Por que Brasil importa cadáveres para treinar
harmonização facial
O uso de cadáveres
para observação e dissecção é o melhor método para o estudo da anatomia e o
treinamento de habilidades médicas e cirúrgicas.
É o que defendem as
principais instituições de ensino e sociedades médicas ao redor do mundo.
Mas no Brasil, o uso
acadêmico dos corpos pós-óbito não é tão popular, e a decisão de doar o corpo
para ciência ainda não é amplamente abraçada.
➡️ A falta de peças anatômicas é a realidade para maioria das
universidades públicas no país, o que a BBC News Brasil mostrou em uma
reportagem publicada em 2023.
Por isso, a divulgação
de cursos que usam cadáveres ainda frescos para o treinamento de técnicas de
harmonização facial (como aplicação de toxina botulínica e preenchimento com
ácido hialurônico), causou um debate intenso recentemente na rede social Bluesky
(que funciona de forma semelhante ao X).
➡️ O uso foi considerado algo fútil por muitos usuários da rede.
Como faltam corpos para as universidades, mas estão disponíveis para
harmonização facial?
Especialistas ouvidos
pela BBC News Brasil explicam que o treinamento em cadáveres para estética faz
sentido, já que os procedimentos incluem estruturas sensíveis da face.
Além disso, que os
corpos não são provenientes das mesmas fontes das universidades federais — e
por isso, os cursos não estariam competindo com elas por recursos.
➡️ Nos cursos de harmonização facial, não são quaisquer cadáveres,
mas sim corpos ainda frescos por terem passado por uma técnica de congelamento
logo após o óbito, que foram doados em outros países e são importados para o
Brasil.
Chamada de ‘fresh
frozen’, essa é considerada uma alternativa superior à técnica tradicionalmente
usada para conservar os corpos com formol (geralmente usada nas universidades
públicas), porque permite preservar mais as características do corpo humano.
Enquanto substâncias
químicas como o formol degradam parte das estruturas e diminuem a semelhança
com uma pessoa viva, os cadáveres preservados com a técnica fresh frozen ficam
praticamente intactos.
➡️ Quem opta por doar o corpo para a ciência compreende que essa
doação será usada para o estudo de diversas áreas da saúde, abrangendo
estruturas anatômicas, tecidos e sistemas do corpo humano.
Ao fazer essa escolha,
o doador não tem a possibilidade de restringir o uso de seu corpo a uma
disciplina específica, como neurologia, ortopedia ou qualquer outra área.
A legislação
brasileira proíbe a comercialização de cadáveres e partes de corpos. Por isso,
tanto as universidades públicas quanto os cursos de centros privados, como é o
caso dos que oferecem treinamento para harmonização facial, o material usado
deve ser proveniente de doação.
A diferença está no
caminho que esses cadáveres fazem até chegar a uma sala de aula — e também nos
custos que isso implica.
As universidades
públicas que usam cadáveres para aulas os recebem principalmente por meio de
doações voluntárias — quando a pessoa decide ainda em vida que quer dar aquele
destino aos seus restos mortais.
➡️ Em casos menos frequentes, indivíduos que morreram sem
identificação e que não tiveram seus corpos reclamados em até 30 dias também
podem ter seus corpos encaminhados para instituições de ensino.
Nos centros de estudo
que utilizam a técnica de conservação fresh frozen, os corpos são provenientes
principalmente de doações nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, como
a Holanda.
Caso o doador decida
que não quer que seus restos mortais sejam enviados para um país diferente, ele
pode declarar isso na documentação que preenche ao fazer a escolha de doar.
Empresas
especializadas são responsáveis por conectar os doadores às instituições de
ensino interessadas que possuem condições de custear os gastos com a
importação.
Mas ainda que os
cadáveres importados sejam provenientes de doações, o processo de congelamento
e manutenção dos corpos é caro e exige não só cuidados extensivos durante a
importação, mas também um laboratório com câmaras específicas para a
preservação.
Isso se torna uma
barreira para universidades públicas com fundos limitados. Para os cursos
privados, significa que o valor gasto será refletido na matrícula — o que faz
com que não seja acessível para todos.
"Se temos
dificuldade de fazer um programa voluntário de doação e montar uma estrutura
básica de rede para receber os corpos e outras tarefas que são bem mais
baratas, imagine a importação de corpos congelados", disse José Aderval
Aragão, coordenador do Programa de Doação Voluntária de Corpos da UFS
(Universidade Federal de Sergipe), em entrevista à BBC News Brasil.
Ricardo Eustáquio da
Silva, professor de anatomia da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo),
diz que, na instituição, a possibilidade de importar corpos ‘fresh frozen’
sequer chegou a ser cogitada.
"É uma
alternativa muito cara. No passado, países como os Estados Unidos, a Espanha e
o Canadá também passaram pela dificuldade de não ter cadáveres suficientes, mas
isso foi resolvido com a conscientização da população sobre a importância da
utilização de material humano para o ensino dos futuros profissionais da área
da saúde."
A UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais) é a única universidade pública no Brasil que dispõe de
câmaras adequadas para a preservação de corpos.
No entanto, os
cadáveres utilizados pela instituição são provenientes de um programa de doação
já consolidado em Minas Gerais, o que torna desnecessária a importação desses
corpos.
• O treinamento de harmonização em
cadáveres faz sentido?
"Harmonização
facial é uma área que tem crescido exponencialmente em todo o Brasil. E,
logicamente, você precisa treinar, se aperfeiçoar e melhorar o máximo possível
para que tenha a menor chance de erro na hora de tratar o seu paciente",
diz Henrique Barros, presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia.
"Nenhum boneco ou
simulador chega nem perto da veracidade de um treinamento com cadáver fresco.
Ao fazermos alguns procedimentos, ele ainda pode sangrar, é muito similar a um
paciente vivo", complementa.
➡️ A legislação atual prevê que harmonização facial pode ser feita
por médicos dermatologistas, cirurgiões plásticos, dentistas especialistas na
área (ao menos 500 horas de especialização, de acordo com norma do Conselho
Federal de Odontologia), biomédicos e farmacêuticos — ambos com pós-graduação
na área de Saúde Estética reconhecida pelo Ministério da Educação.
''No caso de
procedimentos cosmiátricos invasivos, apenas profissionais com formação em
Medicina devem realizá-los, uma vez que os mesmos oferecem riscos de danos
temporários e permanentes e até óbitos devido às falhas na indicação, na
técnica e por aplicação de procedimentos realizada de modo inseguro'', diz
Heitor de Sá, presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Entre as alternativas
para os profissionais que estão treinando em harmonização facial, destacam-se o
uso de bonecos, modelos digitais 3D, que permitem simulações dos procedimentos,
e o oferecimento de tratamentos a preço de custo para pacientes que aceitam ser
atendidos por profissionais ainda em formação.
Com cadáveres frescos,
defendem os especialistas, o treinamento ajuda os profissionais a terem uma
melhor noção de como preservar as regiões nobres e evitar lesionar tecidos
importantes, como grandes artérias e nervos.
"Embora não seja
possível observar o resultado completo, como o inchaço e a resposta
inflamatória que ocorrem em pacientes vivos, cumpre-se o objetivo de aprender a
localizar as camadas e lacunas corretas e prevenir complicações como necrose ou
embolia", explica Mohamad Abou Wadi, formado em odontologia e parte do
Instituto de Treinamento em Cadáveres.
A dissecação do
cadáver mostra as estruturas anatômicas, como vasos arteriais e venosos, nervos
sensitivos, nervos motores e músculos que, se lesados durante qualquer
procedimento, podem trazer complicações graves.
"No estudo do
cadáver fresco é possível demonstrar o trajeto destas estruturas anatômicas,
assim como o plano de profundidade onde se encontram. Os vasos arteriais e
venosos podem ser injetados com corantes que o destacam, o que permite observar
seus trajetos" descreve Sergio Serpa, médico dermatologista da Sociedade
Brasileira de Dermatologia (SBD) e Professor de Cirurgia Micrográfica da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro).
• Quanto custa um curso com cadáver
fresco?
➡️ O custo dos cursos que utilizam cadáveres ‘fresh frozen’ varia
significativamente.
Um curso de
harmonização facial oferecido por um centro chamado HAC (Human Anatomy Center),
localizado em Bauru e Alphaville (ambas localizações próximas à cidade de São
Paulo), que inclui módulos que passam por temas como teoria e prática de
anatomia de cabeça e pescoço, técnicas anestésicas, histofisiologia (estudo da
estrutura e função dos tecidos), toxina botulínica e mais, custa R$1.500.
Mas o corpo — ou
apenas partes dele — pode ser utilizado em diversas áreas da Medicina, da
Ortopedia à Neurologia, geralmente para profissionais já graduados que querem
aperfeiçoar técnicas cirúrgicas.
"A peça anatômica
é apenas um material didático, e o valor final pode ser influenciado também
pelo prestígio da instituição e o renome do professor que irá ensinar a
técnica. Em alguns casos, a indústria patrocina cursos para médicos, por
exemplo, como forma de divulgar novas técnicas. Considerando esses fatores, os
valores podem variar de R$ 3 mil a R$ 15 mil", diz Mohamad Abou Wadi.
Após os treinamentos,
conta Wadi, o corpo passa por dissecação para que os profissionais possam
analisar erros e acertos, o que contribui para o aprendizado.
"Essa sequência
de uso maximiza o aproveitamento da peça, que só depois desse processo completo
é destinado à incineração."
• A cultura de doação de corpos
O Brasil ainda tem um
caminho longo até que cadáveres se tornem materiais didáticos acessíveis para
profissionais de saúde em formação em diferentes áreas.
"No Brasil, já é
muito difícil incentivar as pessoas a doarem sangue ou órgãos, e a doação de
corpos é ainda mais complicada. É importante ressaltar a importância de as
pessoas se preocuparem em doar porque reflete diretamente na formação dos
futuros profissionais", diz o presidente da Sociedade Brasileira de
Anatomia.
Quando não há
cadáveres suficientes para a dissecção, professores buscam as opções mais
próximas para oferecer uma experiência mais fiel nas aulas de anatomia.
"A prática de
dissecação, que é primordial para a anatomia topográfica, fica deficitária em
nossas aulas. Temos alguns modelos sintéticos e usamos peças cadavéricas",
afirmou Célia Regina de Godoy Gomes, professora de Anatomia Humana do
Departamento de Ciências Morfológicas da Universidade Estadual de Maringá
(UEM), em reportagem da BBC publicada no ano passado.
Quem deseja doar seu
corpo especificamente para fins de estudo pode se registrar ainda em vida em
programas do tipo mantidos por universidades ou informar parentes sobre seu
desejo de participar para que eles façam a doação.
O levantamento mais
recente feito pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
(UFCSPA) aponta que existem hoje 39 destes programas no Brasil.
"Ainda é pouco
para a quantidade de instituições com cursos da área de Saúde, mas, se
observarmos que a maioria surgiu nos últimos anos, considero que é um dado
positivo", diz Andrea Oxley, professora de Medicina da UFCSPA.
Esses programas são
considerados hoje a melhor forma de suprir a escassez de cadáveres, mas
professores de Medicina ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o número de
doações ainda é baixo. Nos primeiros cinco anos do programa de doações de
corpos da Universidade Federal do Espírito Santo, por exemplo, apenas seis
cadáveres foram doados.
Para muitas
universidades, o desafio de tornar seus programas conhecidos — e bem aceitos —
entre a população local continua.
Fonte: BBC News Brasil
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