segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Emerson Barros de Aguiar: ‘Narcoestado ou fascismo - para a direita vale tudo, menos a democracia’

As organizações criminosas que dominam o tráfico de drogas no Brasil têm por principal finalidade o lucro. O narcotráfico é adepto do liberalismo econômico, do livre mercado, da redução do Estado (em particular na segurança pública), da meritocracia e do total ceticismo em relação à justiça social, sem precisar lançar mão da usual retórica demagógica da direita, como a defesa de uma pauta de costumes e de um alegado patriotismo, que, na prática, é traidor, entreguista e antinacionalista. Em suma, o tráfico é a direita sem filtros.

Tal qual ocorre com outros grupos econômicos que querem ter seus interesses representados e defendidos, o tráfico também investe na política. Para além de sua bancada parlamentar federal não declarada, o negócio das drogas agora partiu para o domínio dos municípios, através da associação com candidatos a prefeitos e a vereadores, numa escalada agressiva e espantosa. 

As notícias sobre traficantes negociando cargos, favores e recursos estatais em troca do acesso de candidatos a territórios em comunidades dominadas por eles, tornaram-se frequentes. Nada, porém, fora da lógica do sistema capitalista, dentro do qual tudo tem um preço, inclusive o poder político. No capitalismo, quem paga mais, leva mais. 

Diferente do que fazem com os maus funcionários públicos por eles coaptados, os traficantes sequer precisam ir atrás dos políticos de direta, pois são estes quem os buscam antes com propostas de corrupção. Afinal, ambos partilham dos mesmos vícios e “princípios” e falam a mesma linguagem. Nada mais capitalista e característico da direita do que o “toma lá dá cá”. O traficante vende o seu apoio eleitoral e o ingresso à sua comunidade em troca de cargos públicos estratégicos, e da interferência em contratos de obras ou de serviços em áreas por ele dominadas, num intercâmbio de favores que garante às organizações criminosas a continuidade de suas operações com a cooperação e cumplicidade do Estado. 

Na ausência estatal, as facções exercem um controle territorial completo, substituindo o Estado nas funções de segurança e "justiça", o que torna a entrada de políticos nessas áreas dependente da anuência dos líderes do tráfico. O controle desses territórios garante às facções um eleitorado cativo e refém da sua vontade, concedendo-lhes um imenso poder de barganha nas negociações com políticos e com candidatos.

Nos narco currais eleitorais os líderes de facções forçam os moradores a votarem apenas nos candidatos alinhados aos seus interesses, o que se reflete em votos coagidos e direcionados, pois quem não for autorizado pelo tráfico, não consegue fazer campanhas. 

Além dos danos mais óbvios à democracia, como a sabotagem do processo eleitoral e o clientelismo, essa promiscuidade entre o tráfico de entorpecentes e o poder político põe em xeque o próprio Estado, pois políticos que se beneficiaram do apoio de facções, evidentemente trabalharão para enfraquecer investigações, cooptar forças de segurança, e para garantir que os seus cúmplices continuem a ter liberdade para operar, o que mantém um ciclo vicioso de impunidade e de corrupção, onde criminosos se tornam cada vez  mais poderosos e influentes. 

O narco coronelismo transforma comunidades vulneráveis em feudos eleitorais, nos quais interesses políticos e criminais se misturam. Segundo o princípio do “quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”, políticos eleitos com o apoio de facções permanecerão sempre sequestrados em relação aos interesses daqueles que os apoiaram de modo criminoso.

Evidentemente, essa é uma inquietação apenas para quem se preocupa com cidadania e bem estar social. Para as oligarquias econômicas, entre as quais também estão os grandes traficantes, tanto faz o narco Estado ou o Estado policial fascista, desde que a moeda continue a entrar. Naturalmente, justiça social e democracia são cartas fora do baralho, pois saem “muito caro”, dentro do seu raciocínio estritamente monetário, pragmático e fazendário. 

As elites econômicas enxergam o Estado como o balcão de negócios que legitima as suas operações. Interessa-lhes apenas o seu aspecto cartorial e não a sua função social. Para os donos do capital, bom é o que lhes traz dinheiro e mau é tudo o que atrapalhar o seu lucro radical. Ao interferir no negócio dos vendilhões, Jesus foi mandado para cruz, como malfeitor. 

A interação entre o narcotráfico e os políticos de direita é escandalosa, mas previsível, dentro da lógica de um sistema econômico que valoriza o lucro acima da vida humana. Ao priorizar a maximização de ganhos financeiros, o capitalismo cria um ambiente onde o tráfico de drogas prospera, pois ele é uma das indústrias mais lucrativas do mundo. Os prejuízos que dá são sanitários, sociais e humanos. O que significa que não são percebidos e nem considerados pelos mega ricos. Se fossem econômicos, ao menos para os grandes players do mercado, ele não existiria mais. Estima-se que o comércio mundial de produtos ilícitos supere US$ 1 trilhão anualmente, com o tráfico de drogas representando a maior fatia desse montante.

O narcotráfico é uma cria do sistema capitalista. Na ausência do Estado e sem oportunidades legítimas e viáveis de renda e de emprego, os jovens de comunidades economicamente marginalizadas se tornam presas do tráfico, que os recruta e alicia. 

No capitalismo selvagem, a corrupção é endêmica, pois é estabelecida por uma “livre concorrência” que não respeita regras e nem critérios, e para quem a única fealdade consiste em não ter lucro. Se, por um lado, políticos corruptos de direita buscam se manter no poder a qualquer custo, por outro, os traficantes veem na proteção política uma forma de manter as suas atividades criminosas sob uma maior garantia. 

O traficante considera a si mesmo como um empresário. Embora não adote uma conduta não socialmente aceita, ele, de fato, comporta-se tecnicamente como tal. O tráfico, como o empreendimento capitalista de alta performance financeira que é, é extremamente organizado, com redes de distribuição e cadeias produtivas comparáveis às das grandes corporações, além de se pautar pela maximização dos lucros, pela expansão de mercados e pela eliminação da concorrência. 

A mudança é para quem se preocupa com ela e a deseja. Para os grandes capitalistas, enfeixados em seus bunkers, está tudo bem. Se a sociedade e o planeta colapsarem, estão dispostos até a inaugurar colônias no espaço. Só não se dispõem a melhorar as condições de vida da maioria, ou a faturar um pouco menos. Contra isso, inclusive, vale tudo. Até mesmo o narco Estado proposto pelos seus colegas traficantes.

 

¨      Marçal reflete o apocalíptico espírito da civilização ocidental. Por João Montenegro

O fenômeno Pablo Marçal pode ser explicado de distintas formas. Procurarei, aqui, trazer um ponto de vista histórico e fazer uma costura analítica a partir de uma perspectiva da Economia Política Internacional (EPI), campo do conhecimento que combina economia, ciências políticas e relações internacionais.

O aspecto que destaco é que o autodenominado “ex-coach” que concorre à prefeitura de São Paulo reflete, em essência, o espírito da civilização ocidental construído a partir da formação dos Estados Unidos e amplamente difundido à medida que o país foi se firmando como potência hegemônica global, ao longo da segunda metade do século 20.

Trata-se de um credo fundamental que combina religião, individualismo e liberdade, conforme explicou o cientista político norte-americano Samuel Huntington em Who we are: the challenges to America’s national identity”.

Sustentando que os EUA são uma nação profundamente religiosa, Huntington afirma que a cultura protestante – a qual enfatiza o papel do indivíduo na aquisição de conhecimento de Deus diretamente da Bíblia, sem intermediação da hierarquia clerical – fez dos americanos o mais individualista dentre os povos de nações industrializadas, o que guarda uma estreita relação com a força da meritocracia no país.

“O sonho americano com o qual todos fomos criados é simples, mas poderoso: se trabalharmos arduamente e respeitarmos as regras, teremos a oportunidade de ir tão longe quanto as nossas capacidades divinas nos levarem”, escreve o autor.

Na ausência de uma estrutura hierárquica rígida como, em geral, havia nos locais de origem dos imigrantes europeus que colonizaram os EUA, “a realização das oportunidades dependeria da energia, sistema e perseverança individuais, em resumo, na capacidade e vontade de trabalhar”, completou Huntington.

Pois bem: situado sob o guarda-chuva geopolítico e cultural dos EUA, o Brasil também bebeu dessa fórmula, que encontrou terreno fértil em uma sociedade historicamente marcada por extremas desigualdades. Mas o credo do self-made man messiânico ganhou especial força com o crescimento do número de evangélicos no país, em um contexto de neoliberalização das relações socioeconômicas e profusão das redes sociais.

Uma vez que uma enorme massa populacional se vê desamparada pelo Estado, na medida em que se achatam ou mesmo extinguem mecanismos de seguridade social e direitos constitucionais básicos em nome de ideais fiscalistas e monetários, parte dela passa a enxergá-lo como potencial inimigo e a apoiar a ideologia que prepara seu próprio calvário.

O que querem os jovens de hoje? Empreender e ser seu próprio CEO. Nada de “amarras” regulatórias ou trabalhistas impostas por este ente corrupto e ineficiente que vive de abocanhar as riquezas que geramos via tributos. Afinal, o caminho para o sucesso está aberto, desde que o Estado não atrapalhe e eu conte com um bom coach/ influencer para ativar o mindset do sucesso em mim.

Importa ter em conta, no entanto, que os EUA – os mesmos que enfiaram o neoliberalismo goela abaixo da América Latina a partir da década de 80 com o Consenso de Washington – não renunciam a estratégias nada liberais a fim de garantir vantagens relativas no sistema internacional.

O caso mais evidente é a utilização de sua máquina de guerra para, por exemplo, assegurar a exploração de recursos energéticos em outros países e impedir o acesso de seus rivais.

Em paralelo, os EUA mantêm-se, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, como país emissor da moeda internacional, o que lhes permite controlar a liquidez internacional e influenciar a divisão internacional do trabalho¹.

Esse bolo conta com uma cereja, que foi o rompimento unilateral dos EUA, em 1971, com o acordo de Bretton Woods, pondo fim à paridade fixa entre o dólar e o ouro. Assim, o valor do dinheiro passou a ser avalizado pelo poder político-militar dos norte-americanos, arbitrando, pelo movimento competitivo de sua taxa de juros, o valor de sua e de outras moedas nacionais².

A exemplo do imperialismo europeu, em meio à instauração da ordem liberal baseada no padrão libra-ouro, no século 19, as ações “fora das quatro linhas do jogo” do liberalismo econômico perpetradas pelos estadunidenses compensam, ao menos parcialmente, os efeitos deletérios do neoliberalismo sobre sua própria sociedade.

Deixo, portanto, uma provocação: o que pretende alcançar o Brasil – uma nação periférica,  com elevados níveis de pobreza, insegurança alimentar e injustiças sociais, desprovida de moeda forte, colonizada por dívida e incapaz de fiscalizar suas próprias fronteiras de maneira adequada – com os fundamentos neoliberais, que seguem limitando as ações do Estado em prol dos interesses nacionais e fomentando o egoísmo e uma ambição descontrolada por bens materiais em um mundo que atravessa uma crise ambiental sem precedentes?

Estaríamos dispostos a incorrer em uma aventura imperialista pela América do Sul e o Oeste Africano para garantir um mínimo de bem-estar social em nosso país? Vale afanar a riqueza dos outros em benefício próprio, como fez Marçal ao participar de uma quadrilha de fraude bancária?

Tenhamos em mente que a festa acabará quando não houver mais água e ar próprios para consumo humano, o que parece já não ser uma realidade tão distante assim.

 

Fonte: Brasil 247/Le Monde

 

Nenhum comentário: