LEGADO AUTORITÁRIO: O lastro da Ditadura
Militar na Segurança Pública
A violência que escala
nas cidades brasileiras tem, como qualquer fenômeno social, múltiplas razões e
dimensões. Precisamos discutir a sua dimensão institucional: o legado da
Doutrina de Segurança Nacional na Segurança Pública. Passadas quatro décadas desde
a redemocratização, esse legado tem exercido pressões desestabilizadoras sobre
a democracia brasileira, desafiada a suportar índices de violência armada
compatíveis com países em guerra, cenário que mobiliza discursos
securitizadores inadequados, para dizer o mínimo, com o Estado de Direito.
Podemos definir
“securitização” como o movimento discursivo que visa apresentar e elevar uma
ameaça à percepção de urgência, a fim de promover respostas excepcionais. Na
ordem pública, esse discurso tem levado à militarização da segurança,
produzindo violência armada e aprofundando o histórico déficit democrático
brasileiro.
Esse processo, legado
pela Ditadura, consolidou um aparelho de segurança pública voltado para
combater o inimigo interno, pilar regional da doutrina da “contenção” ao
comunismo, que atribuiu aos militares latino-americanos a missão de repressão
interna articulada com a hipertrofia da Doutrina Monroe durante a Guerra Fria.
Esse processo fez da militarização um lugar comum na segurança pública, que se
traduz na imprensa e opinião pública sob o discurso de uma “guerra urbana”,
mobilizando os piores sentimentos populares e legitimando o modelo
excludente/repressivo que marca a trajetória da modernização brasileira.
Dada a complexidade do
quadro, nossa discussão partirá de duas questões: por que o discurso
securitizador é incompatível com uma democracia? De onde vem o nosso problema?
A questão inicial pode ser tratada a partir de outra, mais objetiva.
• Estamos em guerra?
“Por que eu entrei
para a polícia? Eu sempre quis ser militar, sempre tive esse fascínio. Eu
queria participar de uma ação real. Talvez, nas Forças Armadas eu não tivesse
essa oportunidade. […] Eu estou participando de uma guerra. Acontece que eu
estou voltando para casa todos os dias, é a única diferença. Nossa guerra é
diariamente nesses morros do Rio.” - Rodrigo Pimentel
A afirmação acima é de
um ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais da PMERJ, que inspirou o
Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007). Ela é reveladora
de algo estranho sobre o problema da segurança pública no Brasil, que aparece sob
a constante narrativa de uma guerra.
Segundo a ONU, uma
guerra de baixa intensidade pode ser identificada a partir de dez a quinze mil
mortes/ano. No Brasil, morrem por violência armada uma média de 60 mil
pessoas/ano. Esses números desafiam os limites clássicos entre a guerra e a
paz, insinuando a emergência de uma zona cinzenta. Em princípio, o que as
polícias fazem não é (ou não deveria ser) comparável à guerra. Da mesma forma,
a criminalidade também não deveria deter poder paramilitar. O contexto empírico
nos lança ao limbo conceitual: se não podemos classificar o quadro em tela como
uma guerra, certamente também não o podemos classificar como a paz prometida
pelo Estado Moderno.
Segundo Weber (1999),
o Estado pacifica um território estabelecendo a lei e sendo capaz de aplicá-la
mediante o monopólio legítimo da violência, que assume duas direções: uma
externa, através de forças armadas (FFAA) preparadas para a guerra, e uma interna,
através de forças de policiamento voltadas à ordem pública.
A primeira dimensão
consiste na “canalização” da violência para o exterior – dando vida a uma
espécie de estado de natureza internacional, uma vez que entre os poderes
soberanos não há um suprapoder. A segunda compreende os meios internos de
repressão, que devem usar de força comedida por atuarem dentro dos limites da
pólis. Temos aqui, portanto, uma distinção ontológica entre os propósitos das
forças armadas e das polícias, entre a guerra e a segurança pública. O elemento
distintivo é a presença ou não de um inimigo.
Diferente do
“criminoso”, que deve ser contido dentro dos limites da lei, o inimigo
representa uma ameaça existencial à pólis, cuja defesa é de responsabilidade
das FFAA. O que nos leva a Clausewitz (2010), segundo quem a guerra é a etapa
derradeira da política, seu instrumento de força, sua ultima ratio. A guerra
visa o “esmagamento do inimigo” (p. 829), exclusivo à esfera política.
O que é político,
assim, se refere à associação/dissociação em virtude da possibilidade real de
eliminação recíproca entre grupos humanos, o que cria o interno/externo, o
dentro/fora, e permite que no interior haja ordem (segurança/paz), enquanto no
exterior haja tensões entre os poderes soberanos (insegurança/guerra). O estado
de guerra, portanto, está fora dos limites do contrato e a militarização
consiste na dotação para o emprego da violência politicamente orientada a fim
de eliminar uma ameaça existencial à soberania da pólis.
Retomemos, então,
nosso fio: estamos em guerra? Não. O quadro da violência armada nas metrópoles
brasileiras não é um conflito militar. Ainda assim, tem sido pautado por forças
militarizadas do Estado contra grupos paramilitares que disputam territórios periféricos
abandonados pelo poder público.
Essa disputa por
territórios não é política, mas econômica. Não está em jogo a soberania do
Estado, tampouco a sua capacidade de pacificar. Gradativamente, o avanço das
organizações criminosas assume feição miliciana e infiltra as estruturas de
poder. E, no limite, esse avanço compromete o controle territorial do Estado,
mas não põe em xeque a sua soberania, porque o poder estatal detém musculatura
perfeitamente capaz de operar a retomada dessas áreas – como a instalação das
UPPs, na década passada, demonstrou. O problema, logo, não é uma ameaça
existencial à pólis, mas a orientação política do Estado, voltada para a
preservação de um status quo que condena a periferia à permanente
exclusão/repressão, retroalimentando o poder territorial do crime organizado.
É a essa condição
periférica que devemos atentar para entender a engenharia da militarização da
segurança pública. A militarização sugere a presença de um inimigo, sendo assim
capaz de mobilizar a sociedade para legitimar a sua repressão. Tratei deste problema
em outro texto no Diplomatique, no qual analiso as dimensões históricas desse
sujeito. Vejamos agora a sua dimensão institucional, o que nos remete à nossa
segunda pergunta.
• Militarização e insegurança pública
A Doutrina de
Segurança Nacional foi o resultado de um processo de profissionalização militar
voltado para a ordem interna. Há vasta literatura dando conta disso e não
compete ao nosso recorte. Para nossos fins, basta entender a emergência dos
regimes de segurança nacional na América Latina.
No começo da década de
1960, à medida que as tensões que culminariam no golpe militar de 1964
escalavam, a Escola Superior de Guerra aumentava em seus cursos a ênfase na
guerra interna, no combate à subversão, conseguindo cada vez maior alcance nas
fileiras. É nesse passo que a DSN define o papel das FFAA, podendo ser assim
sistematizada (Coelho, 1976):
– As Forças Armadas
são um órgão essencialmente político, e, em vez de se fazer a política nas
Forças Armadas, deve-se fazer a política das Forças Armadas.
– Os princípios da
organização militar devem reger a reorganização nacional. Isto é, não são
modelos políticos, mas modelos organizacionais mais adequados para a
reorganização nacional. Reorganizada a nação nestes moldes, o Estado haverá de
ter perfil centralizado e a Nação haverá de ser movimentada por governos fortes
apoiados basicamente nas Forças Armadas.
– Tais princípios de
reorganização nacional haverão de disciplinar a sociedade civil, além de
permitirem o máximo rendimento nas diversas áreas da atividade nacional.
– No binômio
Segurança-Desenvolvimento, o primeiro termo deve ser entendido como um “fator
de produção” indispensável ao Desenvolvimento. E cabe à organização militar
produzir este fator.
Essa arquitetura
institucional resultou na Lei de Segurança Nacional, que, de 1967 a 1978,
segundo Costa (2008, p. 43), “ilustra os efeitos da DSN, elaborada pela ESG,
assim definindo seu objeto: ‘Art. 2. A Segurança Nacional é a garantia da
consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos quanto
externos.”
Sob essa perspectiva,
a guerra e a estratégia são a única realidade e a resposta a tudo, e a “ameaça
comunista” deu a ignição para a militarização da segurança pública. Ato
contínuo, a banalização do discurso de “guerra urbana” revela a capilaridade da
DSN também na sociedade civil, sedimentando a legitimidade necessária à
institucionalização. A todo momento, os meios de comunicação alimentam esse
discurso. Mas de onde vem ele, exatamente?
No começo da década de
1970, o governo Nixon, em busca de popularidade, adotou uma agenda radical de
combate às drogas que visava criminalizar grupos indesejados. Segundo um de
seus secretários: “sabíamos que não podíamos criminalizar quem era antiguerra
ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à
heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar
ambas as comunidades”. A “guerra às drogas” foi, portanto, um ensaio para a
criminalização do sujeito marginalizado.
Da mesma forma,
durante a Ditadura, a Lei de Segurança Nacional não fazia distinção entre
presos políticos e comuns. Uma vez capturados, ambos eram enviados para a mesma
ala no presídio de Ilha Grande, onde deram origem ao Comando Vermelho. Cumpre
acentuar que a fundação das facções no Brasil ocorre dentro de instituições do
Estado, fato suis generis, se compararmos com os cartéis mexicanos e outras
organizações do narcotráfico internacional. O aparecimento delas serviu para
legitimar políticas que levaram à escalada da violência armada nos centros
urbanos, fazendo da militarização das forças de segurança parte da paisagem.
Essa foi a mais
trágica herança da Ditadura Militar. Segundo Coimbra (2020, p. 14): “Com
relação à DSN hoje, […] os ‘inimigos internos do regime’ passam a ser os
segmentos mais pauperizados e não mais somente os opositores políticos. São
todos aqueles que os ‘mantenedores da ordem’ consideram ‘suspeitos’ e que
devem, portanto, ser eliminados. […] A modernidade exige cidades limpas,
assépticas, onde a miséria – já que não pode ser mais escondida e/ou
administrada – deve ser eliminada. Eliminação não pela sua superação, mas pelo
extermínio daqueles que a expõem incomodando os ‘olhos, ouvidos e narizes’ das
classes mais abastadas.”
Os versos abaixo
oferecem uma medida empírica do problema:
“Você que me ouve,
preste muita atenção / O Bope vai te pegar! / Homens de preto, qual é sua
missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão! / Homens de preto, que é
que você faz? / Eu faço coisas que assusta o satanás! / Cachorro latindo /
Criança chorando / Vagabundo vazando! / É o Bope chegando! / É o Bope matando!”
Na canção do Bope, o
inimigo aparece incontroverso: “Entrar pela favela e deixar corpos no chão!”.
Por isso, Franco (2014, p. 41) sublinha que “a forma como a polícia
militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial
do Estado de Direito precisa produzir uma impressão na população de que está em
jogo a defesa de todos.”
A percepção da
segurança como guerra tem como consequência a naturalização das violações de
direitos humanos pelas forças do Estado. Segundo Raul Santiago, ativista e
morador do Complexo do Alemão, “é muito ‘louco’ a gente ter um ‘caveirão’
circulando nas favelas do Rio de Janeiro, parecido com o que era usado na época
do Apartheid, na África, que é usado hoje no controle de Israel sobre a
Palestina, um carro blindado com capacidade de disparar tiros por todos os
lados. Toda política pública que chega ‘pra’ favela vem através da Secretaria
de Segurança. Então, o Estado dialoga com a favela nos observando a partir da
mira do fuzil. Esse é o nosso contato com o mundo enquanto cidadão. Mas [a
sociedade] se sente segura porque ‘tá’ passando no jornal que assassinaram
pessoas dentro da favela.”
• Considerações finais
Historicamente, a
repressão do Estado brasileiro tem sido apontada contra a periferia. Grande
parte dessa violência é legitimada pelos “autos de resistência”, que têm
servido para proteger violações de direitos humanos, incentivando a violência
policial. Esses policiais, não obstante, enfrentam uma situação limite contra
grupos fortemente armados que vitimam mais agentes no Brasil do que em qualquer
lugar. E, para os cidadãos, o cotidiano se torna uma constante de violações,
inclusive do direito à vida.
Segundo Souza (2015,
p. 19):“Os dilemas da segurança pública brasileira são reflexos de um legado
político autoritário. […] O medo derivado da violência urbana, somado à
desconfiança nas instituições do poder público encarregadas da implementação e
execução das políticas de segurança produzem uma evidente redução da coesão
social, o que implica, entre muitos problemas, na diminuição do acesso dos
cidadãos aos espaços públicos; na criminalização da pobreza (à medida que
determinados setores da opinião pública estigmatizam os moradores dos
aglomerados urbanos das grandes cidades como os responsáveis pela criminalidade
e violência) e na desconfiança generalizada entre as pessoas, corroendo laços
de reciprocidade e solidariedade social.”
Em suma, como aponta
Soares (2019, p. 33), “a boa forma de uma organização é aquela que melhor serve
ao cumprimento de suas funções”. Simplesmente, a militarização não atende à
função policial. Nesse quadro, produzir resultados se torna prender e matar. Assim,
serão os grupos sociais mais vulneráveis aqueles mais suscetíveis à escolha dos
policiais.
É imperativo concluir
que a militarização da ordem pública não produz segurança e, de modo análogo a
um regime de ocupação, ressignifica os sujeitos vulneráveis e agentes de
segurança como, respectivamente, “danos colaterais” e “baixas de combate”,
cenário legado pelo regime autoritário e que tem contribuído para sufocar as
aspirações democráticas brasileiras.
Fonte: Por João Rafael
G. de Souza Morais, no Le Monde
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