Como a teoria dos ultraprocessados
floresceu no Brasil
Uma teoria formulada
no Sul global. Em uma universidade pública. Com um olhar que desafia
diretamente o imaginário do Norte. E que coloca as corporações de alimentos no
centro do enorme problema das doenças crônicas. Pensando por essa perspectiva,
a Classificação NOVA tinha tudo para dar errado. Para ser ignorada e cair no
esquecimento. Mas o que ocorreu foi o contrário.
Também por essa
perspectiva, chega a ser curioso pensar que uma das melhores crônicas de toda
essa história tenha sido oferecida por um médico do Norte. Especialista em
doenças infecciosas, e não crônicas. E que duvidou da teoria brasileira.
Era um dia qualquer de
2023 quando, no X de Elon Musk, finado Twitter, foi publicado um tuíte
empolgado de Carlos Monteiro, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública
da USP. Ele recomendava enfaticamente a leitura de Ultra processed people,
livro que, agora, chega ao Brasil com o nome de Gente ultraprocessada.
Todo mundo que conhece
o autor da Classificação NOVA sabe que o sarrafo é alto. Então, se ele estava
empolgado com o livro, era melhor levar a sério. Começamos uma conversa – ele,
eu e a igualmente empolgada Paula Johns, diretora-executiva da ACT Promoção da
Saúde – para saber se valia a pena trazer o livro para o português. E, sim,
valia.
Mais de um ano depois,
o prefácio de Carlos Monteiro à edição brasileira mantém o tom otimista em
relação ao livro.
“Nas páginas de Gente
ultraprocessada, van Tulleken descreve com primor a história dos alimentos
ultraprocessados, a lógica de sua produção e os impactos que esses produtos têm
em nossa saúde. Para isso, expôs, muito corajosamente, seu próprio organismo aos
ultraprocessados, fez uma exaustiva revisão da literatura e conversou com
grandes especialistas no tema. O resultado é uma narrativa completa e
fascinante.”
É isso. Eu não poderia
resumir melhor. Chris van Tulleken é, além de médico, uma pessoa com uma bela
capacidade de comunicação. Ele decidiu entender como a teoria cunhada pelo
Nupens, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, então
coordenado por Carlos Monteiro, havia se provado acertada – a saber: existe um
grupo de produtos alimentícios, os ultraprocessados, que tem a maior parcela de
responsabilidade pela explosão dos índices de câncer, diabetes e doenças
cardiovasculares associados à alimentação.
Em nosso trabalho,
contamos algumas vezes essa história, então, tentarei ser breve – se quiser se
aprofundar, vale escutar a série “A máquina de criar problemas”, que lançamos
em nosso podcast, Prato Cheio, no segundo semestre de 2023, e ler Gente ultraprocessada.
Como narra van
Tulleken, “comecei a examinar os artigos de Monteiro publicados anteriormente.
É uma jornada pela história da nutrição e da obesidade. Ele nasceu em 1948 em
uma família que ficava em uma posição muito particular na hierarquia social
brasileira, no limite máximo da pobreza e no limite mínimo da riqueza. Monteiro
conseguia enxergar nas duas direções. Talvez seu interesse por justiça social
tenha vindo da ideia de que seria muito fácil cair na pobreza desesperadora tão
visível ao seu redor, talvez uma questão de sorte mais do que qualquer outra
coisa”.
Esse é um aspecto
importante e pouco explorado das explicações sobre o nascedouro da NOVA: alguém
que não questione o mundo, que considere normais as transformações profundas
pelas quais passamos em termos de alimentação humana, dificilmente terá – teria
– a capacidade de formular uma teoria que olhou para um aspecto inédito.
É aqui que a gente
começa a entender por que a NOVA surgiu no Sul. E no Brasil. Nós tínhamos um
padrão alimentar tradicional bastante preservado, ligado à nossa cultura
alimentar, então, quando os ultraprocessados começaram a se espalhar por aqui,
era relativamente fácil notar a presença de um elemento estranho – o que em
nada diminui a sagacidade do grupo de Monteiro. Continua o autor de Gente
ultraprocessada:
“Ainda que seus
artigos sejam cheios de equações complexas, o conteúdo parece rotineiro. Não
passa a impressão de ser como curar câncer ou sequenciar o genoma – trata-se de
examinar faturas de compras, embora utilizando múltiplos modelos de regressão
linear para fazê-lo. Mesmo com a minha formação científica, passando os olhos
superficialmente pelo trabalho de Monteiro, senti que ele era obscurecido pela
mesma questão que obstrui tantas ideias importantes — ser complicado e tedioso.
Mas quando eu recuava da seção de métodos científicos de qualquer um de seus
artigos e olhava para o conjunto da obra, podia ver que ele documentava
meticulosamente algo extraordinário: a transformação nutricional do Brasil, de
um país em que a obesidade era de interesse meramente acadêmico para um país em
que ela é, sem dúvida, o problema de saúde público dominante.”
Há muitas razões para
a ocorrência da NOVA. E certamente diferentes pessoas escolheriam dar ênfase a
diferentes aspectos. A questão é que Carlos Monteiro e o Nupens olhavam para
esse Brasil em transição, da desnutrição à obesidade e às doenças crônicas, e
questionavam os dados em busca de respostas. Mas os dados não eram lá muito
generosos: olhando a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, notava-se até
uma redução no consumo de sal e açúcar.
“Num esforço para
resolver esse aparente paradoxo, Monteiro decidiu que, em vez de se concentrar
em nutrientes únicos ou itens alimentares, ele olharia para o padrão dietético
geral. Ele e sua equipe abordariam a tarefa de traçar um limite em torno de “comida
ruim” de uma maneira diferente. Em vez de começarem pelo início, no nível
microscópico, começariam pelo fim. Eles haviam identificado que alimentos
estavam causando os problemas, e então trabalharam no sentido inverso para ver
o que todos eles tinham em comum.”
Eureka. No prefácio à
edição brasileira, Monteiro chama atenção para o fato de que a teoria nasceu
numa escola de saúde pública, e não de medicina.
“Trata-se de um
detalhe importante. No campo da saúde pública, pesquisas são, por natureza,
transdisciplinares. Focam em identificar os fatores ambientais (físicos,
socioeconômicos, culturais) que determinam a incidência das doenças na
população – sobretudo aquelas que apresentam alta frequência ou que evoluem de
forma epidêmica. A partir da identificação desses fatores, são propostas
medidas e políticas públicas necessárias para modificar o ambiente e prevenir
as doenças.”
Mas não em qualquer
faculdade de saúde pública, e sim numa instituição pública e gratuita de
ensino:
“É um traço dominante
dos grupos de pesquisadores brasileiros que atuam na área da saúde pública: sua
filiação a instituições públicas e o apoio exclusivo que recebem de fontes
também públicas de financiamento à pesquisa. Essas condições, raras em universidades
americanas e inglesas, permitiram que o Nupens/USP produzisse conhecimento sem
conflito de interesses. E essas são condições indispensáveis para se fazer
ciência com independência em áreas nas quais o avanço científico pode ir na
direção contrária aos interesses econômicos do setor privado”.
No ano passado,
durante uma conversa conosco, Carlos Monteiro disse que chegou a pensar qual
seria sua contribuição a essa altura, se havia tantos pesquisadores em tantos
lugares fazendo novos trabalhos em torno dos ultraprocessados. A resposta veio
do mesmo jeito: ele segue a ser um pesquisador brasileiro em uma instituição
pública. Por isso, na hora de pensar o que fazer com os ultraprocessados,
enquanto colegas do Norte propõem o melhoramento desses produtos e não abrem
mão da ideia de que eles têm um lugar quase natural na vida humana, Monteiro –
e muitos de nós – não tem dúvidas em reiterar que devemos evitar
ultraprocessados. Mas essa já é uma outra história.
Fonte: O Joio e o
Trigo
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