Sem casa e
sem resposta: o drama dos desabrigados após as enchentes no Rio Grande do Sul
Mais
de um ano após as enchentes de setembro de 2023, que haviam sido a pior
tragédia ambiental do estado até então, e cinco meses depois das de maio de
2024, que foram ainda piores, quase duas mil pessoas continuam em abrigos no
Rio Grande do Sul. O número de gaúchos que perderam suas casas é bem maior,
pois mais de 100 mil foram destruídas, de acordo com a Confederação Nacional
dos Municípios. Sem uma resposta do poder público, que até agora entregou menos
de 500 moradias, muitos foram obrigados a voltar a casas com danos estruturais
graves ou em áreas de risco, que fatalmente voltarão a inundar.
Ainda
há 46 abrigos em funcionamento no estado, a maioria em cidades do Vale do
Taquari e na região metropolitana de Porto Alegre – os locais mais afetados.
Quase metade dos desabrigados foi transferida de abrigos provisórios, montados
às pressas durante a emergência, para os chamados Centros Humanitários de
Acolhimento, instituições geridas pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Os
centros deveriam funcionar até dezembro, mas funcionários acreditam que o prazo
terá que ser prorrogado, uma vez que boa parte dos residentes tem pouca ou
nenhuma perspectiva de sair dali.
Cláudia
Weber tenta reproduzir no abrigo a vida que tinha antes da calamidade de maio.
Ela resgatava animais abandonados e cuidava de 22 no momento da enchente,
quando teve que fugir da água empurrando com as mãos a sua cadeira de rodas –
ela não tem uma das pernas – e gritando para que alguém acudisse os animais.
Levou consigo apenas o cachorro Toquinho, de 19 anos, que perdeu a mandíbula e
não consegue se alimentar sozinho. Sua casa foi destruída.
No
abrigo, conseguiu permissão para que Toquinho ficasse com ela na casinha
modular para refugiados, de 18 metros quadrados, igual às usadas em zonas de
refugiados do Oriente Médio. As paredes de seu lar improvisado são decoradas
com bichinhos de pelúcia – 21, o mesmo número de animais que teve que deixar
para trás –, dados de presente por colegas que já deixaram o abrigo. No início,
logo após as enchentes de maio, quase 80 mil pessoas precisaram recorrer a
abrigos.
Weber
soube que os bichos foram resgatados e colocados para adoção. Ela, porém, não
tem mais parentes, fonte de renda e nem perspectiva para deixar o abrigo. A
promessa de uma nova casa, que ouviu na televisão que seria dada a
desabrigados, parece um sonho distante.
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Por que isso importa?
• Meses
depois das enchentes de maio, classificadas como “a maior catástrofe climática”
do Rio Grande do Sul, que deixou 180 pessoas mortas e mais de 2 milhões de
atingidos, famílias que perderam tudo na tragédia seguem sem moradia. Os planos
de habitação são pouco claros e não há cronogramas bem definidos para entregas.
Mais de duas mil pessoas ainda vivem em abrigos públicos.
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Planos de habitação não são claros
Em
15 de maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e ministros visitaram o
Rio Grande do Sul e prometeram que as famílias com renda mensal de até R$ 4,4
mil mensais que perderam suas casas nas enchentes receberiam novas moradias do
governo federal. O programa Minha Casa Minha Vida contratou 11,5 mil novas
moradias – os imóveis devem custar até R$ 200 mil e não podem ficar em áreas
alagáveis. O ritmo, porém, é lento. Pouco menos de 400 foram liberadas até
agora.
Já
o governo do Rio Grande do Sul, de Eduardo Leite (PSDB), prometeu 500 novas
unidades, que devem ser entregues à medida que as prefeituras disponibilizem os
terrenos. Até agora, foram liberadas 144 casas em três cidades do Vale do
Taquari e serão mais 48 até o fim de outubro, conforme a administração pública
estadual.
Não
há um dado geral sobre a quantidade de pessoas que ainda estão desabrigadas no
Rio Grande do Sul. O auxílio de R$ 5,1 mil, concedido aos atingidos pelo
governo federal, não foi suficiente para que as famílias ouvidas pela
reportagem conseguissem reconstruir suas vidas. Muitas, também, não tiveram
acesso ao aluguel social, porque não estão inscritas no CadÚnico.
Por
outro lado, os planos de habitação são pouco claros e não há cronogramas bem
definidos. O desamparo das famílias atingidas contrasta com a estrutura dos
escritórios de reconstrução, criados para reparar os impactos das enchentes.
Tanto a prefeitura da capital quanto o governo do estado criaram órgãos
robustos formados por centenas de pessoas, entre servidores e cargos
comissionados, que têm a única missão de atender os desamparados. Mas eles nem
sequer têm resposta sobre o que já foi feito e o que será feito.
Criado
pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), o Escritório de
Reconstrução e Adaptação Climática da capital gaúcha é uma força-tarefa
temporária, que funcionará até dezembro deste ano. De acordo com a prefeitura,
tem orçamento de R$ 890 milhões, dos quais R$ 510 milhões devem servir a obras
de drenagem e segurança hídrica e R$ 326 milhões serão destinados à recuperação
de 218 equipamentos públicos afetados, entre outros investimentos. O órgão só
tem dois servidores do Departamento Municipal de Água e Esgotos para dar conta
do principal problema que levou ao desastre.
O
Escritório de Reconstrução está sob coordenação do secretário de Meio Ambiente,
Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, que estava na gestão anterior, de
Nelson Marchezan Jr. (PSDB), e é reconhecidamente alinhado ao setor imobiliário
local. É um órgão dominado por cargos comissionados do primeiro escalão do
governo Melo, que ganham um benefício especial para integrá-lo. Questionado
sobre os trabalhos em andamento pela reportagem, o órgão se limitou a dizer que
“Há muita coisa sendo realizada pelo Escritório de Reconstrução. São mais de
300 ações”, sem especificar quais seriam e seus prazos de execução.
Da
parte do governo estadual, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha é herdeira
direta da Secretaria de Secretaria de Parcerias e Concessões, pasta que
organizava as privatizações propostas pelo governador Eduardo Leite (PSDB). O
seu coordenador, o economista Pedro Capeluppi, foi assessor do ministro da
Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes.
Pedimos
o detalhamento dos projetos de moradia da prefeitura para os bairros afetados
de Porto Alegre e não conseguimos retorno até a publicação.
A
secretaria estadual informa que dispõe de R$ 1,9 bilhão para investimentos no
chamado “Plano Rio Grande”. A fatia mais expressiva desse recurso – cerca de R$
300 milhões – servirá à primeira fase de um programa de desassoreamento de rios
e outros cursos d’água menores. O governo, no site que organiza as informações
do plano, diz que o trabalho está “em andamento”, sem dar mais detalhes.
Outra
parcela importante desse investimento se dá no repasse de verbas para
reconstrução de ruas e estradas do estado. O governo diz que irá investir R$
247,7 milhões, mas a informação mais recente, do começo de setembro, mostra que
foram empenhados até agora R$ 59,9 milhões.
O
Programa Volta por Cima, que destina R$ 2,5 mil para pessoas desalojadas,
pretende repassar R$ 240 milhões para famílias desabrigadas ou desalojadas. Até
agora, segundo o governo, foram destinadas verbas a 89,5 mil famílias,
totalizando R$ 223,6 milhões.
Investimentos
em habitação devem somar R$ 164 milhões, entre um programa de gestão de imóveis
públicos para habitação de interesse social, auxílios para compra de imóveis e
desapropriações. O programa também aparece como “em andamento”, sem detalhes
sobre prazos e abrangência.
• Perdas
irreparáveis
Um
dos casos que se amontoam nas gavetas desses escritórios é o de Cristielle da
Silveira, de 30 anos. Ela se esquentava junto ao fogão de sua casa no dia 4 de
setembro de 2024, uma segunda-feira fria e chuvosa, quando ouviu de vizinhos
que a água do rio Taquari estava subindo rapidamente. Moradora de Roca Sales,
cidade a 140 quilômetros de Porto Alegre, conhecia bem o temperamento instável
do rio. Mas não imaginava que, naquele dia, ele se encheria como nunca antes, e
que em poucas horas iria atingir a marca histórica de 30 metros – o equivalente
à altura de um prédio de cinco andares acima do seu nível normal.
O
volume de água gigantesco avançou sobre o centro da cidade, varrendo o que
aparecia pela frente – incluindo a sede da prefeitura, a Câmara de Vereadores e
as principais empresas da região, como a fábrica da JBS e dos calçados Beira
Rio.
Quando
a água ainda estava subindo a uma velocidade alarmante – cerca de 1 metro por
hora –, Silveira foi no trabalho do marido chamá-lo para ajudar a levantar os
móveis e eletrodomésticos na casa deles. E viu a cena que, ainda hoje, lhe
enche os olhos de lágrimas. “Ele estava dançando, sem saber que eu estava
olhando. Quando começou a enchente, ele estava ali, dançando. No dia do óbito
dele”, ela diz.
Logo
eles perceberam que não adiantava subir os móveis, tampouco tirá-los de lá. A
água invadia com tanta força que as paredes de madeira começaram a abrir, e o
rio começou a passar por dentro da casa. O casal se escorou na cama, já
boiando, e conseguiu subir no telhado. Ao sair para o lado de fora, eles só
avistaram água para todos os lados. A correnteza se assemelhava ao tsunami que
via em filmes, Silveira comparou depois. Sem pensar muito, eles pularam para o
telhado do vizinho – bem a tempo de ver a casa deles ser levada pela
correnteza.
Por
um tempo, o casal ficou em cima do telhado do vizinho, o único que havia se
mantido de pé ali. “Eu sentia que tinha que dizer o último ‘eu te amo’ para
ele. E estava com vergonha de dizer, de ele achar que eu estava pensando
bobagem, que a gente ia morrer ali. Então não disse.” Pouco depois, a água
levou uma parede da casa em que eles estavam, depois a outra, e, em seguida,
eles também.
No
meio da água agitada, batendo em troncos de madeira e pedaços de concreto,
Silveira tentava se manter consciente. Não conseguia ver direito o que estava
acontecendo e estava engolindo muita água. Sentia que lhe faltava o ar e ia se
afogar. Então ela sentiu os braços do marido por baixo dela a empurrando para
cima, até que ela conseguiu emergir. “Eu senti que ele estava mandando que eu
boiasse, foi o que eu fiz. Não sei nadar, morro de medo de água, mas eu boiei.”
Ela
conseguiu se agarrar a um galho e montou em uma árvore cujo topo estava fora da
água. Passou a noite ali, em meio a aranhas e vendo cobras boiando na água. Foi
resgatada na manhã seguinte, quando os primeiros barcos começaram a procurar
sobreviventes. Estava com hipotermia e uma das pernas havia sido esmagada
durante a tormenta. Dias depois do resgate, ela voltou ao lugar e viu a árvore
que a salvou. Tinha mais de 3 metros de altura.
“Meu
marido foi encontrado uns 20 dias depois. Ele estava no mesmo lugar em que me
empurrou. Ele me empurrou como quem diz: ‘Vai cuidar das meninas, porque eu não
vou conseguir’”, afirma. Os dois estavam juntos desde a adolescência. As duas
filhas do casal estavam na casa de parentes e não têm ideia do que os pais
passaram naquela noite.
“Ele
era uma pessoa muito sorridente. Eu vivia chorando e ele vivia rindo. Eu era
depressiva, tentei me matar várias vezes. E aí, na enchente, parece que eu tive
que reagir.”
Hoje,
Silveira trabalha em uma fábrica de bolsas, ganhando R$ 1,6 mil por mês, e mora
em uma casa improvisada, montada no espaço físico de uma loja. Ela recebeu os
R$ 5,1 mil do Auxílio Reconstrução, do governo federal, e R$ 400 mensais, por
seis meses, de aluguel social do governo do estado, concedido a pessoas de
baixa renda inscritas no CadÚnico.
O
dinheiro não deu para os gastos de uma família com duas crianças, então
Silveira teve que fazer empréstimos. Ela está tentando entrar na fila para
receber uma casa nova, mas não sabe se isso vai acontecer, muito menos quando.
As informações que recebe são desencontradas e os prazos, continuamente
corrigidos.
O
prefeito de Roca Sales, Amilton Fontana (MDB), disse à Agência Pública que mais
de 50 casas devem ser construídas até o fim do ano em parceria com o governo
federal. Mas não há um cronograma de entrega definido e a gestão municipal tem
problemas para encontrar lugares seguros, fora da rota das águas. Fontana está
terminando o segundo mandato, então não está concorrendo nas eleições deste
ano. “Vou deixar muita coisa encaminhada, mas muito ainda tem que ser feito”,
afirma.
Entre
os três candidatos para a prefeitura – Bayard Ollé Fischer Santos (MDB),
Adovandro Fraporti, o Dinho (Podemos) e Jones Wunsch, o Mazinho (PP) –, a
reconstrução de Roca Sales se tornou a principal temática. Os três têm planos
parecidos: investir no desassoreamento do rio, melhorar os sistemas de alerta e
realocar até 40% da cidade para um lugar mais alto. Enquanto isso não acontece,
cada vez mais casas são abandonadas pelos moradores, que decidem por conta
própria procurar lugares mais seguros.
• Uma rua
de mansões abandonadas
Uma
das ruas mais chiques de Roca Sales há até pouco tempo hoje abriga apenas
mansões abandonadas. Algumas delas foram deixadas abertas, ainda com objetos
pessoais dentro, como se seus habitantes tivessem saído às pressas. As placas
de “vende-se” na entrada tornaram-se motivo de piada. “Quem é que vai querer
morar aí?”, desdenha um transeunte. O local fica exatamente na rota das
enchentes, e essas casas ficaram submersas durante dias por três ocasiões em
apenas oito meses.
Uma
das mansões abandonadas foi tomada por mato e flores silvestres. É possível
entrar em todos os cômodos e tentar adivinhar o que havia ali. O barro ainda
cobre a cerâmica rosa do banheiro, o quarto das crianças tem desenhos nas
paredes, na área da churrasqueira há uma tulipa de chope enterrada na lama
endurecida. A piscina foi arrancada do chão, e um duende e uma garça que
enfeitavam o jardim foram para cima de um monte de terra nos fundos.
A
antiga casa de Silveira não ficava muito longe dali. Por ser de madeira, ela
não resistiu como as mansões de alvenaria. Um ano depois do desastre que mudou
a sua vida, ela está sem esperança de obter ajuda efetiva do poder público para
reconstruí-la. “Mas não adianta ficar triste”, diz. “A gente conquista tudo de
novo depois, porque o que a gente tinha de mais valor a gente perdeu, que era o
pai da nossa família.”
Sem
alternativas, quem perdeu tudo se vê obrigado a retornar para casas com
rachaduras e danos estruturais ou a reconstruir suas moradias em terrenos que
irão inundar de novo – é apenas uma questão de tempo.
É o
caso de Sarandi, um dos maiores bairros de Porto Alegre. Lá, um terço da
população de 91 mil habitantes foi afetado pelas enchentes de maio. A água, que
chegou a três metros de altura, demorou quase um mês para baixar após o
rompimento de um dique. O local era uma várzea próxima ao rio Gravataí que foi
ocupada de modo desordenado nas últimas décadas. Apesar das enchentes
frequentes, nenhuma havia sido tão violenta quanto a deste ano.
Quando
os moradores finalmente puderam voltar para casa, se depararam com pilhas
gigantescas de lixo e um cheiro persistente de esgoto impregnado nas paredes.
Muitas casas da região não têm saneamento básico e direcionam os dejetos
diretamente nos pequenos cursos de água que passam por ali e desembocam no
Gravataí. Com a cheia, tudo foi para dentro das casas.
Cristiane
Ferreira Furquim mora a poucos passos do arroio Feijó, que também transbordou.
Ela foi levada para a casa de parentes no dia da enchente, junto com o cachorro
Mike. Por já ter tido três AVCs, ficaram com medo de que ela soubesse a
verdade, e omitiram o que estava realmente acontecendo – como no filme Adeus,
Lenin. A televisão nunca era ligada para evitar que ela visse notícias. Mas foi
difícil contornar as redes sociais, e ela acabou identificando o local em que
morava em um vídeo postado por resgatistas. “Sabia que a minha casa estava ali,
mas não conseguia ver. Ela estava submersa”, disse.
A
poucos passos dali, a residência de Joseline dos Santos também ficou embaixo
d’água, mas não resistiu e caiu inteira. Em meio aos escombros de sua antiga
casa, ela encontrou os restos da bicicleta que usava para trabalhar como
diarista – e com o fim do meio que usava para se locomover, também acabou a sua
possibilidade de sair daquele lugar e dar uma vida melhor aos três filhos, como
sonhava antes do desastre.
Agora
ela está desempregada e usa todo o dinheiro que ganha do Bolsa Família para
pagar o aluguel e ajudar no tratamento do pai, que tem câncer. Ela teria
direito ao aluguel social, mas diz que um erro do sistema impediu o acesso.
Tampouco recebeu alguma promessa de casa nova.
“Me
falaram para entrar na Defensoria Pública, mas tenho depressão, não tenho mais
nervo e saúde para lidar com tudo isso”, relata. “Minha vida era difícil, mas
bem ou mal dava para viver. Tudo seria muito mais fácil se pelo menos a gente
tivesse uma casa para voltar.”
• Sem
opções, atingidos voltam a morar em imóveis condenados
A
casa de Angelita Flor de Aguiar, também vizinha, não desabou, mas sofreu danos
estruturais graves. Os sarrafos apodreceram e podem cair a qualquer momento. As
paredes têm rachaduras profundas. Ainda assim, ela foi obrigada a voltar a
viver no local. Ela diz que iria para qualquer outro lugar se tivesse ajuda,
mas não tem dinheiro. Os R$ 5,1 mil do Auxílio Reconstrução foram usados
integralmente para consertar o teto da sua casa.
Aguiar
tinha um cachorro. Na correria para deixar a casa quando a água já estava em
sua cintura, ela o colocou no teto, esperando que assim estaria a salvo e que
poderia voltar para resgatá-lo no dia seguinte. Não imaginava que a enchente
seria tão demorada. Quando as primeiras equipes de resgatistas começaram a
buscar sobreviventes, ela pediu que procurassem o cachorro, mas não houve
sucesso. Quando a água finalmente baixou, ela o encontrou caído no chão da
sala. “Deve ter passado dias nadando, até não conseguir mais”, ela diz.
As
frequentes enchentes fizeram com que Aguiar tivesse que remobiliar a casa,
muito simples, várias vezes. Já está acostumada. Mas a água não leva somente os
bens materiais, mas também as memórias, como álbuns de fotografia. “Não tenho
mais as lembranças dos meus quatro filhos. Ficou tudo só na minha cabeça”, diz.
Fátima
Velasquez, que mora e tem um bar com o marido próximo de onde estourou um dique
em Sarandi, arriscou a vida para salvar um objeto que preenchia o seu coração:
uma bota de cano alto, que havia economizado por meses e comprado poucos dias
antes do desastre.
Ela
foi para a casa de um vizinho que tem três andares. Estaria segura, mas se
lembrou da bota e decidiu voltar para buscar. Foi nadando em meio à violência
da correnteza, com medo de se eletrocutar nas caixas de luz que foram
arrancadas. Quando entrou em casa, o movimento das águas formou um redemoinho
que levou a geladeira para a porta de entrada, bloqueando a saída. O marido
percebeu que havia algo de estranho e conseguiu tirá-la de lá. Hoje, o casal
trabalha para reabrir o bar no mesmo local de antes. “Mas já usei a bota em um
baile”, ri.
Algo
parecido aconteceu com Gisele Ribeiro, moradora da Ilha da Pintada, outro local
bastante afetado pela enchente em Porto Alegre. Ela e o companheiro se
refugiaram num local alto, mas lembraram que deixaram o dinheiro que tinham –
ela, de diárias como faxineira, e ele como catador de recicláveis – em uma
latinha dentro de casa. Ela voltou nadando e mergulhou para procurar a lata.
Tiveram que resgatá-la de barco, arrancando o telhado da casa, porque já não
era possível abrir as portas e janelas pela força da correnteza. Mas pegou a
latinha.
Ribeiro
recebeu doações, mas mantém quase todas dentro de suas caixas, para ser mais
fácil de carregar caso venha uma nova enchente. Ela ainda está morando na mesma
casa. Sabe que está num local que demora a receber atenção do poder público. A
rua de sua casa estava sendo limpa pela prefeitura apenas no dia da visita da
reportagem, mais de quatro meses depois.
Fonte:
Por Amanda Audi, Gregório Mascarenhas, Sílvia Lisboa, Matinal Jornalismo, em
Agencia Pública
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