segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Samir Gadesha: Profetas do engano

Não pode haver dúvidas hoje de que, após um longo período de dormência, elementos autoritários e, às vezes, francamente fascistas retornaram à vida pública com força total. Voltaram não apenas por toda a Europa, Reino Unido e Estados Unidos, mas globalmente, mais notavelmente na Turquia, Índia e Brasil. A imagem visualmente mais chocante de tal retorno são os centros de detenção de migrantes que se espalham pelo sul da Europa. Mais notórios, são os “acolhimentos” de crianças centro-americanas negligenciadas e aterrorizadas, supostamente sujeitas a abusos psíquicos e sexuais, nos campos de concentração na fronteira sul dos Estados Unidos com o México.

No entanto, o fascismo atual, em grande parte, não assume a forma de um movimento de massa voltado para a derrubada violenta da democracia e para a instalação de um estado de partido único que encarcera e liquida os seus “inimigos”. Em vez disso, ele produz uma erosão gradual, mas constante, das instituições da ordem liberal-democrática, as quais consistem, entre outros, do Estado de direito, da separação de poderes e, em particular, da independência do poder judiciário, da liberdade de imprensa e do direito de discordar. Tomadas em conjunto, essa erosão produz aquilo que foi chamado por defensores e críticos de “democracia iliberal”.

Contra o fundo de crises sociais e econômicas, essa democracia iliberal vem sendo constituída por líderes supostamente fortes. Eis que eles pretendem expressar a vontade de uma “comunidade” etnonacionalista que se encontra supostamente cercada tanto por uma “enchente” de imigrantes pobres quanto por uma lógica nefasta e abstrata introduzida pelas finanças. Ocasionalmente, quando apontam para figuras como George Soros, essas duas forças se lhes afiguram como conjugadas; eis que, nesse caso, em uma chave paranoica, parece-lhes que atuam em cumplicidade secreta.

O atual retorno de elementos fascistas à política no contexto do capitalismo neoliberal, ou seja, numa ordem social em que o Estado se tornou totalmente mercantilizado, na qual a figura do homo politicus foi eclipsada pelo homo economicus, requer alguma explicação.

Como Michel Foucault mostrou em suas palestras sobre biopolítica no final da década de 1970, uma das correntes dominantes no pensamento econômico da recém-formada República Federal da Alemanha era a doutrina do ordoliberalismo. Sustentada pela Escola de Freiburg, ela argumentava que a maneira mais eficaz de impedir o retorno do estado autoritário consistia em dar força à racionalidade inerente ao mercado; eis que isso permitiria – numa espécie de keynesianismo invertido – limitar e regular o poder do Estado. Ora, como foi possível então que, ao invés de prevenir o autoritarismo, o neoliberalismo tenha de fato criado um ambiente favorável para que ele se enraizasse e florescesse na sociedade?

Uma maneira de explicar a relação entre autoritarismo e neoliberalismo encontra-se no ensaio Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista, de Theodor W. Adorno. Embora haja agora uma verdadeira “indústria acadêmica” de estudos sobre Donald Trump e sobre autoritarismo político, eles amplamente falham, na minha opinião, em tratar do problema maior da “vida especificamente danificada” produzida pela sociedade neoliberal. A razão para isso é que eles se concentram muito no próprio Donald Trump – e em figuras como ele – enquanto ignoram as condições socioeconômicas que tornam tais figuras tão atraentes para uma proporção significativa do eleitorado. É precisamente por isso que a síntese de Theodor Adorno das perspectivas socioeconômicas e sociopsicológicas é tão apropriada e oportuna.

Na Teoria freudiana, Theodor Adorno se envolve principalmente com dois textos: o primeiro é Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores norte-americanos, publicado em 1949, de Löwenthal e Guterman; e o segundo é Psicologia das massas e a análise do eu, de Sigmund Freud, publicado um ano antes da “marcha sobre Roma” e da tomada do poder na Itália pelo Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini, em 1922.

O primeiro representa uma análise de conteúdo dos discursos dos “agitadores” ou dos demagogos de extrema direita, tais como o padre Coughlin e Gerald Smith. Löwenthal e Guterman entendem, nesse livro, que eles respondem de um modo específico a problemas socioeconômicos reais. O segundo busca mostrar como a orientação do indivíduo pelo princípio de realidade (Freud) pode ser curto-circuitado por meio da sensação de poder e de segurança proporcionada em virtude da adesão a um movimento de massa.

Como “homens modernos [e mulheres] – Adorno glosa aqui Freud – caem em padrões de comportamento que flagrantemente contradizem o seu próprio interesse racional, assim como o nível de esclarecimento atual da civilização tecnológica”?

Para que tal reversão, ou regressão, aconteça, um vínculo social artificial deve ser criado com base no princípio do prazer; ou seja, “gratificações reais ou vicárias devem obtidas assim que os indivíduos se rendam à condição de massa”. Eis que Freud ajuda a explicar algo que a maioria das correntes em psicologia social apenas descreve: a potencialidade de “descarga” que existe nas “emoções violentas” e nas “ações violentas”. A natureza particular do vínculo social de massa, na visão de Freud, permite ao indivíduo livrar-se da “repressão de seus instintos inconscientes”.

Na medida em que Freud aponta para a interpenetração do arcaico e do moderno, dos elementos míticos e dos elementos iluministas examinados pela psicologia social, ele antecipa o argumento da Dialética do Esclarecimento. O mito arcaico e o iluminismo moderno convergem na ideia de sacrifício. A principal diferença é que o processo de esclarecimento por meio do desencanto e da racionalização envolve uma crescente “introjeção” ou internalização do sacrifício entendido como “autorrenúncia” ou repressão. Isso significa que, para sobreviver, o indivíduo deve se ajustar a imperativos externos e, como resultado, precisa renunciar à aspiração à felicidade ou à realização sensual.

Portanto, é o processo civilizador, ou seja, a “segunda natureza”, que produz a revolta da “primeira natureza”. Nas últimas décadas, como se sabe, o relato supostamente “negativo” de Freud sobre a repressão foi desafiado por figuras como Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Felix Guattari.

Em nenhum lugar esse relato foi tão fortemente criticado quanto no primeiro volume, introdutório, de A história da sexualidade. Aí, Foucault critica a “hipótese repressiva” de Freud como se fosse apenas um relato puramente negativo do poder. Eis que esse segundo autor postula que forças sociais e históricas restringem a expressão dos “instintos” de uma posição que lhes é exterior.  Tira daí, ademais, que um ato de resistência exige “nada menos que uma transgressão às leis, um levantamento de proibições, uma irrupção da fala, uma reintegração do prazer dentro da realidade e uma economia totalmente nova nos mecanismos de poder.”

Theodor Adorno, em contraste, mostra a maneira pela qual o próprio relato de Freud sobre a repressão é muito mais sutil do que isso, pois ele envolve a interpenetração e o condicionamento mútuo da natureza e da história na própria operação das agências psíquicas. Como Adorno sugere em sua glosa de A civilização e os seus descontentes: “enquanto uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas a sua reprodução na e pela própria civilização”.

Retomando a questão da natureza da relação social, parece duvidoso que um vínculo fundamentado na libido possa fornecer uma explicação convincente do nazismo, dando sustentação à tese de que Hitler substitui o pai amoroso por um pai ameaçador e punitivo. Embora possa haver uma conexão com a concepção de Freud do pai primordial em Totem e Tabu, é necessário explicar a natureza e o conteúdo da propaganda fascista que visa deliberadamente reativar a “herança arcaica” do indivíduo. Eis que essa herança é fabricada e constantemente reforçada.

Se sob condições modernas nas quais o princípio orientador da vida pública é o individualismo, como é que os indivíduos podem ser induzidos a renunciar à sua própria individualidade e, com isso, aos seus interesses racionais, incluindo, em casos extremos, até mesmo o seu interesse na própria autopreservação? Esta é uma questão que se torna especialmente pertinente sob as condições extremamente individualistas da ordem neoliberal. A questão é: como as pessoas se tornam uma massa? A resposta que Adorno fornece, com base em Freud, é que isso acontece por meio do mecanismo de identificação.

Com base no trabalho de Erik H. Erikson, Theodor Adorno sugere que o agitador parece ser a “ampliação” da própria personalidade do sujeito. Como se sabe, a imagem do pai e de sua autoridade já havia começado a esmaecer significativamente no período entre as duas grandes guerras. Portanto, os líderes fascistas contemporâneos não são simplesmente manifestações de uma imagem ambivalente do pai ou do chefe dominador da “horda primitiva”. Eles não estabelecem um monopólio sobre as mulheres por meio da ameaça de violência, pois, em vez disso, configuram-se, tal como apontou Adorno, como “pequenos-grandes homens”.

O processo de identificação é inextricável do processo da idealização. Em Profetas do engano, os autores enfatizam a maneira como o agitador explora os afetos negativos de seus seguidores. Löwenthal e Guterman argumentam que “ao contrário do defensor usual da mudança social, o agitador, ao explorar um estado de descontentamento, não tenta definir a natureza desse descontentamento por meio de conceitos racionais.

Em vez disso, ele aumenta a desorientação de seu público destruindo todos os marcos racionais e propondo que eles adotem modos de comportamento aparentemente espontâneos.” Adorno explica mais especificamente como essas frustrações e ansiedades surgem e como a propaganda fascista as exploram promovendo a identificação por meio de um processo de idealização.

Ao apresentar o cerne de seu argumento, Theodor Adorno sugere que a frustração decorre do “conflito moderno característico entre uma agência do ego, racional e de autopreservação, fortemente desenvolvida, e a falha contínua em satisfazer as próprias demandas desse ego”. Em outras palavras, os conflitos decorrem da contradição que está no cerne da sociedade burguesa ou liberal-democrática entre o ideal político de autonomia individual ou autodeterminação por meio de instituições democráticas, por um lado, e uma concepção puramente negativa de liberdade que caracteriza as relações capitalistas de produção, por outro.

Como Adorno, de modo presciente, sugere em Dialética negativa: “Quanto mais liberdade o sujeito – e a comunidade de sujeitos – pensa ter, maior se torna a sua responsabilidade; mas, diante dessa carga, ele falhará em sua vida burguesa cotidiana, pois, na prática, esta nunca lhe proporcionou aquela autonomia integral que lhe parece ter concedido em teoria. É por causa disso que esse sujeito assumira a culpa dos fracassos”.

Como resultado dessa contradição entre a idealidade e a realidade da liberdade, a promessa e o fracasso em realizar uma vida com autodeterminação, o indivíduo experimenta frustração e descontentamento. E eles resultam de seu próprio ego ideal ou senso idealizado de si mesmo, muitas vezes derivado da imago de um dos pais. Tal conflito constitui um aspecto fundamental da “vida danificada” das sociedades capitalistas tardias, cuja anatomia Theodor Adorno expõe em Mínima Moralia.

“Esse conflito”, argumenta Theodor Adorno, “resulta em fortes impulsos narcisistas que podem ser absorvidos e satisfeitos apenas por meio da idealização como a transferência parcial da libido narcisista para o objeto”. A adulação e o amor coletivos do líder são a maneira pela qual os sujeitos modernos frustrados superam suas autoimagens negativas resultantes da falha em aproximar seu ideal de ego – a lacuna entre o ego e o ideal do ego se torna, em outras palavras, insuportável.

A aura sedutora de onipotência do líder, portanto, deve menos à “herança arcaica” do pai primordial e mais ao investimento narcisista do indivíduo na coletividade homogênea como resultado dessa falha.

Para que tal identificação coletiva por meio da idealização seja bem-sucedida, o líder deve ser “absolutamente narcisista”, isto é, alguém que é amado, mas que não ama em troca. É isso que explica o desinteresse do agitador – em contraste com o revolucionário e o reformador – em apresentar um programa político positivo delineando propostas políticas concretas, tal como Löwenthal e Guterman apontam. No lugar deste último, o que sugeriria alguma preocupação mínima com as necessidades dos seguidores, há apenas o “programa paradoxal de ameaça e negação”.

Ao mesmo tempo, o líder incorpora uma contradição já que parece ser, por um lado, uma figura super-humana e, por outro, uma pessoa comum. E isso Adorno apresenta de forma memorável, referindo-se a Adolf Hitler; ele não passa de “uma mistura de King Kong com um barbeiro suburbano”. Isso é essencial para entender a estrutura psicológica sedutora do fascismo: pois, essas duas dimensões, retidas por eles, refletem uma divisão existente nos próprios egos narcisistas dos seguidores – um lado se liga a “King Kong” e o outro ao “barbeiro suburbano”.

É assim que o líder representa os seguidores de forma ampliada. A propaganda fascista é construída em torno do conceito básico do “‘pequeo-grande homem’, uma pessoa que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um cara simples, de sangue vermelho e imaculado.”

É dessa forma que Theodor Adorno apresenta o conceito norteador da “personalidade autoritária”: aquele tipo de personalidade caracterizado tanto pela subordinação ao “forte” (barbeiro suburbano) quanto pela dominação sobre o “fraco” (King Kong). Nisso, a estrutura do caráter social reproduz a contradição que está no cerne da sociedade burguesa entre a tese da autonomia ou da liberdade e a prática da heteronomia ou da falta de liberdade.

De acordo com Adorno, a imagem do “pequeno-grande homem” responde “[ao] desejo duplo [do seguidor] de se submeter à autoridade e de ser a própria autoridade. Isso acontece em um mundo no qual o controle irracional é exercido, mesmo se houve já uma perda da convicção interna, por meio do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem, ademais, que estes últimos são supérfluos. Eles reconciliam essa contradição por meio da suposição de que eles próprios são opressores implacáveis”.

Isso se expressa perfeitamente no lema de Hitler “Verantwortung nach oben, Autorität nach unten”, ou seja, “responsabilidade com aquele que está em cima, autoridade com quem está em baixo”. Esse mote, veja-se, expõe a essência da ambivalência inerente à personalidade autoritária típica, ou seja, ela se constitui como sadomasoquista. No livro A personalidade autoritária, Adorno assevera que “a identificação do caráter ‘autoritário’ com a força é concomitante à rejeição de tudo que está ‘em baixo’.”

 

Fonte: Outras Palavras

 

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