sábado, 14 de setembro de 2024

Sobre a socialização do capital

É bem sabido que Karl Marx, já em meados do século XIX, contemplou o processo de socialização do capital, ou seja, a superação da forma “capital privado” pela forma “capital social”. No primeiro caso, a empresa capitalista típica figura como propriedade de certos indivíduos – personificações –, os quais se comportam como capitalistas industriais e/ou comerciais.

Mas essa forma, em virtude da escala da produção e do tamanho exigido das unidades de produção e comercialização, começara já em sua época a ser substituída por outra mais adequada à expansão do próprio modo de produção. Eis que, no segundo caso, por necessidade intrínseca da atividade econômica, a empresa capitalista vem a ser, então, propriedade coletiva de personificações – indivíduos, famílias etc. – que estão forçados a se comportarem como capitalistas financeiros.

Aqui é preciso ver que o capital se torna social, inicialmente, por meio do surgimento da sociedade por ações. Como se sabe, o capital das empresas é constituído pelo capital próprio, que aumenta por meio da retenção de lucros, e pelo capital de terceiros, que se eleva por meio da obtenção de empréstimos de curto e de longo prazo. Ora, essa forma de expansão do capital investido na produção não se mostra totalmente adequada quando a massa de capital detido pela empresa precisa aumentar em grande medida, tanto em ritmo quanto em escala.

É a necessidade de obter crédito em grandes volumes que suscita o desenvolvimento da sociedade por ações; por meio de uma operação financeira, o capital próprio da empresa até então privada é repartido em partes alíquotas, as quais passam a ser representadas por signos que se tornam propriedade de supostos sujeitos ou personificações.

A sociedade anônima assim constituída tem o seu capital próprio dividido e representado por ações, que podem ser negociadas livremente num mercado apropriado. É aberta ou fechada dependendo se capta recursos junto aos poupadores em geral ou num grupo selecionado de investidores capitalistas; dentre esses investidores se incluem outras empresas, fundos, gestoras de ativos e governos além de indivíduos.

É assim que Karl Marx caracteriza a formação das sociedades por ações: “O capital que, como tal, tem como base um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, adquire, assim, diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em oposição ao capital privado, e suas empresas se apresentam como empresas sociais em oposição a empresas privadas. É a suprassunção [Aufhebung] do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista” (Marx, 2017, p. 494).

Ora, para bem entender por que ocorre esse desenvolvimento, é preciso considerá-lo como momento lógico que se insere na apresentação de O capital. Assim como a mercadoria consiste na unidade da contradição entre o valor de uso e o valor, a empresa capitalista consiste na unidade entre o processo da produção de valor de uso e a geração de valor e mais-valia.

Ainda que a meta precípua da empresa seja a valorização do valor, para que isso ocorra é preciso que a demanda pelos valores de uso que ela produz venha de ser atendida de modo satisfatório; ora, isso implica que os requisitos técnicos e qualitativos da produção de valores de uso têm de ser respeitados, pelo menos até certo ponto. A existência e a permanência da empresa capitalista exigem, pois, a compatibilização desses dois fins, mesmo se a finalidade do lucro tem de prevalecer. O objetivo da produção capitalista é o lucro incessante e não a produção de bens que atendam às necessidades dos indivíduos sociais.

Dito de outro modo, a unidade entre produção e valorização tem de ser posta para que a contradição inerente à mercadoria possa subsistir, ou seja, para que a própria empresa subsista produzindo e vendendo mercadoria, sem entrar no caminho da contração, da decadência e até mesmo da falência. Para que isso ocorra, as personificações que estão no comando da empresa têm de atuar como administrador e como capitalista, uma dupla função que requer delas um duplo engenho; só assim, mediante essa compatibilização, a contradição intrínseca que atravessa, sob diferentes formas, o modo de produção como um todo, pode prosperar.

Contudo, esse modo de selar a contradição é subvertido pelo próprio avanço do capitalismo; eis que a constituição de empresas enormes que operam em múltiplos mercados requer uma nova forma de empresa. Assim, na passagem da empresa privada para a empresa social, a unidade imediata entre administração e acumulação de capital é rompida para ser articulada de outro modo. À medida que o capital se torna social, tal como aponta Marx, “o capitalista realmente ativo se converte em simples gerente, administrador de capital alheio, e os proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas monetários” (Idem, p. 494).

Ora, antes que essa análise de Marx seja refinada, é importante notar que essa mudança, tal como ele observa, transforma o modo de apropriação do excedente gerado na produção mercantil. Os gerentes aparecem como assalariados e os capitalistas se tornam recebedores de dividendos e bonificações, ou seja, de ganhos que não passam de formas transformadas dos juros.

Marx apresentou essa mudança no seguinte trecho: “O lucro total [não retido] é recebido agora apenas na forma de juros, isto é, como simples remuneração à propriedade do capital, que, por sua vez, passa a ser inteiramente separada da função que desempenha no processo real de reprodução, do mesmo modo que essa função, na pessoa do dirigente, se encontra separada da propriedade do capital. [Por isso] a remuneração dos gerentes é, ou deve ser, mero salário para remunerar certo tipo de trabalho qualificado, cujo preço é regulado no mercado de trabalho, como o de outro trabalho qualquer” (Idem, p. 494).

Como é evidente, esse desacoplamento da administração da empresa da função de capitalista requer novas formas de compatibilização dos fins contraditórios inerentes à produção e à comercialização de mercadorias no modo de produção capitalista. Desde logo é preciso ver que Marx erra ao pensar que os gerentes possam ser considerados apenas como administradores dos processos que acontecem no interior das empresas.

Eis que a própria gerência das empresas vai se desdobrar em vários níveis de governança com atribuições diversas; assim, os administradores operacionais, que se orientam pelos requisitos da produção, vão ficar subordinados aos gerentes financeiros e às diretorias, que se guiam principalmente pela lógica da acumulação de capital. Ademais, se a remuneração dos primeiros pode continuar em princípio a ser regulada pelo mercado, os ganhos dos segundos tendem a ser atrelados de algum modo aos lucros e aos pagamentos dos acionistas.

De qualquer modo, avulta aqui a questão de saber como os proprietários do capital, que se distanciaram dos processos produtivos à medida que se formaram as corporações, exercem influência ou mesmo controlam as empresas das quais detêm partes, ou seja, quotas ou ações. Como seria de se esperar, isso ocorreu sob diferentes formas concretas, as quais estiveram enraizadas nas circunstâncias geográficas e históricas do capitalismo como sistema mundial.

Devido à complexidade das formas de exercício do poder financeiro sobre as atividades econômicas, ela tem sido abordada teórica e historicamente de modo extenso e detalhado; muitos autores se dedicaram a essa temática, mas se pode lembrar aqui de algumas obras valiosas e seminais que investigaram as conexões entre o capital monetário e financista e o capital industrial: O capital financeiro de Rudolf Hilferding (1910/1985), O capital financeiro hoje de François Chesnais (2016) e A queda e a ascensão do capital financeiro americano (2024).

Aqui, contudo, se tentará fazer apenas uma exposição condensada tal como aquela encontrada em Braun e Christopher (2024). E ela pode ser considerada como uma tentativa de fazer um apêndice póstumo ao que se encontra no capítulo 27 do Livro III de O capital.

Tal como foi indicado neste escrito, o poder financeiro se instala já no interior das empresas por meio da reserva para si de determinadas funções gerenciais. Porém, mesmo estando dentro, ele também vem de fora para dentro das empresas já que estas nunca deixam de estar constrangidas pela concorrência mercantil, mas também pelas demandas dos agentes que as financiam de algum modo.

Nesse sentido, o poder financeiro externo afeta as corporações de três modos entrelaçados: pela vinculação estrutural do capital industrial como o capital financiamento, pela via da necessidade de acesso a recursos financeiros adicionais ou ainda por meio de intervenção direta e instrumental na própria direção da empresa.

No primeiro caso, é preciso ver que as ações não são empréstimos, mas representam direitos de receber dividendos, bonificações e valorização precípua nos mercados acionários. Ora, se esses direitos, ou melhor, se as expectativas de ganhos que esses direitos criam estão sendo atendidas ou não – e em que proporção –, isso se reflete diretamente no preço das ações valoradas e comercializadas nos mercados acionários.

O pagamento periódico de dividendos está correlacionado com a cotação sempre flutuante que elas podem alcançar no jogo de ganha-perde que acontece nesses mercados; se esse pagamento diminui ou aumenta, diminui ou aumenta também, respectivamente, o preço que a ação pode alcançar. Ora, ações mal apreçadas pressionam as diretorias das empresas que as lançaram no mercado a elevar tanto a lucratividade quanto o retorno dos acionistas; eis que a assembleia destes últimos, que também ocorre periodicamente, pode destituí-los de seus postos.

Ora, as ações mal apreçadas dificultam também, em geral, a obtenção de novos recursos seja de curto prazo, junto aos bancos comerciais, seja de longo prazo, junto aos mercados acionários e de títulos (por exemplo, por meio do lançamento de debêntures). E tais capturas são necessárias tanto para as operações contínuas de toda empresa, inclusive daquelas constituídas como sociedade anônima abertas ou fechadas, como para a sua eventual expansão.

Tomar recursos no mercado se mostra necessário quando a empresa investe no aumento da capacidade de produção com base em recursos que superam aqueles provenientes dos lucros retidos. A aproximação entre o capital industrial e o capital de finança, para além dos nexos postos pelo financiamento, ocorre também porque as empresas industriais necessitam de serviços prestados pelas empresas do ramo das finanças.

No terceiro caso apontado, o poder financeiro deixa ser tácito para se tornar interveniente: assim, ele não apenas condiciona o gerenciamento da empresa que subjuga, mas interfere diretamente em sua administração, visando, obviamente, obter não só o máximo lucro possível, mas também a máxima participação admissível nesse lucro. É o que tem de acontecer quando ocorre uma espécie de fusão entre o capital de financiamento e o capital industrial, arranjo que Rudolf Hilferding chamou capital financeiro.

Na situação histórica por ele examinada (Alemanha no começo do século XX), o poder da finança estava concentrado em grandes bancos cujo capital próprio estava em parte investido em empresas monopolistas produtoras de mercadorias por meio de propriedade direta ou da posse de parte importante das ações. “Chamo de capital financeiro” – diz – “o capital bancário (…) que (…), em realidade, encontra-se transformado em capital industrial” (Hilferding, 1985, p. 219).

Mas o entrelaçamento do capital de finança com o capital industrial pode acontecer de um modo mais sútil e por meio de outros arranjos que não aquele descrito por Rudolf Hilferding. Davis (2008), por exemplo, registra o surgimento nos Estados Unidos, depois de 1980, das grandes empresas gestoras de ativos que concentram, por meio de fundos mútuos, a propriedade acionária de milhões de pessoas. Essas empresas, segundo anota em seu escrito, conseguiram prosperar de modo extraordinário ao longo das décadas seguintes, tornando-se proprietárias de posições acionária em centenas de companhias ao mesmo tempo.

Seria de se esperar que as gestoras de ativos venham a se tornar também as gerenciadoras das empresas que dominam detendo a propriedade de suas ações? Davis sugere que isso não acontece: “esses fundos” – diz ele – “são reticentes em exercer o poder” diretamente sobre a gestão das firmas, pois “preferem exercer o poder de saída ao invés do poder de voz” (Davis, 2008, p. 11). Mesmo se esse último não está excluído, é bem verdade que uma forma distinta de capital financeiro evoluiu nos Estados Unidos. Eis que se observa aí a ocorrência de uma forma historicamente especifica de junção do capital monetário com o capital industrial e o capital comercial.

Na verdade, como explica Maher e Aquanno (2024), essa ingerência se tornou desnecessária e, talvez mesmo, prejudicial, pois o que se observa agora não é mais o capitalismo industrial clássico, que era governado stricto sensu pela lógica D – M – D’, mas o capitalismo financeirizado, em que domina a lógica D – D’, lógica essa que subsumiu em si a lógica própria do capital industrial. À medida que o prosperou a financeirização no correr do pós-guerra, a preocupação das personificações, que vivem e pelejam sempre numa concreticidade aparente e circunscrita da sociedade (Kosik, 1969, p. 59-68), mudou de enfoco: se antes se centrava na dinamização da produção industrial, agora ela passou a se centrar na conservação do capital fictício acumulado e em sua valorização financeira.

Eis o que dizem esses dois autores sobre o modo de funcionamento do capitalismo no Ocidente, em particular, nos Estados Unidos: observa-se, por um lado, “a crescente significância da lógica financeira nas operações da própria corporação industrial” e, por outro, a “emergência de um Estado autoritário” que se encarrega da gestão do risco sistêmico (dando suporte, por exemplo, aos grandes bancos e aos grandes fundos que não podem falir), seja por meio da política de austeridade no âmbito fiscal seja por meio da política em prol da finança no âmbito monetário, uma política que é dita independente porque independe dos interesses mais amplos da sociedade (Maher e Aquanno, 2024, p. 97).

As próprias corporações tornaram-se crescentemente semelhantes às instituições financeiras à medida que os executivos corporativos de cima passaram a alocar volumes crescentes de investimento não somente nas operações internas, mas também [nos mercados financeiros em geral e] em firmas subcontratadas que oferecem trabalho barato, especialmente na periferia do sistema global. Desse modo, o processo em andamento da financeirização das empresas não financeiras facilitou a globalização da produção. (Maher e Aquanno, 2024, p. 97).

Mesmo se essa nota tem origem num escrito de Karl Marx, ela acaba apresentando em grandes traços um capitalismo que difere em certa medida daquele observado no miolo do século XIX. Eis que a socialização do capital não criou qualquer base concreta para a socialização da produção, ou seja, para ir além do capitalismo; diferentemente, propiciou uma enorme difusão do capital acionário e do capital portador de juros, assim como do capital fictício. Eis que a captura de valor se dá tanto na esfera da produção quando da circulação mercantil na forma de dividendos, juros como parte do lucro e juros aparentes decorrentes de empréstimos improdutivos, respectivamente.

Desse modo, o mundo do capital de finança ampliou-se frente ao mundo do capital industrial; ao mesmo tempo, as formas fetichistas que lhe são inerentes – as ações, os títulos etc. que parecem valer como tais, além de ter capacidade de gerar valor – ganharam uma dimensão formidável. Mais do que isso, recursos naturais, forças de trabalho, habitações etc., por estarem ou poderem estar associados a fluxos de recebimentos, passam a ser tomados como capital de finança. Assim, além de terem expressão em dinheiro, parecem também que capazes de gerar mais dinheiro por si mesmos.

Se tais formas de objetividade já existiam em seu tempo, tendo sido registradas por ele registrada como insanas (Marx, 2017, cap. 29), elas ainda não haviam ganhado o mundo com veio acontecer já no século XX. As questões “capital humano”, “empreendedorismo” e “neoliberalismo”, portanto, não podem ser apreendidas apenas nos “discursos” (Nunes, 2024).

Eis que agora se tem um capitalismo globalizado em que prepondera o capital de finança, em que prosperam formas diversas de capital financeiro, em que o Estado, como capitalista coletivo, atua para reduzir o risco das crises e, em especial, de uma crise de grandes proporções que possa enfraquecê-lo até o ponto em que possa ser superado. Enquanto isso não acontece, segue em ocaso; ademais, como se tornou financeirizado, segue junto o rentismo. Não se pode mais, portanto, ter o primeiro sem o segundo como pensam muitos que sonham ainda com um futuro keynesiano.  Eis que o próprio Keynes, como se sabe, sonhou bem acordado com uma “eutanásia dos rentistas” que viria por certo (segundo ele) como o desenvolvimento do próprio capitalismo.

 

Fonte: Por Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda

 

Mazzucato: a Era da Água Escassa chegou

No que diz respeito à água, o mundo enfrenta uma situação insustentável. No entanto, resolver o problema está a nosso alcance; e é o resultado mais fácil de se obter, porque permite lidar com as mudanças climáticas e gerar empregos e crescimento.

A crise da água é evidente. Ano após ano, em uma região após a outra, ondas de calor e secas recordes são seguidas por tempestades e inundações destrutivas. Os sistemas alimentares estão secando e as cidades estão afundando à medida que atingimos os limites de extração de água da terra. Mais de 1.000 crianças menores de cinco anos morrem a cada dia em decorrência de doenças causadas por água potável insegura e falta de saneamento. Centenas de milhões de mulheres passam horas todos os dias coletando e transportando água.

Esta é uma crise criada pelo ser humano, e pode e deve ser resolvida por meio de intervenções humanas. Mas para alcançar equidade e sustentabilidade em todos os lugares, precisaremos de novas formas de governo da água; de uma onda de investimentos muito maiores que os atuais; de inovação em escala e capacitação. Os custos dessas ações são insignificantes em comparação aos danos econômicos e humanitários que serão infligidos se a falta de ação continuar

O primeiro passo é reconhecer que os problemas que enfrentamos não são meramente tragédias locais. Todos os cantos do mundo estão sendo afetados, e cada vez mais, por m ciclo de água desestabilizado. As abordagens atuais tendem a lidar com a água que podemos ver – a “água azul” em nossos rios, lagos e aquíferos – e assumem que o suprimento de água é estável ano após ano. Mas isso não é mais verdade, pois as mudanças no uso da terra, as mudanças climáticas e um ciclo de água fora de controle estão afetando os padrões de chuva.

O pensamento convencional ignora, com frequência, um outro recurso crítico de água doce — a “água verde” que aparece em nossas florestas, plantas e solo; que transpira e é reciclada pela atmosfera. A água verde gera cerca de metade da precipitação que cai na terra, a própria fonte de toda a nossa água doce. E os países não estão conectados apenas por meio de fluxos de água azul (como rios), mas — o que é mais importante — por meio de fluxos atmosféricos de umidade. Como um componente essencial do ciclo global da água, a água verde precisa urgentemente ser melhor gerenciada.

O mais perigoso é que as interrupções no ciclo da água estão profundamente interligadas com o aquecimento global e o declínio da biodiversidade planetário, sendo que fenômeno reforça o outro. Um suprimento estável de água verde no solo é fundamental para sustentar os sistemas naturais terrestres que absorvem de 25% a 30% do dióxido de carbono emitido pela combustão de combustíveis fósseis.

Esse processo representa um dos aportes naturais mais significativos para a economia global. No entanto, a perda de áreas úmidas e da umidade do solo, juntamente com o desmatamento, está esgotando as maiores reservas de carbono do planeta, com consequências que podem tornar insuportável o ritmo do aquecimento global. O aumento das temperaturas desencadeia ondas de calor extremas e aumenta a demanda de evaporação na atmosfera, o que seca severamente as paisagens e aumenta o risco de incêndios florestais.

Portanto, a crise hídrica afeta praticamente todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e ameaça as pessoas em todos os lugares. A insuficiência de alimentos para uma população mundial crescente, a disseminação acelerada de doenças e o aumento da migração forçada e dos conflitos entre fronteiras são apenas alguns dos resultados previsíveis.

•        Missão H2O

Um problema coletivo e sistêmico de tão grande escala só pode ser resolvido com uma ação conjunta em todos os países e por meio da colaboração entre fronteiras e culturas. É fundamental que haja um entendimento compartilhado do Comum. Caso contrário, o que pode parecer bom para um país hoje pode facilmente criar problemas para esse mesmo país amanhã, bem como para outros em todo o mundo.

A situação exige não apenas maior ambição, mas também uma abordagem da água voltada para a missão. Uma abordagem que abranja vários setores e se concentre em todos os níveis, desde o gerenciamento de bacias hidrográficas locais até ao estabelecimento de uma cooperação multilateral. Podemos e devemos ter sucesso nas missões hídricas mais importantes do mundo:

•        Lançar uma nova Revolução Verde nos sistemas alimentares para reduzir o uso da água e, ao mesmo tempo, aumentar a produção agrícola para atender às necessidades nutricionais de uma população crescente.

•        Conservar e restaurar os habitats naturais que são essenciais para proteger os recursos hídricos verdes.

•        Estabelecer uma economia de água “circular” em todos os setores.

•        E garantir que todas as comunidades vulneráveis tenham serviços adequados de água limpa e segura e saneamento até 2030.

Embora essas missões devam impulsionar mudanças nas políticas, alinhar os setores público e privado e estimular a inovação, elas também exigem novas formas de governar. A formulação de políticas deve se tornar mais colaborativa, responsável e inclusiva de todas as vozes, especialmente as dos jovens, das mulheres, das comunidades marginalizadas e dos povos indígenas que estão na linha de frente da conservação da água.

A mudança política mais fundamental está na valorização adequada da água para refletir sua escassez, bem como seu papel fundamental na sustentação dos ecossistemas naturais dos quais toda sociedade depende. Precisamos acabar com a subvalorização da água em toda a economia e com os subsídios agrícolas prejudiciais que impulsionam o uso insustentável e degradam a terra. O redirecionamento desses fundos para a promoção de soluções de economia de água e o fornecimento de suporte direcionado para os pobres e vulneráveis seriam de grande ajuda.

Para corrigir o subinvestimento crônico em água, precisamos redefinir a prioridade da infraestrutura hídrica nas finanças públicas, onde ela é estranhamente negligenciada na maioria dos países. Os formuladores de políticas podem se basear nas melhores práticas de parcerias público-privadas para oferecer incentivos justos para compromissos de longo prazo e, ao mesmo tempo, atender aos interesses do público, especialmente das comunidades carentes.

Dada a natureza coletiva do desafio da água, devemos garantir fluxos financeiros maiores e mais confiáveis para ajudar os países de renda baixa e média-baixa a investir na resiliência da água. Os bancos multilaterais de desenvolvimento, as instituições financeiras de desenvolvimento e os bancos públicos de desenvolvimento precisarão trabalhar em estreita colaboração com os governos para apoiar as missões nacionais de água que refletem as necessidades locais e as condições ecológicas. Os acordos comerciais internacionais também oferecem possíveis alavancas para promover o uso eficiente da água, pois podem ajudar a garantir que a “água virtual” incorporada aos produtos comercializados não agrave a escassez em regiões com estresse hídrico.

Assim como estamos fazendo em relação às emissões, devemos compilar dados de alta integridade sobre as pegadas hídricas corporativas e criar estruturas para a divulgação do uso da água. Também precisamos desenvolver sistemas para avaliar a água como parte do capital natural. A fixação de um preço para esse recurso fundamental poderia gerar dividendos significativos para os países ao longo do tempo.

Em resumo, precisamos moldar os mercados em nossas economias – da agricultura e mineração à energia e semicondutores – para que se tornem radicalmente mais eficientes, equitativos e sustentáveis no uso da água.

O relatório preliminar de 2023 da Comissão Global sobre a Economia da Água apresentou os argumentos para buscar uma mudança fundamental na forma como o mundo gerencia a água. Nosso relatório final em outubro deste ano mostrará como podemos fazer isso por meio de uma ação coletiva transformadora.

Estamos apenas em 2024. Se não enfrentarmos esses problemas, os incêndios florestais, as inundações e outros eventos extremos causados pela água e pelo clima se tornarão mais intensos e mortais nos próximos anos. Promover a agenda de segurança hídrica pode parecer mais difícil em meio às crescentes tensões geopolíticas, mas apresenta uma oportunidade de provar que a colaboração pode beneficiar todos os países e possibilitar um futuro justo e habitável para todos. Não podemos fugir desse desafio.

 

•        Água: o BNDES no festim dos privatistas. Por Marcos Montenegro

Tendo o BNDES como “co-host”, ocorreu em São Paulo, em 10 de setembro, uma notória tertúlia privatista, organizada pelo GRI Club, promotor de eventos sobre negócios de infraestrutura,

O site do evento informava que no encontro seriam abordados os projetos do novo ciclo de estruturação do BNDES, bem como as formas de aporte financeiro disponíveis, reforçando a continuidade do apoio do banco à agenda de concessão do saneamento básico no Brasil a operadores privavos.

Mais um evento, em que, a pretexto de promover a “universalização” dos serviços, o capital discute os caminhos da privatização. A primeira sessão foi coordenada por Luciana Costa, Director of Infrastructure, Energy Transition and Climate Change (assim mesmo, em inglês) do BNDES e contou com Leonardo Picciani, Secretário Nacional de Saneamento Ambiental e com Manoel Machado Filho, Secretário Adjunto de Infraestrutura Social e Urbana, do PPI – Programa de Parcerias de Investimentos.

Nas demais mesas que reuniram outros quatro gerentes do BNDES, participaram representes do Banco do Nordeste, do IDB, vulgo BID ou Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Itaú BBA S.A e do Santander. Contribuíram também com os debates sobre a “universalização” dirigentes da Aegea, maior grupo controlador de concessionárias privadas de água e esgoto no país e da Águas do Brasil, holding de concessionárias privadas de 32 municípios.

A Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon – Sindcon), compareceu com Christianne Dias Ferreira, sua Diretora-Executiva e ex-presidente da ANA no governo Bolsonaro. O Instituto Trata Brasil, presença indispensável em celebrações como essa, foi representado por sua “CEO” Luana Pretto.

Pedro Maranhão, ex-Secretário Nacional de Saneamento do governo Bolsonaro, representou os interesses das empresas privadas que atuam na gestão de resíduos sólidos como Diretor Presidente da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente – ABREMA. Figura em evidência no processo de privatização da Sabesp, Karla Bertocco Trindade, participou como “Independent Board Member” da Orizon Valorização de Resíduos. Tarcila Jordão, Diretora de Desenvolvimento de Concessões e PPPs representou o Grupo Solví (R$ 2,22 bilhões de faturamento em 2023), com negócios no Brasil e em outros países da América Latina.

A Vinci Partners, empresa de fundos de investimentos que se define como  uma plataforma de investimentos alternativos de atuação global, marcou presença por meio do seu “Infrastructure Principal”, Gustavo Valente.

Bancas de advocacia de negócios também tiveram oportunidade de contribuir para “uma sociedade mais justa, promovendo a preservação ambiental, redução de doenças e o desenvolvimento econômico sustentável, além de diminuir as desigualdades sociais” como destaca a abertura do site do evento. Tudo propiciado pela pujança do capital privado.

Ausentes a ASSEMAE, AESBE, ABES e as entidades municipalistas. Nem qualquer entidade dos trabalhadores urbanitários. Terão sido convidadas para este supimpa convescote?

A ausência de representantes dos moradores das comunidades e vilas e dos povos das águas, do campo e das florestas não foi sequer percebida apesar do muito que se falou em nome deles. Talvez tenham, como dizia o Cazuza, ficado na porta estacionando os carros.

 

Fonte: Outras Palavras

 

Exercício aeróbico à noite traz mais benefícios para idosos hipertensos

A prática de exercício aeróbico no período noturno trouxe mais benefícios para a regulação da pressão arterial de idosos hipertensos do que os treinos realizados pela manhã. Estudo conduzido na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) identificou que o motivo está relacionado à melhor regulação de um mecanismo que compensa mudanças bruscas da pressão arterial conhecido como sensibilidade barorreflexa.

“Existem múltiplos mecanismos para regular a pressão arterial e, embora o treino matinal tenha trazido benefícios, foi apenas o noturno que conferiu avanço no controle da pressão arterial de curto prazo – melhorando a sensibilidade barorreflexa. Isso é importante, pois, além de o controle barorreflexo desencadear efeitos positivos no controle da pressão arterial, não existe medicamento disponível para a modulação desse mecanismo”, conta à Agência FAPESP Leandro Campos de Brito, autor do artigo publicado em The Journal of Physiology.

O trabalho é fruto do projeto de pós-doutorado de Brito, apoiado pela FAPESP e supervisionado pela professora da EEFE-USP Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz.

No experimento, 23 pacientes diagnosticados e medicados para hipertensão foram divididos em dois grupos: treinamento matutino ou noturno. Ao longo de dez semanas, ambos realizaram treinos de 45 minutos de bicicleta ergométrica na intensidade moderada, três vezes na semana.

Foram analisados parâmetros cardiovasculares importantes, como as pressões arteriais sistólica e diastólica (pressão sanguínea nos vasos) e a frequência cardíaca (batimentos do coração), após dez minutos de repouso. Os dados foram coletados antes e pelo menos três dias depois de os voluntários completarem as dez semanas de treinamento.

Além disso, os pesquisadores monitoraram mecanismos do sistema nervoso autonômico – que funciona de modo involuntário, controlando os batimentos cardíacos e a pressão arterial, por exemplo –, como a atividade nervosa simpática muscular (que regula o fluxo sanguíneo periférico por meio da contração ou relaxamento dos vasos no tecido muscular) e a sensibilidade barorreflexa simpática (avaliação do controle da pressão arterial via alterações da atividade simpática muscular).

Aqueles que treinaram à noite apresentaram melhora nos quatro quesitos analisados: pressão arterial sistólica e diastólica, sensibilidade barorreflexa simpática e atividade nervosa simpática muscular. Já os que treinaram no período da manhã não tiveram redução na atividade nervosa simpática muscular, nem melhora na pressão arterial sistólica e tampouco na sensibilidade barorreflexa simpática.

“O treinamento à noite foi mais efetivo em promover melhora autonômica cardiovascular e redução da pressão arterial. Isso pode ser parcialmente explicado por meio da melhora da sensibilidade barorreflexa e da redução da atividade nervosa simpática muscular, que foram maiores durante à noite. Por enquanto, sabemos apenas que o controle barorreflexo é definidor – pelo menos do ponto de vista cardiovascular – para os treinos noturnos serem mais benéficos que os matutinos, pois é ele que desencadeia os demais benefícios analisados.

No entanto, ainda precisamos avançar muito nesse entendimento”, explica Brito, que atualmente é professor no Oregon Institute of Occupational Health Sciences da Oregon Health & Science University, nos Estados Unidos, e segue investigando a questão por meio de estudos sobre o ritmo circadiano.

O pesquisador ressalta que o controle barorreflexo faz a regulação a cada batimento cardíaco e controla a atividade autonômica do organismo. “É um mecanismo que está atrelado a fibras sensíveis, a deformações das paredes das artérias, que ficam em locais específicos, como o arco aórtico e o corpo carotídeo. Dessa forma, quando a pressão cai, essa região manda uma informação para a área do cérebro que controla o sistema nervoso autonômico, que por sua vez manda uma informação de volta ao coração para que ele bata mais rápido e às artérias para que elas contraiam mais fortemente. Caso a pressão aumente, ele manda a informação para o coração bater de forma mais fraca e às artérias para contraírem menos, modulando assim a pressão arterial batimento por batimento”, explica.

Em estudo anterior, o grupo de pesquisadores da USP demonstrou que o treinamento aeróbico realizado à noite induz maior diminuição da pressão arterial que o treinamento matinal em homens hipertensos.

Em outro trabalho, a resposta mais efetiva do treinamento noturno na diminuição da pressão arterial também foi acompanhada por uma maior diminuição da resistência vascular sistêmica e da variabilidade da pressão arterial sistólica.

“A replicação de resultados obtidos em estudos anteriores e em diferentes grupos de pacientes com hipertensão, associada ao emprego de técnicas mais precisas para avaliar os principais desfechos, fortalece nosso entendimento para um maior benefício autonômico do exercício aeróbico realizado à noite em pacientes com hipertensão. Isso pode ser particularmente importante para indivíduos resistentes ao tratamento medicamentoso”, diz.

 

¨      Fazer exercícios à noite atrapalha o sono? Estudo sugere que não

Dentre as recomendações para uma boa higiene do sono está evitar se exercitar à noite. No entanto, um estudo publicado recentemente na revista científica BMJ Open Sport & Exercise Medicine sugere que a realização de exercícios de resistência com o peso corporal à noite tem o potencial de melhorar o tempo total de sono e ainda combater o sedentarismo.

Para chegar a essa conclusão, pesquisadores da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, fizeram a seguinte comparação: primeiro, avaliaram o sono de 28 voluntários após a realização de três minutos de exercícios simples de resistência (agachamento na cadeira, elevação de panturrilha e elevação de joelho em pé) que foram distribuídos em intervalos de 30 minutos, durante quatro horas a partir das 17h. Num segundo momento, avaliaram o tempo de sono depois de permanecerem sentados pelo mesmo período, o que é considerado sedentarismo.

Os resultados apontaram que, após se exercitarem, os participantes dormiram 29,3 minutos a mais em comparação às noites em que passaram muito tempo sentados. Não houve diferenças significativas na eficiência do sono (medida entre o tempo que a pessoa está na cama e o quanto desse tempo ela realmente conseguiu dormir), nem no número de despertares.

Os autores ressaltam ainda que ficar sentado por longos períodos está associado a um risco aumentado de diabetes, doenças cardiovasculares e até morte. Por isso, esse resultado seria uma forma de incentivar a atividade física noturna por meio de exercícios simples, que usam o peso corporal, não exigem equipamentos nem muito espaço, e a pessoa pode fazê-los em casa, sem interromper o programa de TV a que está assistindo, por exemplo.

Segundo o pneumologista Marcelo Rabahi, especialista em medicina do sono do Hospital Israelita Albert Einstein de Goiânia, a recomendação de não fazer exercícios físicos à noite se aplica principalmente àqueles que são mais intensos e extenuantes — como nadar, pedalar e correr. Isso porque durante essas atividades o corpo produz algumas substâncias (especialmente endorfinas) que mantêm o organismo mais ativo e desperto, e isso poderia atrapalhar o descanso noturno.

“Em geral, fazer exercícios de impacto ou muito intensos perto da hora de dormir pode atrapalhar o sono. Mas há ressalvas: eventualmente, a pessoa só tem o horário noturno para fazer o exercício. Se formos colocar na balança os benefícios para a saúde, é melhor fazer a atividade física”, observa o especialista. Muitas pessoas se habituam a essa rotina e conseguem ter uma noite de sono satisfatória, mesmo fazendo exercícios mais perto da hora de dormir. Aliás, essa pode ser uma boa estratégia para começar a ter uma rotina de exercícios, no caso de quem não consegue em outro horário.

O ponto de atenção, segundo Rabahi, é se esses indivíduos começarem a se queixar de insônia ou apresentarem sonolência excessiva durante o dia, por exemplo. Nesses casos, é indicado procurar um médico. “Durante a avaliação, vamos investigar os vários motivos da insônia e, eventualmente, podemos interpretar que talvez aquele exercício físico que a pessoa faz logo antes de se deitar estaria atrapalhando”, afirma o pneumologista.

De acordo com o médico, mais do que o tempo total, o que atrapalha uma noite de sono restauradora é o número de “microdespertares”, ou seja, aqueles breves momentos em que o sono é interrompido. Embora o estudo não tenha constatado um impacto desses despertares, eles ativam o sistema nervoso central sem a pessoa perceber que acordou.

Em geral, acontecem em quem sofre de apneia, síndrome das pernas inquietas ou outros distúrbios do sono. “Se uma pessoa dorme oito horas por noite, mas tem 50 microdespertares por hora, a qualidade do seu sono pode ser pior do que de quem dorme seis horas sem ter despertares, por exemplo”, explica o médico.

Daí porque é preciso adotar hábitos que assegurem uma boa noite de sono — incluindo a atividade física à noite, se ela não for um problema para você. “Isso não pode ser uma desculpa sob a alegação de que vai atrapalhar a noite de sono. Faça o seu exercício num ritmo que traga conforto e, se possível, respeite esse tempo de quatro horas antes de ir dormir”, orienta Rahabi. “Se perceber que está demorando a pegar no sono, aí sim deverá mudar a intensidade do exercício físico ou eventualmente o horário.”

 

Fonte: CNN Brasil

 

Horizontes de mudança pós-capitalista

O cenário mundial nesta segunda década do século XXI está marcado pelo horror do genocídio sofrido pelo povo palestino, que é rejeitado pela maioria da humanidade, mas todos os andaimes institucionais e jurídicos construídos após a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas, o Tribunal Internacional de Justiça, como garantidores da convivência humanitária, estão se revelando incapazes de impedi-lo, sobrepostos por um aparto imperial, financeiro e colonialista de guerra e dominação que tudo devora.

Diante deste andaime imperial-colonial, que luta com armas, mas também com aparatos ideológicos, derivados de um padrão de poder capitalista e racista de alcance mundial, parece indispensável recuperar, aprofundar, outras opções, outros caminhos, alternativas para recuperar um sentido de paz e humanidade.

É uma necessidade que se acentua com os avanços eleitorais e estatais da direita e da extrema direita na América Latina (Javier Milei e outros), nos Estados Unidos (Donald Trump e outros) e na Europa (Marine Le Pen, Giulia Meloni e outros), que atiçam o racismo e o colonialismo.

Vale a pena notar também, embora num nível diferente, os limites das políticas e regimes social-democratas na Europa (Olaf Sholz e outros), ou progressistas na América do Sul (Gabriel Boric e outros).

Alternativas, outros caminhos, outras perspectivas que recuperem sentidos e sentimentos humanos, que ousem pensar e propor horizontes de mudança pós-capitalistas e pós-coloniais.

Parece-nos relevante enfatizar a alternativa de programas sociais, políticos e culturais orgânicos. Entendemos por isso projetos que emergem desde as classes, estratos, etnias, grupos populares, até propostas com capacidade de envolver, incorporar, setores sociais, organizações e mecanismos de ação e luta.

Neste artigo, propomos retomar e revitalizar o projeto que emergiu dos novos movimentos indígenas latino-americanos no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, e que, no caso do Equador, tomou a forma do Programa pela Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver, que confronta aspectos centrais do padrão de poder capitalista-colonial.

Cabe dizer que há projetos semelhantes, embora com suas próprias especificidades, nos movimentos indígenas da Bolívia, Peru, Guatemala, Chile e México, entre outros. No caso do Equador, referimo-nos à formulação deste programa nos documentos orgânicos da Confederação de Nacionalidades Indígenas, e recuperamos também textos de líderes históricos desta organização.

Este programa deu seus primeiros passos nos anos 80 do século passado, no contexto da identidade e organização dos povos e nacionalidades indígenas, que foi se consolidando ao lado da afirmação do agrupamento e da luta dos povos nos chamados Levantamentos Nacionais, e, no caso equatoriano, envolveu a estratégia da exigência de processos constituintes, e, numa terceira fase, incorporou a luta contra as medidas neoliberais.

Uma das virtudes desta trajetória é que são propostas que emergem do debate, da organização e da luta dos próprios grupos indígenas, que se nutre e se diversifica no combate ao colonialismo interno e ao neoliberalismo, com sucessos e derrotas num processo político em que as reivindicações indígenas vão ganhando protagonismo e se juntam às lutas dos trabalhadores, dos professores, do movimento de mulheres e do movimento ambientalista.

Este artigo trata da exposição dos conteúdos deste programa; vamos respeitar o lugar de enunciação da organização do movimento indígena contemporâneo, reconhecendo que existem outras contribuições e definições destes conceitos em setores da academia formal, mas não as inserimos neste texto.

Trata-se de um programa que foi sendo elaborado à medida que a organização, a luta e a influência política do movimento indígena evoluíam: primeiro, houve o consenso em torno da Plurinacionalidade (1990), depois foi incorporada a Interculturalidade (2001) e, finalmente, o Sumak Kawsay – Bem Viver (2007).

Estamos diante de um programa alternativo que emerge dos debates e das reivindicações do movimento social. Este é um marco fundamental no processo indígena no Equador e em outros países da região e, a partir deste pilar fundador, rompe com um dos obstáculos criados pelo colonialismo, o de que são outros que falam em nome dos indígenas, são outros que escrevem em nome dos indígenas, o que o antropólogo Andrés Guerrero definiu como “ventriloquismo” e “transescrita” dentro de uma estratégia estatal de “administração das populações”.

Este programa indígena enfrenta a colonialidade do poder como um padrão de subordinação que articula o capitalismo e o racismo. Uma das virtudes da definição de Quijano (2000) é que se trata de um modo de dominação em nível global, que não se reduz ou se limita a um só país ou a uma só região. Vem da instauração do antigo sistema colonial, nos séculos XV e XVI, que depois se articulou com o sistema capitalista-imperialista, nos séculos XIX e XX, e está em pleno vigor no que hoje se denomina “globalização”.

Portanto, o programa Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver enfrenta uma problemática mundial: capitalismo – colonialismo – racismo.

Trata-se de um programa integral, mas por uma questão de exposição, abordaremos as noções uma a uma, e depois voltaremos a articulá-las. Cabe destacar também que elas se tornam demandas estratégicas nas ações de luta em âmbito nacional e local, estão inseridas na dinâmica da luta social e política concreta, num contexto de crise política e econômica.

Baseamo-nos em três documentos orgânicos da Conaie, que por sua vez correspondem a três conjunturas que permitem a consolidação da organização e do programa que promove. É sempre necessário salientar que a Conaie não é a única organização indígena no Equador, mas é aquela em torno da qual foi possível formar e sintetizar este programa alternativo, étnico e anticolonial, e que teve maior repercussão em sua capacidade de convocar as pessoas.

Estes documentos são: “Projeto Político da Conaie”, de 1994, depois uma versão que modifica ligeiramente a anterior: “Projeto Político das Nacionalidades e Povos do Equador”, de 2001; e “Proposta da Conaie diante da Assembleia Constituinte”, de 2007, aos quais se juntam textos públicos de líderes históricos do novo movimento indígena: Nina Pacari, Luis Macas e Patricia Gualinga.

No “Projeto Político” sobre Plurinacionalidade afirma-se: “A Plurinacionalidade baseia-se na diversidade real e inegável da existência das Nacionalidades e Povos do Equador como entidades econômicas, políticas e culturais históricas diferenciadas. A plurinacionalidade defende a igualdade, a unidade, o respeito, a reciprocidade e a solidariedade de todas as nacionalidades e povos que compõem o Equador. Reconhece o direito das Nacionalidades a seu território e à sua autonomia política e administrativa interna” (CONAIE, 2001: 2.4).

No documento sobre a “Nova Constituição”, propõe-se: “O Estado plurinacional é um modelo de organização política para a descolonização de nossas nações e povos. Trata-se de reconhecer não apenas a contribuição dos povos e nacionalidades indígenas para o patrimônio da diversidade cultural, política e civilizatória do Equador, mas também de procurar superar o empobrecimento e a discriminação de séculos de civilizações indígenas. Por suas peculiaridades socioculturais, políticas e históricas, os povos e nacionalidades reivindicam direitos específicos e que são contribuições como valores simbólicos, formas de exercício da autoridade e sistemas de administração social de enorme mérito e valor político” (Conaie: 2007, p. 14).

Comentemos que o componente de Plurinacionalidade dentro do Programa indígena para transformar a sociedade equatoriana rompe com um dos pilares do sistema político moderno: “um só estado – uma só nação”, que caminha lado a lado com o postulado de “um só estado – uma só cultura”, esse estado monolítico é o que recobre o sistema capitalista-colonial, essa única nação e cultura que é reconhecida como moderna e industrial, branca-mestiça, urbana e cosmopolita, que, em relação aos povos indígenas, aplicou uma estratégia de “administração das populações”, com a qual negou a participação política direta a estes setores, os excluiu do sistema oficial, os tratou como marginais e delegou, nas instituições locais, o processamento de suas demandas.

O Programa, ao propor o reconhecimento de outros povos e nacionalidades, aceita-os oficialmente como “entidades econômicas, políticas e culturais”. Isto implica a defesa de um sistema político de igualdade, reciprocidade e solidariedade entre as diferentes classes, estratos e etnias existentes, que vai ao lado da “superação do empobrecimento e da discriminação”, à qual as populações indígenas têm sido estruturalmente submetidas.

A plurinacionalidade caminha lado a lado com o reconhecimento dos territórios indígenas, os que já existem, mas também os que são reivindicados em restituição face à expropriação por parte dos latifundiários, da mineração ou do petróleo; é também o respeito pelo sistema de governança próprio das nacionalidades indígenas.

O pilar da plurinacionalidade é a recuperação e a revalorização da sociedade comunitária indígena, que é uma ordem coletiva baseada em mecanismos internos de solidariedade, reciprocidade e apoio mútuo. Está ligado a uma jurisprudência dos povos.

Implica também que o sistema estatal assuma e considere a participação direta dos povos indígenas na formulação e definição das políticas públicas, tanto em nível nacional como local, não só naquelas relacionadas com as populações indígenas, mas também nas que estão relacionadas com o desenvolvimento e o bem-estar.

Em suma, são mudanças no sistema político que não dizem respeito apenas aos povos indígenas, mas levam a profundas transformações em todo o país.

No “Projeto Político” sobre Interculturalidade afirma-se: “O princípio da interculturalidade respeita a diversidade das nacionalidades e dos povos, o povo afroequatoriano e mestiço-equatoriano e demais setores sociais, mas, por sua vez, exige a unidade destes, nos campos econômico, social, cultural e político, num quadro de igualdade, respeito mútuo, paz e harmonia. O reconhecimento, a promoção e a vigência da diversidade garantem a unidade e permitem a convivência, a coexistência e a inter-relação fraterna e solidária entre as nacionalidades e os povos, o que garante o estabelecimento do estado Plurinacional”. (CONAIE, 2001, p. 2.5).

No documento sobre a “Nova Constituição” afirma-se que: “A interculturalidade implica a construção de um projeto de país entre todas e todos que preconizem o respeito e a valorização de todas as formas de expressão cultural, de conhecimento e de espiritualidade, o que exige a unidade dos povos e nacionalidades e do conjunto da sociedade como condição básica para uma democracia plurinacional e uma economia justa e equitativa. Um dos eixos para o desenvolvimento das culturas e para o exercício da interculturalidade é a incorporação das línguas dos povos e nacionalidades no sistema educativo. É impossível promover essas línguas (e, portanto, essas culturas, essas outras formas de compreender o mundo) se não houver um esforço nacional e coletivo” (Conaie: 2007, p. 22).

Comentemos que o componente de Interculturalidade dentro do Programa Indígena para transformar a sociedade equatoriana implica, em primeiro lugar, denunciar e desmantelar o velho colonialismo e o neocolonialismo, sua desapropriação material e cultural, que nega os povos indígenas, os ignora como portadores de saberes, compreensões, de um sistema social complexo, que conseguiu perdurar apesar dos esforços de extermínio e anulação, e incorpora a luta contra a ideologia racista.

Como destaca a líder amazônica Patricia Gualinga: “é o respeito que conseguimos ter uns pelos outros, o oposto da interculturalidade é o racismo. Racismo é se achar superior aos outros povos, ter esse ar de “somos o que sabem pensar, os outros não” (Gualinga: 2021, p.55).

A interculturalidade anda de mãos dadas com o postulado da “unidade na diversidade”, que toda a sociedade e o estado equatoriano reconheçam e incorporem os saberes indígenas e os idiomas dos povos. É reescrever a evolução histórica do Equador, dar relevância aos seus acontecimentos e personagens, que a possibilidade de reconstruir a nação passa pela valorização de seus conhecimentos e filosofias, a fim de gerar novas compreensões sobre o desenvolvimento e o bem-estar.

A abordagem da interculturalidade tem sido uma contribuição fundamental dos movimentos indígenas para motivar, desenvolver os processos de descolonização nas ciências sociais, nas artes e até nos debates epistemológicos.

Nos últimos anos, ficou claro que a abordagem da interculturalidade gerou uma irritação incontida na extrema-direita, tanto na Europa como na América.

No documento “Nova Constituição” afirma-se: “O Sumak Kawsay é um princípio ancestral que propõe o bem viver, deverá promover a convivência harmoniosa das pessoas e dos povos entre si e com a natureza. A biodiversidade e a natureza não são apenas uma mercadoria a mais a ser comprada e vendida, e à qual se explora irracionalmente; a natureza é Pachamama, somos parte dela, portanto, a relação com os componentes do entorno natural deve ser respeitosa”. (Conaie: 2007, p. 21).

No documento “Projeto Político” indica-se que: “as nacionalidades e os povos praticam uma Filosofia Integral onde os seres humanos e a natureza estão em estreita e harmoniosa inter-relação, garantindo a vida de todos os seres. A consciência histórica ratifica a Filosofia Integral praticada pelas Nacionalidades e Povos, que sobreviveram à exploração, ao genocídio, ao etnocídio e à subjugação desumanizada da civilização ocidental” (CONAIE, 2001: 2.1).

Comentando o componente de Sumak Kawsay – Bem Viver, coloca-se no centro do debate um dos pontos centrais da modernidade ocidental: a relação entre os seres humanos e a natureza, entre a “ideologia do progresso” e as noções de bem-estar coletivo que incorporam o respeito pela natureza. Para os povos indígenas, em seus códigos de vida e também em suas práticas territoriais, deve ser procurada uma relação harmoniosa, baseada nos postulados de que todos os seres têm vida, o que implica que a natureza também tem, e que é necessário procurar uma situação de equilíbrio que permita a sobrevivência integral dos seres humanos e dos ecossistemas.

Como explica a líder Nina Pacari: “O Sumak Kawsay, que se traduz literalmente por ‘bem viver’ ou ‘vida plena’, revela-se um resumo da noção desenvolvida pelos povos originários, e está orientado a partir do sujeito coletivo, o que significa: meu bem-estar só na medida em que todos os outros estejam numa situação de equidade. Nessa medida, há equilíbrio e equidade. Posto desta forma, torna-se um paradigma para fortalecer não apenas as vivências nos territórios comunitários, mas também no âmbito geral” (Pacari: 2021, p. 19).

Nina Pacari, ao mesmo tempo que adverte contra a redução de uma tradução literal, situa a noção de Sumak Kawsay numa perspectiva de bem-estar coletivo baseado no equilíbrio e na equidade entre todos os seres humanos e entre estes e a natureza.

As visões do Bem Viver entram em confronto, em primeiro lugar, com as ofensivas extrativistas, especialmente as que se implantam nos territórios indígenas e na preservação dos ecossistemas; a evolução da “Iniciativa Yasuní” é um bom exemplo disso. Tem sido um ponto de confrontação tanto com as tendências neoliberais quanto com as desenvolvimentistas.

Os debates em torno do Sumak Kawsay – Bem Viver foram tão potentes que, no contexto da Assembleia Constituinte de 2007-2008, levaram à aprovação dos Direitos da Natureza (Constituição 2008, capítulo 7).

Por uma questão de exposição, abordamos sinteticamente os pontos centrais, mas se trata de um Programa social, político e cultural integral, que confronta, em primeiro lugar, a colonialidade do poder, mas também questiona os pontos centrais do padrão de acumulação capitalista em nossos países e enfrenta um dos pilares da dominação global: o racismo e a ideologia do progresso e da modernidade.

Não é apenas um Programa Indígena para os indígenas, é uma proposta dos povos e nacionalidades indígenas para a transformação de todo o país, nos níveis econômico, estatal e ideológico.

Trata-se de um Programa cuja evolução e divulgação tem sido acompanhadas por estratégias de ação e impacto, como bem explica o dirigente Luis Macas: “os povos e nacionalidades indígenas, através da CONAIE, traçaram duas linhas de ação: uma delas é a reivindicação de conquistas pragmáticas necessárias, e outra linha fundamental é a estratégica, indispensável para gerar mudanças, ações e comportamentos que têm sido evidentes em sua trajetória de luta. Um tema central é o da Plurinacionalidade, entendemos através deste conceito a existência histórica da diversidade dos povos… assim, o movimento indígena assumiu em determinado momento o poder de questionar o estado uninacional, colonial, opressor, e se compromete a enfrentar e lutar contra o modelo político-econômico que afeta a maioria da sociedade” (Macas: 2021, p. 27).

A trajetória do Programa exposto tem uma vitalidade política que consegue articular vários níveis de ação e impacto, e vai ganhando adeptos e reconhecimentos até obter uma condição de vanguarda para a etapa política específica de 1990 a 2008 na estratégia do movimento indígena equatoriano, cujo ponto cardeal é a Plurinacionalidade, ou seja, a penetração no sistema político e o reconhecimento de territórios e da governança comunitária, evitando, assim, outras tendências, como o multiculturalismo, que pode reconhecer saberes e culturas, mas sua participação política é mantida à margem e reduzida às questões especificamente indígenas. Por isso é relevante a ênfase de Macas no propósito de “lutar contra o modelo político-econômico” de opressão e colonialismo.

Em torno da luta por este programa, o movimento equatoriano tem desenvolvido ações como os Levantamentos Nacionais, sendo os mais recentes em 2019 e 2022, e estratégias políticas relevantes, como a demanda por processos constituintes, em momentos concretos, os quais têm encurralado os seguidos governos e gerado adesões em setores e organizações populares, provocando definições políticas e ideológicas nas classes e estratos urbanos que encurralam o racismo.

Suas noções e impactos sociais e culturais têm agitado os setores intelectuais e acadêmicos, incentivando tendências como a decolonialidade e o pós-colonialismo.

A evolução política do Programa da Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver teve seu ponto alto na Constituição de 2008, que, em seu contexto, incorporou a Plurinacionalidade, a Interculturalidade e o Bem Viver, bem como sua aprovação em referendo nacional, com o apoio de 64% do eleitorado. Seu desenvolvimento posterior teve seus altos e baixos, confrontando-se com o desenvolvimentismo e o neoliberalismo, mas isso poderá ser tratado em outro artigo.

Finalmente, sugiro que estamos diante de um novo momento: é um programa vigente que se expande para além das fronteiras nacionais e das vicissitudes de uma organização específica; conseguiu ultrapassar seus próprios limites. As noções de plurinacionalidade, de interculturalidade e de bem viver, a recuperação das sociedades comunitárias indígenas desafiam uma mundialização mergulhada no colonialismo e no racismo, que se sente ameaçada e responde com a guerra, apelando à dominação pura e simples.

 

Fonte: Por Francisco Hidalgo Flor, em A Terra é Redonda