Moisés Pinto Neto: ‘A arapuca do lulismo e
sua saída possível’
Quando o governo Lula
assumiu, uma esperança reacendeu no Brasil. Sua vitória foi ocasionada pela
mais forte mobilização social pela esquerda desde a redemocratização. Foi
necessário aparar arestas, superar ressentimentos, apostar no futuro. Lula
voltou energizado, com forte apoio dos movimentos sociais, discurso
inicialmente mais à esquerda, e prometendo traçar um plano de governo que
estaria mais atento ao clima e aos direitos indígenas e da população negra. A
subida à rampa do Planalto representou isso.
Mas, ao mesmo tempo, o
governo também contou com um apoio majoritário do centro político – uma camada
sobrerepresentada devido ao seu enorme peso na comunicação social. Apesar das
votações cada vez mais minúsculas e do desaparecimento do partido que melhor os
representava – o PSDB – o centro sempre se imiscuiu da tarefa de ensinar Lula
como deveria governar e como deveria se comunicar. Com algum desconforto,
economistas liberais e a mídia tradicional, ambos representando o mesmo setor,
acabaram entendendo que Bolsonaro representava não apenas um novo governo
inepto, de extrema direita e truculento, mas uma ameaça existencial ao país. E
que, fora Lula, ninguém teria condições de derrotar Bolsonaro. Mesmo assim, a
empáfia de continuar ensinando a esquerda a se comunicar, de defender o
“razoável” sob pena de aguçar a extrema direita, continuou dando o tom por
alguns meses.
Até que, finalmente,
os veículos de São Paulo abandonaram o antifascismo, catapultado ainda pela
evidência do golpe de 8/1 e as múltiplas tramoias de Bolsonaro para virar a
mesa, na medida em que Tarcísio começava a se apresentar como “bolsonarista
moderado”. Obviamente, não um oxímoro, nem um paradoxo, mas uma contradição em
termos. E, seguindo para argumentar a lei da não-contradição, é nítido que, ou
se é bolsonarista, ou se é moderado. Tarcísio não é moderado. E tanto não é que
seu campo de apoio, a mídia paulista e a burguesia a que serve, começou a
disparar seus petardos em direção a Alexandre de Moraes e o Inquérito contra os
golpistas.
Ao lado disso, a
entrega do poder de governar do bolsonarismo para o “Centrão” produziu a
inflação ainda maior do seu poder. O bloco fisiológico, corrupto, reacionário e
vigarista que controla o Congresso, turbinado desde Eduardo Cunha e depois
Temer, tornou-se uma força incontrolável que inviabiliza o planejamento
orçamentário do Poder Executivo. Vou chamar o Centrão de Picaretão, para evitar
a confusão com o centro tecnocrático que comentava anteriormente.
Apesar da vitória
elogiável de Haddad em aprovar parte da Reforma Tributária, derrotas foram se
acumulando e a articulação política segue confusa. A tentativa de Lula de
empurrar a força de fora para dentro – a partir do seu prestígio internacional
– não funcionou, uma vez que os problemas não foram solucionados (Venezuela,
Nicarágua, Rússia/Ucrânia, Israel/Palestina) e, segundo a leitura do centro
sobrerepresentado, demasiado posicionada. Enquanto isso, o Picaretão deita e
rola, em geral em aliança com a extrema direita, até porque a maioria dos seus
políticos representam os interesses do poder, o que torna a diferenciação entre
ideologia e fisiologia muito mais suave que parece. A articulação governista
tenta dançar, mas cambaleia com um Rui Costa desenvolvimentista boicotando
outros ministros, um Padilha atritado com os líderes parlamentares e Lula
ausente. O governo fica próximo da “estratégia zumbi”: consegue tudo que os
adversários pedem sem levar nada em troca. Paga sem contrapartida nos votos. A
“aliança” é um tigre de papel.
O governo tem apenas
um trunfo poderoso e é o mais do mesmo: a injeção de renda entre os
mais pobres movimenta a economia, gerando mais empregos, subindo os salários,
formalizando relações, vitaminando o comércio e alavancando o crescimento.
Nenhum outro movimento identifica mais o que chamaríamos de lulismo:
a ascensão social dos pobres da primeira década do século XXI, minada em
seguida pela plataforma neoliberal adotada por Temer e Bolsonaro – que, como
costuma acontecer, pauperizou a classe média, enriqueceu mais os ricos e contou
com um bom discurso midiático e econômico para ser justificada como a melhor
das soluções. Não é o suposto neoliberalismo de Haddad e Tebet que está
dificultando o traçado do governo, mas a falta de um projeto mais ambicioso,
que inclua a transição ecológica e, mais que isso, a superação das formas de
vida baseadas no consumo e na predação capitalista. O centro adora dizer que a
esquerda “não compreende” os pobres, mas a verdade é que, se tem alguém que não
os compreende, é justamente o centro liberal. Imersos na sua divisão fantasiosa
entre “ideologia” e “técnica”, como se um governo pudesse ser tocado apenas
pelos “méritos técnicos” e qualquer coisa que desafiasse o status
quo fosse automaticamente “populismo”, os tecnocratas entendem muito
pouco os desejos populares. A esquerda entende um pouco mais: Lula, ao prometer
picanha e cerveja, fala a língua do povo. Lula, ao injetar grana no orçamento
doméstico do pobre, sabe o que ele quer bem melhor que os tecnocratas do bom
senso.
Mas as coisas são um
pouquinho mais complexas. O mundo mudou – e quem mudou o mundo foram,
sobretudo, as plataformas digitais. O brasileiro é um dos maiores, se não me
engano o segundo maior, consumidor de smartphones em tempo de
tela no mundo. Todos – ricos, classe média e pobres – estão nesse mesmo lugar.
Tivemos uma primeira explosão capitaneada pela esquerda, com o uso subversivo
do Twitter e do Facebook para protestar contra os modelos de cidade e a
violação dos direitos no campo impostos no Brasil inteiro pelo projeto
aceleracionista de Dilma – e, com ela, os grandes oligopólios do mercado. Mas
sabemos o resto da história: uma segunda onda terrível de protestos pelo impeachment,
comandados ainda no Facebook, e uma terceira onda fascista levada a cabo por
memes de WhatsApp e influenciadores do Youtube. Vivemos, agora, a quarta onda:
um combo entre influenciadores e picaretas que vendem uma indústria de sonhos
baseados em apostas, criptomoedas, coachs, exercícios físicos, cirurgias
plásticas e procedimentos estéticos, suplementos, instruções para meditação,
sono e estudo, enfim, uma panaceia de vendedores de ilusões que controlam boa
parte da população brasileira. A ascensão dos pobres, marca registrada do
lulismo de 00, agora é carimbada com Shoppee, AliExpress, Uber, Kwai, Tik Tok,
Instagram, —Bet, sem falar no caminhão de golpes fáceis aplicados em pirâmides
como o “tigrinho”. E sabemos que o bolsonarismo, e para além dele o discurso da
extrema direita como um todo, é popular nesses meios. Talvez seu principal
argumento seja: a esquerda quer deixar você pobre para te explorar; nós
queremos te deixar rico. O discurso da esquerda, sem dúvida, não é esse: é
de que temos que ter uma distribuição justa das riquezas e não deixar ninguém
para trás. Mas não encontramos sequer uma linguagem simples para transmitir
isso. O crescimento de influenciadores marxistas e social-democratas não muda.
É fenômeno de nicho e em geral atinge uma classe média que já está convencida
de antemão.
O que gostaria de
destacar é que a atenção do governo Lula está nisso. No pobre
evangélico urbano convencido pelo pastor a votar em Bolsonaro. No motorista de
Uber que está contra os direitos trabalhistas. Na mulher negra periférica que
foi tributada na sua “blusinha”. Lula, sem dúvida, está atento a isso, pois
esse é seu segmento preferencial, aqueles a quem suas
políticas são dirigidas e, sobretudo, seu vetor de aposta. Não tenho dúvidas
que Lula tem a hipótese de repetir seu sucesso de 00 em condições mais
desfavoráveis: produzir um aquecimento “silencioso” da economia, de baixo para
cima, até o ponto em que as elites ficarão surpresas com um povo que sabe dos
seus próprios interesses e mede no bolso o sucesso do governo.
O problema é que isso
é mais do mesmo. Na década de 00, o desenvolvimentismo passou como
um caminhão por cima dos direitos indígenas, das populações pobres removidas
para promover obras urbanas e gentrificação e, sobretudo, do ambiente. Hoje,
suas ideias são as mesmas: a exploração de petróleo no Amazonas deixa isso bem
claro. Então, temos o mesmo quadro anterior: o lulismo como tática imediata, o
desenvolvimentismo como estratégia. Ouvi dizer que Haddad estaria elaborando
com Marina Silva uma estratégia paralela, baseada em transição verde e
aquecimento dessas indústrias. Onde isso está? Se existe, só nos bastidores.
Enquanto isso, o
Brasil queima. Nossas cidades estão cobertas com uma camada de
fumaça tóxica que invade os sistemas respiratórios dos seus habitantes,
produzindo recordes de atendimento no sistema de saúde. O mundo aquece 1,5 grau
de acordo com as previsões, pela primeira vez, pelo período cheio, indicando
que o processo já começou. Cadê o Brasil?
Não adianta dizer que
Marina Silva ou Sonia Guajajara estão lá. Isso é tokenização. É
preciso decretar emergência climática agora. É preciso uma mobilização social
de amplitude para adiar o fim do mundo. Lula esqueceu que sua “frente ampla”
tem em um dos braços a sociedade civil? É impressionante como essa força é
subestimada. Enquanto alguns marxistas e esquerdistas economicistas continuam
atacando os “identitários”, sabemos que a força de mobilização dos movimentos
negro, feminista, LGBTQIA+ e indígena são a maior possibilidade de manifestação
de massa pela esquerda hoje no Brasil. Se a esquerda partidária é maior, como
costuma dizer, por que não consegue colocar ninguém na rua? Lula precisa
convocar a sociedade para agir. Para sair às ruas. Para enfrentar a ameaça da
devastação total. Os bolsonaristas não são maioria, e mesmo assim dominam as
ruas. Isso ocorre porque as pessoas não conseguem encontrar um motivo para
sair, todas juntas. O fim do mundo não é um motivo suficiente?
Se Lula não mobilizar
a sociedade civil, produzindo um movimento de antagonismo, o agro vai continuar
reinando com suas queimadas, seus agrotóxicos e sua monocultura, exportando seu
modo de existência para outros rincões, tornando o Brasil um grande paraíso
para as milícias urbanas e rurais, apoiados muitas vezes por facções religiosas
e por um mercado cujo único compromisso é com o próprio bolso. O governo
precisa escapar da cilada de reproduzir unicamente o mesmo foco de atenção do
ciclo anterior: é bom, é ótimo que o governo esteja voltado a entender e
disputar os pobres urbanos por meio de programas de incremento de renda e
aquecimento da economia, com um upgrade no consumo, mas é pouco. Precisamos
adiar o fim do mundo. Isso só vai ocorrer se o Brasil, de fato, colocar o
ambiente em primeiro lugar, e isso significa: dinheiro, estrutura, plano. Cadê?
É isso ou veremos a repetição do mesmo filme que vimos na primeira década do
século.
Fonte: Outras Palavras
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