Candidaturas indígenas crescem, mas
enfrentam o racismo e a velha politicagem
SE ANTES NÃO HAVIA
ROSTOS, vozes e adereços indígenas na política, hoje a realidade é outra. Desde
que o movimento indígena se organizou para tentar eleger mais representantes, o
número de candidaturas aumenta a cada pleito. Poucos, no entanto, conseguem se
eleger.
As campanhas enfrentam
inúmeras dificuldades, como o preconceito, a falta de verbas e um modo de fazer
política que favorece outras candidaturas, como o uso da máquina pública.
A Repórter Brasil
conversou com seis candidatos indígenas (dois a prefeito e quatro a vereador)
em municípios do Norte, Nordeste e Sudeste do país, para conhecer os principais
desafios das campanhas e suas expectativas na política.
Candidata a vereadora
em Manaus (AM) pela Rede Sustentabilidade, Vanda Witoto diz que o preconceito e
a compra de votos estão entre os principais desafios. Ela destaca que há muita
violência na política partidária como parte de um racismo institucional, prevalente
em espaços públicos ocupados por homens brancos.
Em 2022, quando era
candidata à deputada federal pelo Amazonas, Vanda foi hostilizada por um grupo
de pessoas vestidas de verde e amarelo na chegada ao colégio eleitoral, no dia
da votação. Ela estava com a sobrinha, ambas pintadas e com adereços e trajes
tradicionais.
“Vivenciamos situações
como essa inúmeras vezes. Este é um campo muito violento, principalmente para
as mulheres. Nos desqualificam. Temos que provar que a gente tem condição de
estar ali, de estar concorrendo e ser eleita”, conta Vanda.
Líder do povo Witoto,
Vanda teve uma votação expressiva em 2022, com 25.545 votos, mas insuficiente
para se eleger. Manaus é a cidade com mais indígenas do país: 71,7 mil pessoas,
ou 3,5% da população. Ainda assim, não elegeu nenhum indígena para as 8 vagas
de deputado federal em 2022, nem para as 34 vagas de suplente. A maioria eram
brancos e pardos.
Vanda diz que, em
período eleitoral, muitos candidatos cooptam lideranças indígenas para que os
apoiem em troca de favores. Por isso, ela vê sua campanha também como um ato de
consciência política.
“O que chega aos
nossos territórios, comunidades indígenas e periferias da cidade de Manaus é a
compra de voto, por meio das cestas básicas, da compra da receita do remédio e
do botijão de gás. Esse é o mecanismo da politicagem no nosso município, é essa
a estrutura colocada para o nosso povo. Então, a minha caminhada tem esse
mecanismo também de educação, de consciência política, de a gente perceber o
voto como um instrumento de garantia dos nossos direitos”, pontua.
A política partidária
foi por um tempo um dilema para o movimento indígena, explica Kleber Karipuna,
coordenador da Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Aos
poucos, contudo, o movimento foi entendendo que era necessária uma participação
mais organizada na política, como estratégia para defesa de direitos e
territórios indígenas.
Foi assim que, em
2017, a Apib lançou o primeiro manifesto de apoio a candidaturas indígenas no
Brasil, no âmbito do Acampamento Terra Livre (ATL), que acontece anualmente em
abril. “Por um tempo éramos muito isentos nesse debate, mas com o tempo começamos
a avaliar que era necessário estar nesse meio. Porque é ali que começamos a
entender várias discussões do rumo do país e, por consequência, dos povos
indígenas”, reflete o coordenador.
Um marco desse momento
foi a eleição da primeira mulher indígena deputada federal em 2018, Joenia
Wapichana, pela Rede em Roraima. Atualmente ela é presidenta da Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – antes dela, apenas o xavante Mario
Juruna havia sido eleito pelo Rio de Janeiro para a Câmara dos Deputados, em
1982.
Na eleição de 2022, o
movimento conseguiu eleger duas candidaturas da “bancada do cocar” para a
Câmara dos Deputados: Célia Xakriabá (PSOL/MG) e Sônia Guajajara (PSOL/SP),
atual Ministra dos Povos Indígenas.
O movimento acredita
que o resultado disso é o aumento de candidaturas nas eleições municipais de
2024, com 2.479 registros – 14% a mais do que em 2020. O crescimento entre os
indígenas foi o único registrado entre candidatos brancos, pardos, pretos, amarelos
e os que não informaram.
Esse momento ocorre
cerca de 60 anos após a eleição dos primeiros indígenas. “No nosso
levantamento, detectamos essa presença desde a década de 60. Tem referências
históricas, como o seu Manoel Primo dos Santos [eleito em 1969). Em 1970, o
Ângelo Kretã”, destaca Kleber Karipuna.
Manoel Primo dos
Santos, o Seu Coco, tornou-se liderança do povo Karipuna ainda nos anos 1940,
quando fundou a Aldeia Santa Izabel na região de Oiapoque, no Amapá. O tuxaua
(cacique) participou da formação das primeiras organizações indígenas locais e
foi um dos líderes da demarcação de terras indígenas na região. Seu Coco foi
eleito vereador para o mandato de 1970 a 1973, e depois para um segundo mandato
entre 1982 e 1988. A Câmara Municipal de Oiapoque leva hoje seu nome: Palácio
Manoel Primo dos Santos.
Já o cacique kaingang
Ângelo Kretã se elegeu vereador de Mangueirinha (PR) em 1976, após lutar na
Justiça pelo direito de candidatar-se.
Mas o primeiro
indígena eleito foi uma mulher, Carmelita Josefa Cruz Cá Arfer, ou Carmelita
Cruz, do povo Tuxá, agente de saúde e professora na comunidade de Rodelas,
Bahia. Ela foi eleita na primeira votação após a emancipação da cidade, em
1962.
Em entrevista ao
pesquisador Dorival Vieira Almeida, da Universidade do Estado da Bahia,
realizada no ano passado, Carmelita contou que foi eleita a partir da
mobilização do povo Tuxá com o intuito de garantir direitos para sua
comunidade.
“Seu Né [Manoel
Novaes, encarregado do posto indígena local, vinculado ao Serviço de Proteção
ao Índio] disse pra gente que o melhor era me lançar porque eu não tinha
problema com os brancos, muito pelo contrário, fazia diversos trabalhos de
saúde para eles, então seria mais fácil vencer, nós tínhamos muitos votos”,
contou.
Segundo o pesquisador,
ela deixou de concorrer nas eleições seguintes alegando que seu trabalho como
enfermeira e professora era mais produtivo para a comunidade. Carmelita foi
eleita numa época em que os vereadores não eram remunerados e tinham que compartilhar
a função com outras obrigações. Com o apoio dela, o povo Tuxá decidiu apoiar de
forma coletiva nas duas eleições seguintes um outro candidato, não indígena,
que foi eleito.
• Entre o preconceito e a falta de verba
Apesar do número
expressivo de candidaturas atualmente, o grande desafio ainda é serem eleitos.
No Congresso Nacional, há 513 vagas, mas somente cinco parlamentares que se
autodeclaram indígenas foram eleitos em 2022: Célia, Sônia, Silvia Waiãpi
(PL-AP), Juliana Cardoso (PT-SP) e Paulo Guedes (PT-MG). Já nas prefeituras em
2020 foram eleitos apenas 8 indígenas, um número ainda pequeno frente ao total
de prefeitos eleitos (5.569) e o tamanho da população indígena no país (1,7
milhão, segundo dados de 2023 do IBGE).
Líder do seu povo
desde os 17 anos, Almir Suruí, 50, dos Paiter Suruí, é candidato pelo PDT a
prefeito de Cacoal, Rondônia. Assim como muitos dos ouvidos pela reportagem,
ele conta como o preconceito é um dos maiores desafios de sua candidatura.
Muitos chegam a questionar sua competência, seus estudos e sua técnica para
gerir um município, simplesmente por ser indígena.
“Eu tenho recebido
muito preconceito, e isso me abala às vezes, dói no coração, machuca e é
preciso ser forte e ter sabedoria para enfrentar isso. Eles questionam: ‘Por
que o índio quer ser prefeito? Ele não tem competências administrativas’. Mas
eu sou um ser humano que sente a dificuldade que sua população vive e sofre. E
eu quero contribuir com isso. Com a experiência que eu tenho como líder
indígena. Então, assim, claro que eu tenho capacidade! Eu fui à mesma faculdade
que eles foram”.
Com 87 mil pessoas,
Cacoal tem 2% de indígenas na população, 37% brancos, 53% pardos e 8% pretos,
segundo o Censo do IBGE de 2022. Almir Surui (PDT) concorre com Adailton Fúria
(PSD) e Celso Popó (PL).
Já em Barra do Corda,
no Maranhão, a jovem indígena de apenas 23 anos Thárcylla Wazayzar tenta pela
primeira vez uma das cadeiras do município pelo PCdoB. Nesse processo ela
enfrenta a barreira de ser vista como jovem demais para o cargo, mulher e
indígena.
“Eu vejo que as
pessoas olham para mim nesse processo, a minha idade, meu gênero, tudo isso juntando o fato de ser indígena, as
pessoas não me enxergam como um quadro preparado. Por mais que eu seja jovem,
eu estou pronta. Nossa cidade ainda não elegeu uma pessoa indígena, e acredito
que esse momento histórico possa ocorrer,
de eleger a primeira indígena para a câmara, para que a gente tenha voz
e representatividade dentro desse espaço, para que tenhamos políticas públicas
que muitas das vezes nos é negado”, diz a jovem.
Thárcylla Wazayzar
elogia o seu partido nesse processo, afirmando que a legenda garantiu que a
candidatura não seria apenas para cumprir cota, como acontece com muitas
candidaturas indígenas. “Eles foram cuidadosos com isso”, pontua.
Nascida na aldeia
Surucuá, à margem esquerda do rio Tapajós, Raquel Tupynambá (PT) tenta uma vaga
como vereadora em Santarém, no Pará. Ela conta que o maior desafio é ter
recursos financeiros para chegar aos territórios, principalmente no período de
estiagem dos rios.
“Todo recurso que nós
temos é recurso que entra de forma oficial, enquanto que os outros candidatos e
políticos já têm suas outras formas de convencimento. Por exemplo, com essa seca é mais difícil chegar nos
territórios, falta recurso para ampliar a nossa campanha” reflete Raquel.
Encravada ao noroeste
do país, São Gabriel da Cachoeira (AM) fica na fronteira entre Colômbia e
Venezuela. É o terceiro município do país com o maior percentual de indígenas
entre a população: 93%
A questão ali não é o
preconceito, já que a maioria da população é indígena, conta Marivelton Baré
(Rede Sustentabilidade), candidato a prefeito. O problema, para ele, é a falta
de recursos e o limite de gastos de campanha, uma regra eleitoral que pode até
funcionar em algumas cidades, mas não no caso de São Gabriel, critica.
Na cidade, para chegar
a um território indígena os custos são extremamente altos, pois o município é
enorme e a logística é feita totalmente por rios. O município tem seis
candidatos a prefeito, sendo cinco indígenas.
“A nossa campanha é
feita de forma justa, recebemos doações do nosso próprio partido, respeitando
os tetos e limites que são previstos em lei. Essa campanha dá um teto para quem
é majoritário de R$ 159 mil, e para quem é candidato a vereador de R$ 38 mil.
Com isso, ele não consegue passar nem metade da logística que ele tem que
percorrer ou por onde ele tem que andar para poder chegar ao eleitor, para
poder chegar nas comunidades, nas aldeias, nos distritos”, afirma Marivelton.
Nordestina, e vivendo
há 26 anos na maior cidade da América Latina, a líder indígena Chirley Pankará
(PSOL-SP) é uma das 1.016 candidaturas registradas para concorrer a uma vaga na
Câmara Municipal de São Paulo.
Ela possui uma
estrutura de campanha pequena, com uma coordenadora de campanha, uma equipe de
quatro pessoas na comunicação e muitos voluntários que se disponibilizaram a
levar seu nome às ruas. Ela conta que o
movimento indígena de São Paulo a convidou para se candidatar por conta do seu
compromisso com a causa indígena e também por sua expressiva votação em 2022,
quando recebeu 27.802 votos na campanha para deputada estadual. Ela não se
elegeu.
Na eleição de 2018,
ela já tinha conquistado uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado de São
Paulo junto à bancada coletiva ativista, que também tinha em sua composição a
deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP). A cidade de 11,4 milhões de habitantes
tem 0,2% de indígenas na população, 54% brancos, 33% pardos e 10% pretos.
Atualmente candidata a
vereadora, Chirley menciona que por ser nordestina em São Paulo e indígena, ela
é colocada em um lugar de ataques de todos os lados. Quando entrou nesse
processo eleitoral, ela sabia que não seria fácil, mas destacou que sua vida sempre
foi de desafios e que esse não seria diferente.
De acordo com a Apib,
à medida que os povos indígenas avançam, os cenários de ataques aos seus
direitos ficam mais graves, e por esse motivo o chamado da organização neste
ano é para que as candidaturas indígenas se comprometam com o manifesto “Aldear
a Política é Nosso Marco Ancestral”, que possui 10 pontos-chaves, e o primeiro
é a demarcação e o combate ao marco temporal.
As candidaturas
indígenas simbolizam a força de centenas de povos que por décadas sofreram com
a repreensão, violência e preconceitos, avalia Kleber Karipuna. A união para
eleger vereadores, prefeitos e posteriormente deputados fazem parte de uma
estratégia de sobrevivência.
Fonte: Repórter Brasil
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