A corrida para aprovar o fim da floresta
amazônica: o projeto da rodovia BR-319 precisa de um novo EIA
A proposta de
reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) precisa de um novo Estudo
de Impacto Ambiental (EIA). Nenhuma decisão racional pode ser tomada sobre
prosseguir com este projeto sem considerar todos os seus principais impactos, e
tudo aponta para o projeto ser um desastre monumental para o meio ambiente,
entre outros efeitos negativos. Os maiores impactos foram excluídos no atual
processo tendencioso de licenciamento, que visa garantir a aprovação de uma
estrada que provavelmente levaria ao fim da floresta amazônica. O projeto não é
viável, e declarar que haverá “governança” ao longo da rota da rodovia não o
tornará viável, mesmo que essa governança se materialize de fato.
Como um cavalo com
antolhos, os proponentes da rodovia, a agência de licenciamento e praticamente
toda a discussão política se concentram apenas no que pode acontecer na própria
beira da estrada, e não nas vastas áreas da floresta amazônica que seriam impactadas
fora dessa estreita faixa. O EIA considera apenas a faixa da beira da estrada.
A BR-319 conecta o notório hotspot de desmatamento da AMACRO na junção dos
estados do Amazonas, Acre e Rondônia a Manaus, com a Amazônia central, que está
relativamente intacta. A AMACRO é a maior fonte da fumaça que atualmente está
engolfando o Brasil, incluindo centros de poder político como Brasília e São
Paulo.
Estradas já existentes
conectam Manaus a grandes áreas no norte da Amazônia, incluindo o estado de
Roraima. Roraima é particularmente problemático devido à hostilidade de seus
políticos aos controles ambientais, apoiando até mesmo os garimpeiros ilegais
na Terra Indígena Yanomami. Essas áreas conectadas a Manaus receberiam
desmatadores e madeireiros vindo da AMACRO pela BR-319.
Novas estradas, como a
AM-366, seriam construídas conectando-se à BR-319, abrindo a vasta área de
floresta tropical a oeste da BR-319 para desmatadores e madeireiros da AMACRO.
O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) recentemente confessou
abertamente que a AM-366 faz parte do efeito da BR-319. Na submissão do DNIT de
14 de setembro ao tribunal brasileiro que julgará seu segundo recurso que tenta
anular a decisão judicial que cancelou a licença prévia da era Bolsonaro da
BR-319, o órgão afirmou que “a melhoria do acesso e a expansão da malha viária,
especialmente em direção às rodovias estaduais AM-366 e AM-364” vai “promover o
desenvolvimento das atividades rurais e florestais nas áreas afetadas”. É claro
que as “atividades rurais e florestais” referem-se ao desmatamento e à
exploração madeireira. Em outras palavras, o DNIT agora reivindica o crédito
pelos supostos benefícios da AM-366, mas nenhuma culpa pelos seus impactos.
A AM-366, que seria
uma rodovia estadual do Amazonas, até então foi retratada como não tendo nada a
ver com a BR-319, sendo burocraticamente separada desta rodovia federal. No
entanto, sem a BR-319 os planos para a AM-366 não existiriam, e seus impactos são
parte integrante dos impactos da BR-319. Como uma rodovia estadual, haveria
pouco para impedir a construção da AM-366, independentemente de seus impactos,
pois a história mostra que a agência ambiental estadual que seria responsável
pelo licenciamento carece de independência para resistir à pressão do
governador do estado.
Os impactos
desastrosos mais amplos do projeto BR-319 são o “elefante na sala” que ainda
não foi percebido pelos líderes políticos, como evidenciado pela declaração do
presidente Lula em 10 de setembro apoiando à reconstrução da BR-319, feita em
um momento em que grande parte da Amazônia e outras partes do Brasil estavam em
chamas. Presuma-se que o presidente desconhece o papel da BR-319 nas futuras
emissões de gases de efeito estufa e, portanto, no aumento do aquecimento
global que atualmente está impactando o Brasil por meio de incêndios e secas.
A vasta área florestal
a oeste da BR-319 é crítica para o futuro do aquecimento global. Esta área tem
um enorme estoque de carbono nas árvores da floresta e no solo sob a floresta.
Este carbono corre o risco de ser emitido para a atmosfera, seja por ações
propositais como o desmatamento e a exploração madeireira ou pela mortalidade
de árvores por secas e incêndios florestais resultantes da continuação do
agravamento do aquecimento global. A floresta remanescente na porção sudeste da
Amazônia brasileira já está em um declínio provavelmente irreversível devido às
mudanças climáticas e à fragmentação da floresta pelo avanço do desmatamento. O
estudo recente publicado na Nature por Bernardo Flores e colaboradores mostra
que grande parte da área a ser aberta pela BR-319 e AM-366 corre risco de
colapso, um processo que seria aumentado tanto pelas mudanças climáticas em
curso quanto pela fragmentação e exploração madeireira que resultariam dos
projetos rodoviários. A exploração madeireira, seja legal ou não, aumenta muito
a vulnerabilidade da floresta amazônica aos incêndios florestais, fazendo com
que áreas maiores peguem fogo e aumentando os danos a cada hectare de floresta
que pegar fogo. As mudanças climáticas projetadas aumentarão muito a
probabilidade de incêndios florestais na Amazônia.
Se a floresta na área
“Trans-Purus” a oeste da BR-319 for perdida, seja por impactos deliberados,
como o desmatamento, ou por impactos não intencionais, como o colapso causado
pelas mudanças climáticas, as emissões de gases de efeito estufa resultantes seriam
suficientes para empurrar o clima global para além um ponto de não retorno além
do qual o aquecimento global escapa do controle humano. As consequências seriam
catastróficas em todo o mundo, incluindo o Brasil, que é um dos países mais
vulneráveis. A perda do restante da floresta amazônica e seus serviços
ambientais seria um dos impactos.
O “balanço global ”
divulgado pela Convenção do Clima na COP28 indica que em 2023 todas as emissões
humanas deliberadas (ou seja, combustíveis fósseis + desmatamento) totalizaram
55 bilhões de toneladas de CO2-equivalente anuais, ou 16 bilhões de toneladas
de carbono (ou seja, sem contar os dois átomos de oxigênio em cada molécula de
CO2). Isso significa que o máximo que a sociedade humana pode fazer para deter
o aquecimento global é não emitir mais nada, mas isso seria “apenas” 16 bilhões
de toneladas de carbono. Se as emissões não intencionais de fontes “indiretas”,
como mais incêndios florestais, derretimento da tundra, aquecimento dos solos e
redução da absorção de CO2 poroceanos mais quentes, totalizarem mais de 16
bilhões de toneladas de carbono por ano, então o aquecimento global escaparia
ao controle. A Panamazônia tem estoques de carbono muitas vezes maiores do que
16 bilhões de toneladas, e apenas uma fração disso entrando na atmosfera ao
longo de um período de alguns anos desencadearia essa catástrofe. A região
Trans-Purus que está em risco pela BR-319 e suas estradas secundárias
planejadas tem uma parte substancial desse estoque e também é a região onde é
mais facil impedir seu desmatamento – ao não abri-la para a entrada de
desmatadores.
A região Trans-Purus
também é crítica para continuar o fornecimento de água para as áreas agrícolas
do Brasil e para a maior cidade do país: São Paulo. Os ventos predominantes na
Amazônia sopram de leste a oeste, e a região Trans-Purus é a última área onde a
água é reciclada e de onde os ventos conhecidos como “rios voadores” a
transportam para São Paulo na forma de vapor d’água. As estimativas da
porcentagem de precipitação anual na bacia do Rio da Prata, que inclui o estado
de São Paulo, variam de 16% a 70%. Mesmo a menor dessas estimativas significa
que o Brasil não pode se dar ao luxo de perder essa fonte de água. O clima em
São Paulo e outras partes do sudeste do Brasil já mudou, com grandes secas
aumentando devido às mudanças nas temperaturas dos oceanos relacionadas ao
aquecimento global: em 2014, São Paulo quase ficou sem água e, em 2021, outra
grande seca atingiu a cidade.
Fonte: Amazônia Real
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