extraído da
Cannabis).
O Brasil testa
positivo para todos os itens acima e, apesar das movimentações progressistas no
edifício global do proibicionismo, o país continua apegado ao proibicionismo,
com algumas poucas brechas que se abrem enquanto muitas portas se fecham, ou
ameaçam bater, no ambiente fascistoide-neopentecostal em que está afundado.
·
Alvos negros
A “guerra às drogas”
nunca foi apenas um controle sobre substâncias psicoativas, mas um modo de
organização da sociedade que extrapola a regulação das substâncias e incide
sobre a vida das pessoas entendidas pelo capitalismo racializado como
indesejáveis, apesar de paradoxalmente necessárias para a expansão do capital.
Trata-se de uma política que tem na sinergia entre ódio de classes e racismo o
dispositivo ideal para atualizar o colonialismo, ajudando a conformar as
disputas no interior da luta de classes.
É a classe
trabalhadora, e sobretudo a juventude negra, a mais vitimada pelas disputas por
territórios, pelas incursões militarizadas das polícias contra traficantes e
pelos conflitos dos grupos ilegais entre si. Décadas de confrontos armados em
nome dessa “guerra” criaram as condições para que a circulação de inúmeras
outras mercadorias, bens e serviços ilegais se tornassem altamente lucrativas
nas cidades do Brasil.
É nas periferias que
as violências do proibicionismo se mostram mais deletérias, já que todo o
tecido social é controlado a partir do poder do tráfico e das tentativas do
Estado de contra-arrestá-lo. É nas favelas e periferias que as escolas são
fechadas quando há confrontos, que o comércio é extorquido, que a vida
cotidiana da população é marcada pela brutalidade policial, pela coação de
facções e de milícias e pela ameaça constante de uma “bala perdida” fatal. Nas
áreas urbanas precarizadas, que concentram a população mais vulnerável e
marginalizada, a “guerra às drogas” funciona como dispositivo de controle
social que é operado simultaneamente pelas práticas disciplinares e repressivas
de milícias, por facções do tráfico e por forças de segurança do Estado. Essa
imensa população é, portanto, sobregovernada e superexplorada num ambiente
estruturado pelas “disputas do tráfico, das milícias e de uma polícia que se
faz presente não para a garantia da
segurança e da vida, mas para a repressão, quando não o extermínio”.
• Passos à frente, passos atrás
Em junho de 2024, o
Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um longo julgamento no qual ficou
decidido que pessoas flagradas com até quarenta gramas de maconha ou seis pés
de Cannabis deveriam ser consideradas “usuárias” e não “traficantes”. A decisão
veio como uma tentativa de superar o vácuo deixado pela Lei n. 11.343/2006, que
diferenciou traficantes de usuários, mas não estabeleceu uma métrica quanto às
quantidades de drogas ilegais máximas para definir quem era o quê. A lei deixou
a decisão a cargo da autoridade policial (delegado/PM), o que terminou por
oficializar a seletividade penal, fenômeno pelo qual apenas um determinado
perfil de pessoas é efetivamente impactado pelo aparato repressivo estatal.
No caso brasileiro,
esse perfil é o de pessoas negras, pobres, de baixa escolaridade, moradoras de
favelas e periferias. O resultado da Lei de Drogas foi um crescimento
exponencial da população carcerária brasileira. Hoje, o Brasil tem a terceira
maior população prisional do mundo, com aproximadamente 850 mil presos.
Estima-se que um terço deles esteja nessa condição por crimes relacionados a
drogas.
Ao contrário do
alardeado, o STF não “descriminalizou” (deixou de considerar a conduta crime),
tampouco “despenalizou” (diminuiu as penas), o uso ou porte de maconha. O art.
28 da Lei de Drogas não foi alterado, permanecendo a previsão de “penas
alternativas à prisão”. Portanto, a pessoa condenada por uso ou porte de
Cannabis continuará perdendo o réu primário e ficando com a ficha suja. A
polêmica foi grande, mas a decisão nada teve de radical. Além disso, ela
bizarramente não se estende às outras drogas ilegais, que continuam sem métrica
definida.
Para completar, a
votação no STF foi constrangida pelo trâmite simultâneo da Proposta de Emenda
Constitucional n. 45, que visa incluir a criminalização do uso de drogas na
Constituição Federal. Tirando o período da Lei Seca nos Estados Unidos, entre
1920 e 1933, quando o álcool foi proibido por uma emenda constitucional, o
Brasil inovaria ao ser o único país do mundo a incluir o proibicionismo na sua
Carta Magna. Ainda assim, há avanços, principalmente quanto à autorização para
o uso de CBD no tratamento de uma série de condições médicas graves.
Segundo o jurista
marxista Piotr Stutchka, o direito é um arranjo normativo que espelha “relações
sociais segundo os interesses da classe vencedora”. O proibicionismo, ao mesmo
tempo, é e não é isso. De fato, o regime de ilegalidade das drogas potencializa
os instrumentos à disposição do Estado para controlar a massa de pessoas que
Achille Mbembe precisamente denominou de vidas matáveis.
No entanto, o
proibicionismo não é apenas uma imposição das elites. Existe uma hegemonia
proibicionista no sentido gramsciano, ou seja, a ilegalidade das drogas não é
meramente imposta pela força ou pela doutrinação ideológica, mesmo que os
aparelhos hegemônicos de hoje – mídias sociais, serviços de streaming etc. –
difundam constantemente o “perigo dos cracudos” ou a “ameaça das facções”.
As bases morais das
posturas antidrogas são profundas e estão atadas à própria hegemonia burguesa
capitalista. Uma pesquisa de 2023 indicou que 61% das pessoas são contrárias à
legalização das drogas, enquanto 22% são favoráveis. Sobre o uso medicinal da
maconha, o apoio foi de 56%. O repúdio ao uso recreativo segue firme, mas algo
se move na correlação de forças sobre as drogas em nossa sociedade civil.
No Brasil, para
inverter a famosa frase de Lênin, quando se trata das drogas, caminha-se um
passo à frente, dois passos atrás. Cada conquista de direitos e consequente
enfraquecimento da lógica repressiva é combatido com uma artilharia pesada,
pois a questão das drogas está capturada pela chamada “pauta dos costumes”. A
centro-esquerda se amedronta diante da ultradireita, enquanto poucos na
política institucional bancam enfrentar o debate. Entre as forças progressistas
existe o perigo de que a luta socialista, necessariamente interseccional –
antirracista, antiproibicionista, antipatriarcal, antiLGBTfóbica e classista –,
seja fracionada por escolhas táticas diante das dificuldades impostas pelo
ultraconservadorismo. São tortuosos, enfim, os caminhos do antiproibicionismo
no Brasil.
Fonte: Por Thiago
Rodrigues e Daniela Ferrugem, no Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário