Samir
Gadesha: Profetas do engano
Não
pode haver dúvidas hoje de que, após um longo período de dormência, elementos
autoritários e, às vezes, francamente fascistas retornaram à vida pública com
força total. Voltaram não apenas por toda a Europa, Reino Unido e Estados
Unidos, mas globalmente, mais notavelmente na Turquia, Índia e Brasil. A imagem
visualmente mais chocante de tal retorno são os centros de detenção de
migrantes que se espalham pelo sul da Europa. Mais notórios, são os
“acolhimentos” de crianças centro-americanas negligenciadas e aterrorizadas,
supostamente sujeitas a abusos psíquicos e sexuais, nos campos de concentração
na fronteira sul dos Estados Unidos com o México.
No
entanto, o fascismo atual, em grande parte, não assume a forma de um movimento
de massa voltado para a derrubada violenta da democracia e para a instalação de
um estado de partido único que encarcera e liquida os seus “inimigos”. Em vez
disso, ele produz uma erosão gradual, mas constante, das instituições da ordem
liberal-democrática, as quais consistem, entre outros, do Estado de direito, da
separação de poderes e, em particular, da independência do poder judiciário, da
liberdade de imprensa e do direito de discordar. Tomadas em conjunto, essa
erosão produz aquilo que foi chamado por defensores e críticos de “democracia
iliberal”.
Contra
o fundo de crises sociais e econômicas, essa democracia iliberal vem sendo
constituída por líderes supostamente fortes. Eis que eles pretendem expressar a
vontade de uma “comunidade” etnonacionalista que se encontra supostamente
cercada tanto por uma “enchente” de imigrantes pobres quanto por uma lógica
nefasta e abstrata introduzida pelas finanças. Ocasionalmente, quando apontam
para figuras como George Soros, essas duas forças se lhes afiguram como
conjugadas; eis que, nesse caso, em uma chave paranoica, parece-lhes que atuam
em cumplicidade secreta.
O
atual retorno de elementos fascistas à política no contexto do capitalismo
neoliberal, ou seja, numa ordem social em que o Estado se tornou totalmente
mercantilizado, na qual a figura do homo politicus foi
eclipsada pelo homo economicus, requer alguma explicação.
Como
Michel Foucault mostrou em suas palestras sobre biopolítica no final da década
de 1970, uma das correntes dominantes no pensamento econômico da recém-formada
República Federal da Alemanha era a doutrina do ordoliberalismo. Sustentada
pela Escola de Freiburg, ela argumentava que a maneira mais eficaz de impedir o
retorno do estado autoritário consistia em dar força à racionalidade inerente
ao mercado; eis que isso permitiria – numa espécie de keynesianismo invertido –
limitar e regular o poder do Estado. Ora, como foi possível então que, ao invés
de prevenir o autoritarismo, o neoliberalismo tenha de fato criado um ambiente
favorável para que ele se enraizasse e florescesse na sociedade?
Uma
maneira de explicar a relação entre autoritarismo e neoliberalismo encontra-se
no ensaio Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista, de
Theodor W. Adorno. Embora haja agora uma verdadeira “indústria acadêmica” de
estudos sobre Donald Trump e sobre autoritarismo político, eles amplamente
falham, na minha opinião, em tratar do problema maior da “vida especificamente
danificada” produzida pela sociedade neoliberal. A razão para isso é que eles
se concentram muito no próprio Donald Trump – e em figuras como ele – enquanto
ignoram as condições socioeconômicas que tornam tais figuras tão atraentes para
uma proporção significativa do eleitorado. É precisamente por isso que a
síntese de Theodor Adorno das perspectivas socioeconômicas e sociopsicológicas
é tão apropriada e oportuna.
Na Teoria
freudiana, Theodor Adorno se envolve principalmente com dois textos: o
primeiro é Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores
norte-americanos, publicado em 1949, de Löwenthal e Guterman; e o segundo
é Psicologia das massas e a análise do eu, de Sigmund Freud,
publicado um ano antes da “marcha sobre Roma” e da tomada do poder na Itália
pelo Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini, em 1922.
O
primeiro representa uma análise de conteúdo dos discursos dos “agitadores” ou
dos demagogos de extrema direita, tais como o padre Coughlin e Gerald Smith.
Löwenthal e Guterman entendem, nesse livro, que eles respondem de um modo
específico a problemas socioeconômicos reais. O segundo busca mostrar como a
orientação do indivíduo pelo princípio de realidade (Freud) pode ser
curto-circuitado por meio da sensação de poder e de segurança proporcionada em
virtude da adesão a um movimento de massa.
Como
“homens modernos [e mulheres] – Adorno glosa aqui Freud – caem em padrões de
comportamento que flagrantemente contradizem o seu próprio interesse racional,
assim como o nível de esclarecimento atual da civilização tecnológica”?
Para
que tal reversão, ou regressão, aconteça, um vínculo social artificial deve ser
criado com base no princípio do prazer; ou seja, “gratificações reais ou
vicárias devem obtidas assim que os indivíduos se rendam à condição de massa”.
Eis que Freud ajuda a explicar algo que a maioria das correntes em psicologia
social apenas descreve: a potencialidade de “descarga” que existe nas “emoções
violentas” e nas “ações violentas”. A natureza particular do vínculo social de
massa, na visão de Freud, permite ao indivíduo livrar-se da “repressão de seus
instintos inconscientes”.
Na
medida em que Freud aponta para a interpenetração do arcaico e do moderno, dos
elementos míticos e dos elementos iluministas examinados pela psicologia
social, ele antecipa o argumento da Dialética do Esclarecimento. O
mito arcaico e o iluminismo moderno convergem na ideia de sacrifício. A
principal diferença é que o processo de esclarecimento por meio do desencanto e
da racionalização envolve uma crescente “introjeção” ou internalização do
sacrifício entendido como “autorrenúncia” ou repressão. Isso significa que,
para sobreviver, o indivíduo deve se ajustar a imperativos externos e, como
resultado, precisa renunciar à aspiração à felicidade ou à realização sensual.
Portanto,
é o processo civilizador, ou seja, a “segunda natureza”, que produz a revolta
da “primeira natureza”. Nas últimas décadas, como se sabe, o relato
supostamente “negativo” de Freud sobre a repressão foi desafiado por figuras
como Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Felix Guattari.
Em
nenhum lugar esse relato foi tão fortemente criticado quanto no primeiro
volume, introdutório, de A história da sexualidade. Aí, Foucault
critica a “hipótese repressiva” de Freud como se fosse apenas um relato
puramente negativo do poder. Eis que esse segundo autor postula que forças
sociais e históricas restringem a expressão dos “instintos” de uma posição que
lhes é exterior. Tira daí, ademais, que um ato de resistência exige “nada
menos que uma transgressão às leis, um levantamento de proibições, uma irrupção
da fala, uma reintegração do prazer dentro da realidade e uma economia
totalmente nova nos mecanismos de poder.”
Theodor
Adorno, em contraste, mostra a maneira pela qual o próprio relato de Freud
sobre a repressão é muito mais sutil do que isso, pois ele envolve a
interpenetração e o condicionamento mútuo da natureza e da história na própria
operação das agências psíquicas. Como Adorno sugere em sua glosa de A
civilização e os seus descontentes: “enquanto uma rebelião contra a
civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas a sua
reprodução na e pela própria civilização”.
Retomando
a questão da natureza da relação social, parece duvidoso que um vínculo
fundamentado na libido possa fornecer uma explicação convincente do nazismo,
dando sustentação à tese de que Hitler substitui o pai amoroso por um pai
ameaçador e punitivo. Embora possa haver uma conexão com a concepção de Freud
do pai primordial em Totem e Tabu, é necessário explicar a natureza
e o conteúdo da propaganda fascista que visa deliberadamente reativar a
“herança arcaica” do indivíduo. Eis que essa herança é fabricada e
constantemente reforçada.
Se
sob condições modernas nas quais o princípio orientador da vida pública é o
individualismo, como é que os indivíduos podem ser induzidos a renunciar à sua
própria individualidade e, com isso, aos seus interesses racionais, incluindo,
em casos extremos, até mesmo o seu interesse na própria autopreservação? Esta é
uma questão que se torna especialmente pertinente sob as condições extremamente
individualistas da ordem neoliberal. A questão é: como as pessoas se tornam uma
massa? A resposta que Adorno fornece, com base em Freud, é que isso acontece
por meio do mecanismo de identificação.
Com
base no trabalho de Erik H. Erikson, Theodor Adorno sugere que o agitador
parece ser a “ampliação” da própria personalidade do sujeito. Como se sabe, a
imagem do pai e de sua autoridade já havia começado a esmaecer
significativamente no período entre as duas grandes guerras. Portanto, os
líderes fascistas contemporâneos não são simplesmente manifestações de uma
imagem ambivalente do pai ou do chefe dominador da “horda primitiva”. Eles não
estabelecem um monopólio sobre as mulheres por meio da ameaça de violência,
pois, em vez disso, configuram-se, tal como apontou Adorno, como
“pequenos-grandes homens”.
O
processo de identificação é inextricável do processo da idealização. Em Profetas
do engano, os autores enfatizam a maneira como o agitador explora os afetos
negativos de seus seguidores. Löwenthal e Guterman argumentam que “ao contrário
do defensor usual da mudança social, o agitador, ao explorar um estado de
descontentamento, não tenta definir a natureza desse descontentamento por meio
de conceitos racionais.
Em
vez disso, ele aumenta a desorientação de seu público destruindo todos os
marcos racionais e propondo que eles adotem modos de comportamento
aparentemente espontâneos.” Adorno explica mais especificamente como essas
frustrações e ansiedades surgem e como a propaganda fascista as exploram
promovendo a identificação por meio de um processo de idealização.
Ao
apresentar o cerne de seu argumento, Theodor Adorno sugere que a frustração
decorre do “conflito moderno característico entre uma agência do ego, racional
e de autopreservação, fortemente desenvolvida, e a falha contínua em satisfazer
as próprias demandas desse ego”. Em outras palavras, os conflitos decorrem da
contradição que está no cerne da sociedade burguesa ou liberal-democrática
entre o ideal político de autonomia individual ou autodeterminação por meio de
instituições democráticas, por um lado, e uma concepção puramente negativa de
liberdade que caracteriza as relações capitalistas de produção, por outro.
Como
Adorno, de modo presciente, sugere em Dialética negativa: “Quanto
mais liberdade o sujeito – e a comunidade de sujeitos – pensa ter, maior se
torna a sua responsabilidade; mas, diante dessa carga, ele falhará em sua vida
burguesa cotidiana, pois, na prática, esta nunca lhe proporcionou aquela
autonomia integral que lhe parece ter concedido em teoria. É por causa disso
que esse sujeito assumira a culpa dos fracassos”.
Como
resultado dessa contradição entre a idealidade e a realidade da liberdade, a
promessa e o fracasso em realizar uma vida com autodeterminação, o indivíduo
experimenta frustração e descontentamento. E eles resultam de seu próprio ego
ideal ou senso idealizado de si mesmo, muitas vezes derivado da imago de um dos
pais. Tal conflito constitui um aspecto fundamental da “vida danificada” das
sociedades capitalistas tardias, cuja anatomia Theodor Adorno expõe em Mínima
Moralia.
“Esse
conflito”, argumenta Theodor Adorno, “resulta em fortes impulsos narcisistas
que podem ser absorvidos e satisfeitos apenas por meio da idealização como a
transferência parcial da libido narcisista para o objeto”. A adulação e o amor
coletivos do líder são a maneira pela qual os sujeitos modernos frustrados
superam suas autoimagens negativas resultantes da falha em aproximar seu ideal
de ego – a lacuna entre o ego e o ideal do ego se torna, em outras palavras,
insuportável.
A
aura sedutora de onipotência do líder, portanto, deve menos à “herança arcaica”
do pai primordial e mais ao investimento narcisista do indivíduo na
coletividade homogênea como resultado dessa falha.
Para
que tal identificação coletiva por meio da idealização seja bem-sucedida, o
líder deve ser “absolutamente narcisista”, isto é, alguém que é amado, mas que
não ama em troca. É isso que explica o desinteresse do agitador – em contraste
com o revolucionário e o reformador – em apresentar um programa político
positivo delineando propostas políticas concretas, tal como Löwenthal e
Guterman apontam. No lugar deste último, o que sugeriria alguma preocupação
mínima com as necessidades dos seguidores, há apenas o “programa paradoxal de
ameaça e negação”.
Ao
mesmo tempo, o líder incorpora uma contradição já que parece ser, por um lado,
uma figura super-humana e, por outro, uma pessoa comum. E isso Adorno apresenta
de forma memorável, referindo-se a Adolf Hitler; ele não passa de “uma mistura
de King Kong com um barbeiro suburbano”. Isso é essencial para entender a
estrutura psicológica sedutora do fascismo: pois, essas duas dimensões, retidas
por eles, refletem uma divisão existente nos próprios egos narcisistas dos
seguidores – um lado se liga a “King Kong” e o outro ao “barbeiro suburbano”.
É
assim que o líder representa os seguidores de forma ampliada. A propaganda
fascista é construída em torno do conceito básico do “‘pequeo-grande homem’,
uma pessoa que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que ele é apenas mais
um do povo, um cara simples, de sangue vermelho e imaculado.”
É
dessa forma que Theodor Adorno apresenta o conceito norteador da “personalidade
autoritária”: aquele tipo de personalidade caracterizado tanto pela
subordinação ao “forte” (barbeiro suburbano) quanto pela dominação sobre o
“fraco” (King Kong). Nisso, a estrutura do caráter social reproduz a
contradição que está no cerne da sociedade burguesa entre a tese da autonomia
ou da liberdade e a prática da heteronomia ou da falta de liberdade.
De
acordo com Adorno, a imagem do “pequeno-grande homem” responde “[ao] desejo
duplo [do seguidor] de se submeter à autoridade e de ser a própria autoridade.
Isso acontece em um mundo no qual o controle irracional é exercido, mesmo se
houve já uma perda da convicção interna, por meio do esclarecimento universal.
As pessoas que obedecem aos ditadores sentem, ademais, que estes últimos são
supérfluos. Eles reconciliam essa contradição por meio da suposição de que eles
próprios são opressores implacáveis”.
Isso
se expressa perfeitamente no lema de Hitler “Verantwortung nach oben,
Autorität nach unten”, ou seja, “responsabilidade com aquele que está em
cima, autoridade com quem está em baixo”. Esse mote, veja-se, expõe a essência
da ambivalência inerente à personalidade autoritária típica, ou seja, ela se
constitui como sadomasoquista. No livro A personalidade autoritária,
Adorno assevera que “a identificação do caráter ‘autoritário’ com a força é
concomitante à rejeição de tudo que está ‘em baixo’.”
Fonte:
Outras Palavras
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