'Não
ensinam isso na escola': como jovens da periferia apostam nas 'soft skills'
para impulsionar carreira
As
chamadas soft skills — ou, em uma tradução para o português, "habilidades
socioemocionais" — tornaram-se um fator importante para quem está tentando
entrar no mercado de trabalho.
Em
alguns casos, na hora de contratar, as empresas levam esses elementos mais em
conta do que a competência técnica dos candidatos.
Mas
como fica o jovem pobre, morador de regiões periféricas, com poucas
oportunidades de educação e que pouco teve contato com uma formação específica
em habilidades como "resolução de problemas", "resiliência
emocional", "adaptabilidade" e "comunicação efetiva"?
Nos
últimos dias, a BBC News Brasil ouviu especialistas em capacitação e jovens das
periferias do Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará para entender como eles estão
superando algumas dessas barreiras sociais que dificultam a entrada no mercado
de trabalho.
A
faixa etária entre 18 e 24 anos representa 30% dos 7,5 milhões de desempregados
no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) relativos ao segundo trimestre de 2024.
No
total, são 2,2 milhões de pessoas sem trabalho nessa camada — 6,9% da população
brasileira está desempregada.
"Para
mim, a chave mais importante foi aprender como me comunicar melhor, como não
ficar nervoso na entrevista, como usar as mãos para passar mais segurança
quando falo sobre minhas ideias", explica o estudante universitário Victor
Rodrigheri, de 20 anos, criado em Caçapava, no interior de São Paulo, e hoje
morador do Jardim Bonfiglioli, periferia da Zona Oeste paulistana.
Rodrigheri
fez o ensino fundamental em uma escola pública. Quando terminou o ensino médio
— ele tinha bolsa em um colégio particular —, precisava de um emprego para se
manter e continuar os estudos.
Mas
uma barreira o atrapalhava na hora da disputa por uma vaga de trabalho:
"Eu
era uma pessoa muito tímida, e tinha muita dificuldade em me expressar. Então,
fazer uma entrevista de emprego, ou falar em público, era uma coisa muito
difícil. E isso não é algo que ensinam na escola", diz.
Para
tentar resolver o problema, o jovem então se inscreveu em um programa de
capacitação profissional da Fundação Wadhwani, uma organização sem fins
lucrativos criada pelo bilionário indiano-americano Romesh Wadhwani.
Depois
do curso, Rodrigheri passou em sua primeira entrevista de emprego em uma
fábrica. E, no início deste ano, entrou em História na Universidade de São
Paulo (USP).
"Hoje
vejo que essas habilidades me ajudam até na universidade, como quando falo com
um professor ou na hora de apresentar um trabalho", diz ele, que pretende
seguir carreira acadêmica e se tornar professor.
• O que
são 'soft skills'
Em
atuação no Brasil desde 2020, a Fundação Wadhwani faz parcerias com escolas e
entidades de ensino locais para dar cursos de capacitação em soft skills a
jovens periféricos de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
"Soft
skills são habilidades de comunicação, resolução de problemas, trabalho em
equipe, pensamento crítico e mentalidade empreendedora", resume Thiago
Françoso, vice-presidente da fundação no Brasil.
"O
que escutamos dos empregadores é que, muitas vezes, o jovem da periferia chega
bem preparado, com curso técnico e outras qualificações, mas tem dificuldades
básicas, como escrever um e-mail e se expressar em uma reunião."
Uma
pesquisa da Fundação Wadhwani com mais de 200 empresas de vários países apontou
que as soft skills têm uma importância relativa de 45% na hora da contratação,
frente aos 55% das habilidades técnicas.
No
Brasil, a "comunicação" foi apontada por 84% dos empregadores ouvidos
como a habilidade essencial de um candidato a uma vaga — 44% também falaram em
"resiliência"; 40% em "trabalho em equipe"; 32% disseram
considerar a qualidade do "atendimento ao cliente"; e 24% citaram
"liderança" e "responsabilidade".
"Em
nossos cursos, ensinamos desde o básico, que é escrever um email e o tom de voz
no trabalho, até a gestão de emoções como o estresse em um ambiente
competitivo", explica Françoso.
• Como
ser mais criativo
A
BBC News Brasil ouviu outras duas jovens de periferias sobre suas experiências
com o aprendizado das soft skills.
A
estudante Ana Lívia Marques, de 20 anos, também moradora de Caçapava, acredita
que aprender a se comunicar melhor com o público foi fundamental para conseguir
o estágio na recepção de um consultório médico da cidade.
"Tento
mostrar para o cliente que sou o elo entre ele e a empresa. E que estou
disposta a entender a demanda e encontrar a melhor forma de resolvê-la",
diz Ana Lívia, que sempre estudou em escolas públicas e também participou de um
programa de formação da Fundação Wadhwani.
Técnica
em Administração, a jovem pretende continuar atuando na área por um período.
Mas sonha em trabalhar com saúde e tecnologia no esporte.
"Penso
em me formar em biotecnologia para trabalhar com vôlei, que pratiquei quando
era mais jovem e é meu esporte preferido. O vôlei foi muito importante na minha
vida, por ser um esporte coletivo em que todas as pessoas são
importantes", diz ela.
Para
Ana Clara Mendes, de 20 anos, do bairro Deodoro, periferia da Zona Norte
carioca, organizar as próprias ideias e colocá-las em prática são habilidades
que ela está desenvolvendo em um curso de capacitação do Coletivo Aprendiz.
O
programa, que oferece formação em habilidades socioemocionais para jovens
periféricos do Rio de Janeiro, Vitória e São Paulo, é um dos braços
educacionais da ONG Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento
Sustentável (Cieds).
"Me
acho uma pessoa criativa, mas penso demais, elaboro demais e, às vezes, não
consigo tirar do papel. Meu professor sempre me fala: 'Ana, muito boa essa sua
ideia, mas como você pode ser mais dinâmica para fazer tudo funcionar?'",
conta Mendes, que recentemente conseguiu uma vaga como menor aprendiz em uma
empresa de saneamento.
Ela
diz que a proximidade entre sua casa e o trabalho (cerca de 30 minutos de
ônibus) foi um dos pontos que facilitaram sua contratação.
"Muitas
vezes, quando você mora em um bairro da periferia, não te contratam porque a
empresa terá mais custos com transporte. E, se você mora a duas horas do
trabalho, precisa acordar quatro horas antes para se arrumar. E ainda tem o
ônibus que demora, trânsito… Você pode chegar atrasada, e ainda tem mais sete
horas de trabalho… E depois mais duas horas no ônibus voltando para casa. É uma
rotina muito difícil."
Ana
Clara era atleta de judô até os 18 anos, quando sofreu uma contusão no joelho e
precisou abandonar as competições. "Sempre achei que seria uma atleta
profissional. Mas, de repente, veio esse baque. Então precisei pensar: 'e
agora, o que vou fazer da vida?'"
Mesmo
longe do judô, ela ainda pretende trabalhar com o esporte. "Comecei como
menor aprendiz com o objetivo de pagar meus estudos em educação física. Quero
trabalhar com atletas de alto rendimento. Quero fazer mestrado, doutorado. Esse
é meu sonho, vou conseguir", diz.
• 'Duplo
foco'
Mas
o quanto as habilidades socioemocionais realmente fazem a diferença na
trajetória de um estudante?
A
cidade de Sobral, no Ceará, um dos municípios brasileiros com nota mais alta no
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), decidiu tornar as soft
skills parte do currículo dos 35 mil alunos do ensino fundamental.
Com
auxílio do Instituto Ayrton Senna, que realizou pesquisas acadêmicas e ajudou
na elaboração do projeto, a prefeitura criou uma nova carreira no ensino
municipal: a de psicólogo.
Em
2017, momento em que a cidade vivia uma onda de violência em bairros
periféricos, cada uma das 90 escolas recebeu um profissional — eles foram
contratados por meio de um concurso público.
"Mesmo
com ótimos indicadores, percebemos que faltava aos nossos alunos uma formação
mais cidadã", explica Herbert Lima, secretário de Educação de Sobral.
O
psicólogo passou a auxiliar os professores durante as aulas. "Trabalhamos
com um duplo foco. O professor desenvolve os conteúdos das aulas, como a
leitura ou matemática, junto a competências socioemocionais, como tolerância,
empatia e respeito", diz Lima.
Segundo
o secretário, o projeto produziu um aumento das notas do município em
avaliações do ensino, como o Ideb, mas também uma "melhora na relação
entre alunos e professores".
Uma
dessas psicólogas é Bruna Pereira Farias, que passou a trabalhar em uma escola
de Sobral em 2021.
"Nós
tínhamos os melhores índices de educação do Brasil, mas estávamos perdendo
nossos jovens para a violência. Então, um dos nossos desafios é trabalhar o
aluno em diferentes situações, não apenas na escola, mas também no território,
em questões culturais e sociais. Eles precisam aprender a conviver entre si.
Fazemos muitas rodas de conversas", diz a psicóloga.
"O
aluno não é só um resultado. Ele precisa estar bem emocionalmente para se
desenvolver em outras áreas. E a escola precisa ser acolhedora, ter pessoas
disponíveis a ouvir o aluno e ajudá-lo a ter um projeto de vida", diz
Bruna.
Ela
cita um exemplo do uso das soft skills em sala. "Em uma aula sobre mapas
de rios, abordamos tanto a questão geográfica, como a situação social dos
ribeirinhos, o contexto cultural da região e a importância de se preservar
aquele meio ambiente. O objetivo é que o aluno entenda as questões sociais
envolvidas, criando empatia e cidadania", diz.
• Autoestima
e pertencimento
Mas
o jovem da periferia é menos preparado para assumir cargos em empresas do que
os concorrentes?
O
economista Vandre Brilhante, presidente do Cieds, acredita justamente no
contrário disso.
"Nossa
experiência mostra que, comparativamente, o jovem do asfalto, da comunidade,
costuma se destacar mais nas empresas quando tem oportunidades".
Ele
cita alguns motivos:
"O
jovem da periferia tem um potencial muito maior do que o da classe média. Ele
tem mais habilidade para resolver conflitos, porque faz isso desde criança na
comunidade, tendo de tomar decisões sozinho. Não foi criado em um condomínio
fechado, com os pais ali o tempo todo para socorrê-lo. Ele tem essa vivência da
rua, de quem sabe se virar diante dos desafios", diz.
"Outro
fator é a força de vontade. Quem vem da periferia costuma se agarrar mais à
oportunidade, porque muitas vezes ela é a única da vida. O jovem da Zona Sul do
Rio, da classe média, sabe que se ele sair da empresa, não terá muita
dificuldade de conseguir outro emprego, pois sempre teve muitas
oportunidades", explica.
Segundo
Brilhante, um empecilho para o jovem periférico é a autoestima. "Quem vem
da periferia tem dificuldade de enxergar o próprio potencial e receio de
frequentar espaços de outras regiões mais ricas, porque não se vê como parte
daquele lugar. Em nossos cursos, a gente sempre tenta fazer com que ele pense:
'eu pertenço a esse lugar, e esse lugar me pertence'".
Fonte:
BBC News Brasil
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