Emerson
Barros de Aguiar: ‘Narcoestado ou fascismo - para a direita vale tudo, menos a
democracia’
As
organizações criminosas que dominam o tráfico de drogas no Brasil têm por
principal finalidade o lucro. O narcotráfico é adepto do liberalismo econômico,
do livre mercado, da redução do Estado (em particular na segurança pública), da
meritocracia e do total ceticismo em relação à justiça social, sem precisar
lançar mão da usual retórica demagógica da direita, como a defesa de uma pauta
de costumes e de um alegado patriotismo, que, na prática, é traidor,
entreguista e antinacionalista. Em suma, o tráfico é a direita sem filtros.
Tal
qual ocorre com outros grupos econômicos que querem ter seus interesses
representados e defendidos, o tráfico também investe na política. Para além de
sua bancada parlamentar federal não declarada, o negócio das drogas agora
partiu para o domínio dos municípios, através da associação com candidatos a
prefeitos e a vereadores, numa escalada agressiva e espantosa.
As
notícias sobre traficantes negociando cargos, favores e recursos estatais em
troca do acesso de candidatos a territórios em comunidades dominadas por eles,
tornaram-se frequentes. Nada, porém, fora da lógica do sistema capitalista,
dentro do qual tudo tem um preço, inclusive o poder político. No capitalismo,
quem paga mais, leva mais.
Diferente
do que fazem com os maus funcionários públicos por eles coaptados, os
traficantes sequer precisam ir atrás dos políticos de direta, pois são estes
quem os buscam antes com propostas de corrupção. Afinal, ambos partilham dos
mesmos vícios e “princípios” e falam a mesma linguagem. Nada mais capitalista e
característico da direita do que o “toma lá dá cá”. O traficante vende o seu
apoio eleitoral e o ingresso à sua comunidade em troca de cargos públicos
estratégicos, e da interferência em contratos de obras ou de serviços em áreas
por ele dominadas, num intercâmbio de favores que garante às organizações
criminosas a continuidade de suas operações com a cooperação e cumplicidade do
Estado.
Na
ausência estatal, as facções exercem um controle territorial completo,
substituindo o Estado nas funções de segurança e "justiça", o que
torna a entrada de políticos nessas áreas dependente da anuência dos líderes do
tráfico. O controle desses territórios garante às facções um eleitorado cativo
e refém da sua vontade, concedendo-lhes um imenso poder de barganha nas
negociações com políticos e com candidatos.
Nos
narco currais eleitorais os líderes de facções forçam os moradores a votarem
apenas nos candidatos alinhados aos seus interesses, o que se reflete em votos
coagidos e direcionados, pois quem não for autorizado pelo tráfico, não
consegue fazer campanhas.
Além
dos danos mais óbvios à democracia, como a sabotagem do processo eleitoral e o
clientelismo, essa promiscuidade entre o tráfico de entorpecentes e o poder
político põe em xeque o próprio Estado, pois políticos que se beneficiaram do
apoio de facções, evidentemente trabalharão para enfraquecer investigações,
cooptar forças de segurança, e para garantir que os seus cúmplices continuem a
ter liberdade para operar, o que mantém um ciclo vicioso de impunidade e de
corrupção, onde criminosos se tornam cada vez mais poderosos e
influentes.
O
narco coronelismo transforma comunidades vulneráveis em feudos eleitorais, nos
quais interesses políticos e criminais se misturam. Segundo o princípio do
“quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”, políticos eleitos com o apoio
de facções permanecerão sempre sequestrados em relação aos interesses daqueles
que os apoiaram de modo criminoso.
Evidentemente,
essa é uma inquietação apenas para quem se preocupa com cidadania e bem estar
social. Para as oligarquias econômicas, entre as quais também estão os grandes
traficantes, tanto faz o narco Estado ou o Estado policial fascista, desde que
a moeda continue a entrar. Naturalmente, justiça social e democracia são cartas
fora do baralho, pois saem “muito caro”, dentro do seu raciocínio estritamente
monetário, pragmático e fazendário.
As
elites econômicas enxergam o Estado como o balcão de negócios que legitima as
suas operações. Interessa-lhes apenas o seu aspecto cartorial e não a sua
função social. Para os donos do capital, bom é o que lhes traz dinheiro e mau é
tudo o que atrapalhar o seu lucro radical. Ao interferir no negócio dos
vendilhões, Jesus foi mandado para cruz, como malfeitor.
A
interação entre o narcotráfico e os políticos de direita é escandalosa, mas
previsível, dentro da lógica de um sistema econômico que valoriza o lucro acima
da vida humana. Ao priorizar a maximização de ganhos financeiros, o capitalismo
cria um ambiente onde o tráfico de drogas prospera, pois ele é uma das
indústrias mais lucrativas do mundo. Os prejuízos que dá são sanitários,
sociais e humanos. O que significa que não são percebidos e nem considerados
pelos mega ricos. Se fossem econômicos, ao menos para os grandes players do
mercado, ele não existiria mais. Estima-se que o comércio mundial de produtos
ilícitos supere US$ 1 trilhão anualmente, com o tráfico de drogas representando
a maior fatia desse montante.
O
narcotráfico é uma cria do sistema capitalista. Na ausência do Estado e sem
oportunidades legítimas e viáveis de renda e de emprego, os jovens de
comunidades economicamente marginalizadas se tornam presas do tráfico, que os
recruta e alicia.
No
capitalismo selvagem, a corrupção é endêmica, pois é estabelecida por uma
“livre concorrência” que não respeita regras e nem critérios, e para quem a
única fealdade consiste em não ter lucro. Se, por um lado, políticos corruptos
de direita buscam se manter no poder a qualquer custo, por outro, os
traficantes veem na proteção política uma forma de manter as suas atividades
criminosas sob uma maior garantia.
O
traficante considera a si mesmo como um empresário. Embora não adote uma
conduta não socialmente aceita, ele, de fato, comporta-se tecnicamente como
tal. O tráfico, como o empreendimento capitalista de alta performance
financeira que é, é extremamente organizado, com redes de distribuição e
cadeias produtivas comparáveis às das grandes corporações, além de se pautar
pela maximização dos lucros, pela expansão de mercados e pela eliminação da
concorrência.
A
mudança é para quem se preocupa com ela e a deseja. Para os grandes
capitalistas, enfeixados em seus bunkers, está tudo bem. Se a
sociedade e o planeta colapsarem, estão dispostos até a inaugurar colônias no
espaço. Só não se dispõem a melhorar as condições de vida da maioria, ou a
faturar um pouco menos. Contra isso, inclusive, vale tudo. Até mesmo o narco Estado
proposto pelos seus colegas traficantes.
¨
Marçal reflete o apocalíptico espírito da civilização ocidental. Por João Montenegro
O fenômeno Pablo Marçal pode ser explicado
de distintas formas. Procurarei, aqui, trazer um ponto de
vista histórico e fazer uma costura analítica a partir de uma perspectiva
da Economia Política Internacional (EPI), campo do conhecimento que combina economia,
ciências políticas e relações internacionais.
O
aspecto que destaco é que o autodenominado “ex-coach” que concorre à prefeitura
de São Paulo reflete, em essência, o espírito da civilização ocidental
construído a partir da formação dos Estados Unidos e amplamente difundido à
medida que o país foi se firmando como potência hegemônica global, ao longo da
segunda metade do século 20.
Trata-se
de um credo fundamental que combina religião, individualismo e liberdade,
conforme explicou o cientista político norte-americano Samuel Huntington
em Who we are: the challenges to America’s national identity”.
Sustentando
que os EUA são uma nação profundamente religiosa, Huntington afirma que a
cultura protestante – a qual enfatiza o papel do indivíduo na aquisição de
conhecimento de Deus diretamente da Bíblia, sem intermediação da hierarquia
clerical – fez dos americanos o mais individualista dentre os povos de nações
industrializadas, o que guarda uma estreita relação com a força da meritocracia
no país.
“O
sonho americano com o qual todos fomos criados é simples, mas poderoso: se
trabalharmos arduamente e respeitarmos as regras, teremos a oportunidade de ir
tão longe quanto as nossas capacidades divinas nos levarem”, escreve o autor.
Na ausência
de uma estrutura hierárquica rígida como, em geral, havia nos locais de origem
dos imigrantes europeus que colonizaram os EUA, “a realização das oportunidades
dependeria da energia, sistema e perseverança individuais, em resumo, na
capacidade e vontade de trabalhar”, completou Huntington.
Pois
bem: situado sob o guarda-chuva geopolítico e cultural dos EUA, o Brasil também
bebeu dessa fórmula, que encontrou terreno fértil em uma sociedade
historicamente marcada por extremas desigualdades. Mas o credo do self-made
man messiânico ganhou especial força com o crescimento do número de
evangélicos no país, em um contexto de neoliberalização das relações
socioeconômicas e profusão das redes sociais.
Uma
vez que uma enorme massa populacional se vê desamparada pelo Estado, na medida
em que se achatam ou mesmo extinguem mecanismos de seguridade social e direitos
constitucionais básicos em nome de ideais fiscalistas e monetários, parte dela
passa a enxergá-lo como potencial inimigo e a apoiar a ideologia que prepara
seu próprio calvário.
O
que querem os jovens de hoje? Empreender e ser seu próprio CEO. Nada de
“amarras” regulatórias ou trabalhistas impostas por este ente corrupto e
ineficiente que vive de abocanhar as riquezas que geramos via tributos. Afinal,
o caminho para o sucesso está aberto, desde que o Estado não atrapalhe e eu
conte com um bom coach/ influencer para ativar o mindset do
sucesso em mim.
Importa
ter em conta, no entanto, que os EUA – os mesmos que enfiaram o neoliberalismo
goela abaixo da América Latina a partir da década de 80 com o Consenso de
Washington – não renunciam a estratégias nada liberais a fim de garantir
vantagens relativas no sistema internacional.
O
caso mais evidente é a utilização de sua máquina de guerra para, por exemplo,
assegurar a exploração de recursos energéticos em outros países e impedir o
acesso de seus rivais.
Em
paralelo, os EUA mantêm-se, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, como país
emissor da moeda internacional, o que lhes permite controlar a liquidez
internacional e influenciar a divisão internacional do trabalho¹.
Esse
bolo conta com uma cereja, que foi o rompimento unilateral dos EUA, em 1971,
com o acordo de Bretton Woods, pondo fim à paridade fixa entre o dólar e o
ouro. Assim, o valor do dinheiro passou a ser avalizado pelo poder
político-militar dos norte-americanos, arbitrando, pelo movimento competitivo
de sua taxa de juros, o valor de sua e de outras moedas nacionais².
A
exemplo do imperialismo europeu, em meio à instauração da ordem liberal baseada
no padrão libra-ouro, no século 19, as ações “fora das quatro linhas do jogo”
do liberalismo econômico perpetradas pelos estadunidenses compensam, ao menos
parcialmente, os efeitos deletérios do neoliberalismo sobre sua própria
sociedade.
Deixo,
portanto, uma provocação: o que pretende alcançar o Brasil – uma nação
periférica, com elevados níveis de pobreza, insegurança alimentar e
injustiças sociais, desprovida de moeda forte, colonizada por dívida e incapaz
de fiscalizar suas próprias fronteiras de maneira adequada – com os fundamentos
neoliberais, que seguem limitando as ações do Estado em prol dos interesses
nacionais e fomentando o egoísmo e uma ambição descontrolada por bens materiais
em um mundo que atravessa uma crise ambiental sem precedentes?
Estaríamos
dispostos a incorrer em uma aventura imperialista pela América do Sul e o Oeste
Africano para garantir um mínimo de bem-estar social em nosso país? Vale afanar
a riqueza dos outros em benefício próprio, como fez Marçal ao participar de uma
quadrilha de fraude bancária?
Tenhamos
em mente que a festa acabará quando não houver mais água e ar próprios para
consumo humano, o que parece já não ser uma realidade tão distante assim.
Fonte:
Brasil 247/Le Monde
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