Para entender (e superar) o neoliberalismo
Para alguns
neoliberalismo parece ser sinônimo de insulto, já para outros parece soar como
música para os ouvidos, mas o que ele realmente significa?
Inicialmente uma
escola econômica secundária, após a década de 1980, o neoliberalismo
transformou-se em um paradigma dominante nas políticas públicas e nas relações
sociais. Em meio a um cenário de inflação alta e estagnação econômica,
tornou-se um projeto político e cultural que reestruturou relações entre o
governo, a economia e a sociedade.
Com suas raízes em
teorias econômicas desenvolvidas por pensadores como Ludwig von Mises e
Friedrich Hayek, esse modelo encontrou eco em políticas implementadas por
líderes como Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
Mas como o
neoliberalismo se tornou essa força que parece hegemonizar e moldar a sociedade
contemporânea? Quais foram os fatores que permitiram que a ideologia neoliberal
se transformasse em um paradigma dominante nas políticas públicas e nas
relações sociais, impactando o cotidiano de milhões de pessoas?
Na obra História
Mínima do Neoliberalismo – Tudo o que você queria saber sobre o
neoliberalismo!, que acaba de ser lançada no Brasil pela Editora Veneta, o
sociólogo e professor mexicano Fernando Escalante Gonzalbo traça a trajetória
do neoliberalismo ao longo de 40 anos.
Neste minucioso
trabalho, o autor revela como a ideologia neoliberal se estabeleceu como um
projeto político e cultural, influenciando lideranças de potências econômicas
mundiais e redefinindo as relações entre governo, economia e sociedade.
A obra explora temas
centrais, como a subordinação do Estado ao mercado, a complexa relação entre
democracia e mercado, e a dicotomia entre o público e o privado.
A partir de uma
perspectiva crítica e interdisciplinar, Escalante Gonzalbo sintetiza as ideias
dos neoliberais, ao mesmo tempo em que apresenta suas limitações e falhas.
Embora a obra se
concentre em aspectos críticos do neoliberalismo, oferece uma reflexão
abrangente sobre suas implicações na sociedade atual, convidando os leitores a
ponderar a dinâmica de poder e outras alternativas possíveis.
História
Mínima do Neoliberalismo é uma leitura
enriquecedora para quem busca compreender as bases do pensamento econômico e
político que domina o mundo contemporâneo. Separamos com carinho um trecho da
obra.
INTRODUÇÃO
Embora possa parecer
um pouco estranho, e é, precisamos começar a história dizendo que o
neoliberalismo realmente existe e tem quase um século de existência. Claro, tem
perfis obscuros, como tantas coisas, e claro que há o uso retórico do termo,
impreciso, de intenção política, que não ajuda a explicar as coisas, mas o
neoliberalismo é um fenômeno perfeitamente identificável, cuja história pode
ser contada. É um programa intelectual, um conjunto de ideias sobre a
sociedade, a economia, o direito, e é um programa político, derivado dessas
ideias.
Para começar, não se
trata de um programa simples, monolítico, nem tem uma doutrina única, simples,
indiscutível. Mas tampouco isso é estranho, pelo contrário, é a regra na
história das ideias políticas. Seria perfeitamente possível, por exemplo,
escrever uma história do socialismo, e todos saberíamos sobre o que estamos
falando, mesmo sabendo que não existe uma única versão do socialismo, e embora
uma história assim tivesse que incluir figuras tão diferentes como Jean Jaurès,
Salvador Allende, Eugene Debs, Friedrich Ebert ou Pablo Iglesias. Da mesma
forma, seria possível escrever uma história do liberalismo que incluísse John
Stuart Mill, Camillo Cavour, Alexis de Tocqueville, Benito Juárez e José María
Blanco-White, todos liberais, com todas as suas diferenças – e estas não seriam
um obstáculo. Quer dizer, a variedade é normal, não é um problema.
A expressão
neoliberal, neoliberalismo, começou a ser usada de um modo mais ou menos
habitual na década de oitenta do século passado e se generalizou nos últimos
anos para se referir a fenômenos muito diversos. O uso é bastante amplo, às
vezes impreciso porque é usada como adjetivo, com intenção pejorativa, para
desqualificar uma iniciativa legal, uma decisão econômica ou um programa
político. O resultado é que a palavra terminou perdendo consistência,
tornando-se mais ambígua à medida que é mais usada. Nesse sentido, neoliberal
pode ser quase qualquer coisa, até vir a ser quase tudo, e quase nada. Por isso
digo que é preciso começar afirmando que o neoliberalismo existe. E por isso é
necessário, em seguida, se esforçar por restabelecer o sentido da palavra,
colocar limites nela, para que possamos saber do que estamos falando.
O neoliberalismo é, em
primeiro lugar e sobretudo, um programa intelectual, quer dizer, um conjunto de
ideias cuja trama básica é compartilhada por economistas, filósofos,
sociólogos, juristas, e não é difícil identificá-los. É possível fazer uma
lista de nomes: Friedrich Hayek, Milton Friedman, Louis Rougier, Wilhelm Röpke,
Gary Becker, Bruno Leoni, Hernando de Soto, mas não é necessário. Eles têm
algumas ideias em comum, também diferenças, às vezes importantes; no mais
fundamental, identificam-se pelo propósito de restaurar o liberalismo, ameaçado
pelas tendências coletivistas do século XX. Nenhum deles diria outra coisa.
Mas o neoliberalismo é
também um programa político: uma série de leis, arranjos institucionais,
critérios de política econômica e fiscal, derivados daquelas ideias, e que têm
o objetivo de parar e anular o coletivismo em aspectos bastante concretos. Nisso,
como programa político, foi extremamente ambicioso. Do mesmo núcleo surgiram
estratégias para quase todas as áreas: há uma ideia neoliberal da economia, que
talvez seja a mais conhecida, mas há também uma ideia neoliberal da educação,
dos cuidados médicos e da administração pública, do desenvolvimento
tecnológico, uma ideia sobre o direito e a política.
Isso quer dizer que a
história do neoliberalismo é, de um lado, história das ideias, e de ideias
muito diferentes, e de outro, história política e história institucional.
Também quer dizer, por outro lado, que o neoliberalismo é uma ideologia no
sentido mais clássico e mais exigente do termo – que não é necessariamente
pejorativo. Direi mais: é sem dúvida a ideologia mais bem-sucedida da segunda
metade do século XX e do começo do século XXI.
Nenhum sistema de
ideias pode ser traduzido diretamente em uma ordem institucional, nenhum
pensador de algum alcance reconheceria suas ideias no arranjo jurídico,
político, de um país concreto. O regime soviético não era uma materialização
das ideias de Karl Marx, embora fosse constantemente mencionado, nem o sistema
neoliberal vigente em boa parte do mundo é reflexo exato do que Friedrich Hayek
chegou a imaginar, por exemplo. Mas o primeiro era uma derivação discutível do
marxismo, assim como o segundo é uma derivação discutível do projeto neoliberal
de Hayek, Coase e Friedman. E poucas vezes, talvez nunca, uma ideologia
conseguiu se impor de forma tão completa: não apenas certas políticas
econômicas e financeiras foram adotadas no mundo todo, mas se popularizou a
ideia da Natureza Humana em que se inspiram, e com ela uma maneira de entender
a ordem social, uma moral, um leque amplíssimo de políticas públicas.
O neoliberalismo
transformou a ordem econômica do mundo, além das instituições políticas.
Transformou o horizonte cultural de nosso tempo, a discussão de quase todas as
disciplinas sociais, modificou de modo definitivo, inquestionavelmente, o
panorama intelectual, e contribuiu para a formação de um novo senso comum. Essa
é a história que quero contar nas páginas seguintes.
Não é exagerado dizer
que vivemos, globalmente, um momento neoliberal. Para ter uma imagem mais
nítida do que isso significa, podemos imaginar uma evolução histórica do mundo
ocidental, cuja estrutura nos últimos dois séculos seria mais ou menos a seguinte.
Em primeiro lugar, há um momento liberal, derivado da ilustração, que começa
nas últimas décadas do século XVIII e inclui a revolução estadunidense, a
revolução francesa, as independências americanas; é um momento que tem seu auge
em meados do século XIX, com a ampliação dos direitos civis e políticos, e que
entra em crise como consequência da pressão do movimento operário e das várias
formas de socialismo. Continua com o que se poderia chamar o momento
keynesiano, ou bem-estarista, que se desenha no final do século XIX e acaba se
impondo de maneira geral depois da Crise de 1929 e sobretudo com a Segunda
Guerra Mundial e a Guerra Fria. Previdência social, serviços públicos,
tributação progressiva. Chega até a década de 1970. E então começa o momento neoliberal,
no qual estamos, cuja origem está na discussão do keynesianismo dos anos 1940,
mas que vai se impondo de forma progressiva e massiva a partir de 1980, e cujo
predomínio em termos gerais continua até hoje.
Convém, a princípio,
propor uma ideia esquemática do neoliberalismo, para que possamos nos entender.
Apesar de todas as diferenças que existem entre seus partidários – e às vezes
são realmente importantes –, há um conjunto de ideias básicas que todos eles
compartilham e que formam, por assim dizer, a coluna vertebral do programa.
Em primeiro lugar,
caracteriza-se por ser muito diferente do liberalismo clássico, do século XIX.
Na verdade, já veremos com mais atenção, o neoliberalismo é em grande parte o
produto de uma crítica ao liberalismo clássico. Alguns propagandistas, sobretudo
mais recentemente, preferem adotar a imagem de Adam Smith como seu emblema e
reivindicam uma longa continuidade, de séculos, das ideias liberais, inclusive
das leis e das políticas liberais, como se as diferenças fossem pouco
importantes. A verdade é que a ruptura é clara, definitiva. Permanece o
prestígio de Adam Smith, a metáfora da “mão invisível”, mas pouco mais que
isso, nada substantivo.
A diferença decorre
basicamente da convicção de que o mercado não é algo natural, não surge de
maneira espontânea nem se sustenta sozinho, mas precisa ser criado, apoiado,
defendido pelo Estado. Quer dizer, a abstenção não é suficiente, não basta o
famoso laissez-faire, deixar fazer, para que ele surja e funcione.
Como consequência disso, corresponde ao Estado um papel muito mais ativo do que
imaginavam os liberais dos séculos anteriores. O programa neoliberal, contra o
que imaginam alguns críticos, e contra o que proclamam alguns propagandistas,
não pretende eliminar o Estado, nem o reduzir a sua mínima expressão, mas
transformá-lo, de modo que sirva para sustentar e expandir a lógica do mercado.
Ou seja, os neoliberais precisam de um novo Estado, às vezes um Estado mais
forte, mas com outros fins.
Um segundo ponto em
comum: a ideia de que o mercado é fundamentalmente um mecanismo para processar
informação, que mediante o sistema de preços permite saber o que os
consumidores querem, o que se pode produzir, quanto custa produzir. Na verdade,
o mercado oferece a única possibilidade real para processar toda essa
informação, e por isso oferece a única solução eficiente para os problemas
econômicos, e a melhor opção, a única realista para chegar ao bem-estar. A
concorrência é o que permite que os preços se ajustem automaticamente e, ao
mesmo tempo, garantam o melhor uso possível dos recursos. Não há melhor
alternativa.
O mercado é
insuperável em termos técnicos. Mas também em termos morais. Pois permite que
cada pessoa organize sua vida em todos os terrenos de acordo com seu próprio
juízo, seus valores, suas ideias do que é bom e desejável. O mercado é a
expressão material, concreta, da liberdade. Não há outra possível. E toda
interferência no funcionamento do mercado significa um obstáculo para a
liberdade – seja proibindo o consumo de drogas, a contratação de alguém para
trabalhar doze horas por dia ou a procura por petróleo. Os neoliberais tendem a
desconfiar da democracia, dão sempre prioridade absoluta à liberdade, quer
dizer, ao mercado, como garantia da liberdade individual.
Outra ideia acompanha
o programa neoliberal em todas suas versões: a ideia da superioridade técnica,
moral, lógica, do privado sobre o público. Há muitas fórmulas, muitos
registros, há muitas maneiras de explicá-la. No geral, assume-se que, em
comparação com o privado, o público é sempre menos eficiente, seja na produção
de energia, administração de um hospital ou construção de estradas; assume-se
que o público é quase por definição propenso à corrupção, a arranjos vantajosos
a favor de interesses particulares, algo inevitavelmente político, desonesto,
turvo. E por isso deve-se preferir, sempre que possível, uma solução privada.
Derivadas dessas três
ideias básicas, que podem ser elaboradas de várias maneiras, há outras também
compartilhadas de um modo bastante geral. Por exemplo, que a realidade última,
em qualquer assunto humano, são os indivíduos, que por natureza estão inclinados
a perseguir o interesse próprio e que sempre desejam obter o maior benefício
possível. Ou, por exemplo, a ideia de que a política funciona como o mercado e
que os políticos, assim como os funcionários e os cidadãos, são indivíduos que
procuram o máximo benefício pessoal, nada mais que isso, e que a política
precisa ser entendida nesses termos – sem o apelo desonesto do interesse
público, bem comum ou qualquer coisa parecida. Ou que os problemas que possam
ser gerados pelo funcionamento do mercado, pela contaminação ou saturação ou
desemprego serão resolvidos pelo mercado, ou que a desigualdade econômica é
necessária, benéfica na verdade, porque assegura um maior bem-estar para o
conjunto.
Não acho que são
necessários mais detalhes por enquanto. Em algumas poucas palavras, isso é o
neoliberalismo como programa intelectual. Agora, a partir dessas ideias se
desenvolveu uma prática, e foi promovido um conjunto de reformas legais e
institucionais que terminaram impondo-se praticamente no mundo todo. É fácil
reconhecer as linhas comuns. Privatização de ativos públicos: empresas, terras,
serviços; liberalização do comércio internacional; liberalização do mercado
financeiro e do movimento global de capitais; introdução de mecanismos de
mercado ou critérios empresariais para tornar mais eficientes os serviços
públicos; e um impulso sistemático para a redução de impostos e do gasto
público, do déficit, da inflação.
Nada disso, nem nas
ideias nem nas recomendações práticas, é totalmente novo. A formação do
programa neoliberal foi longa e complicada. A novidade nas décadas da virada do
século é que tudo isso se cristalizou em um movimento global, que conseguiu
transformar o horizonte cultural do mundo inteiro em pouco mais de vinte anos.
O que apresentamos a seguir é uma história mínima desse processo, uma tentativa
de explicar de onde vêm as ideias e como se traduziram em iniciativas
concretas.
Fonte: Por Raíssa
Araújo Pacheco, em Outras Palavras
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