terça-feira, 29 de outubro de 2024

A desinformação em propagandas on-line é o mais novo desafio na área da saúde

Nos últimos anos, a proliferação de desinformação na área da saúde atingiu proporções alarmantes, especialmente nas plataformas digitais. João Henrique Rafael Junior, analista de Comunicação do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP, monitora essa situação desde 2019, quando começaram os trabalhos da União Pró-Vacina (UPVacina), observando como o ecossistema digital, em particular o Facebook, se tornou um terreno fértil para propagandas de remédios milagrosos. “Houve uma transição dessas propagandas do conteúdo orgânico para um modelo patrocinado, no qual muitos lucram com anúncios que colocam em risco a vida das pessoas”, destaca Rafael Junior.

Em um trabalho conjunto entre o IEA-RP e a Rádio USP Ribeirão, utilizando ferramentas da própria plataforma Meta, como a Biblioteca de Anúncios, foram mapeadas essas campanhas em dois dias do mês de setembro (25 e 29). A estratégia foi capturar e registrar manualmente esses anúncios, uma vez que, após a veiculação, eles são removidos sem deixar rastros. Com isso, foram coletadas 513 publicidades que promoviam produtos sem mostrar comprovação científica e muitas vezes sem autorização dos órgãos reguladores.

Entre os principais tópicos dessas propagandas estão tratamentos para diabete, saúde sexual, emagrecimento e problemas de visão. “O que vemos é uma mudança de paradigma proporcionada pela inteligência artificial (IA); conteúdos que antes eram restritos, na sua maioria, a textos e imagens estáticas, foram aprimorados para vídeos elaborados que manipulam imagem e voz de personalidades e autoridades. Também pode ser observado um aumento substancial em escala, com centenas e até milhares produzidos e impulsionados diariamente”, avalia Rafael Junior.

O professor Fernando Bellissimo Rodrigues, infectologista e chefe do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, alerta sobre os perigos da desinformação na saúde, que se intensificam com o uso crescente das redes sociais. Segundo o especialista, a internet está repleta de informações, algumas confiáveis, outras não, e cabe ao público separar o joio do trigo. “Alertamos as pessoas para confiar menos em informações oriundas de perfis individuais nas plataformas digitais e procurar fontes mais confiáveis, como associações de profissionais da saúde ou entidades, como a Sociedade Brasileira de Geriatria ou a Associação Brasileira de Nutrição, que são mais confiáveis do que opiniões divulgadas por influenciadores nas redes sociais”, afirma.

Rodrigues alerta, ainda, que a desinformação afeta de maneira desproporcional as pessoas com menor nível educacional. “A população com menor escolaridade tende a ser mais vulnerável a promessas milagrosas, embora pessoas de alta escolaridade também acabem sendo enganadas.”

•        Padrão perigoso

Essas campanhas patrocinadas, além de utilizarem imagens e logos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de maneira possivelmente fraudulenta, também exploram personalidades públicas para aumentar sua credibilidade.

O levantamento revelou que 27,5% dessas propagandas utilizam a imagem do médico Drauzio Varella, uma das figuras mais respeitadas na área da saúde no Brasil. Outras personalidades, como âncoras de telejornais e artistas renomados também aparecem.

As personalidades mais utilizadas nesses anúncios são, além de Drauzio Varella, o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, a apresentadora Ana Maria Braga e âncoras de telejornais nacionais, que alcançam milhões de pessoas. Além delas, aparece o deputado Celso Russomano e figuras como Carlos Alberto de Nóbrega e Susana Vieira, também frequentemente usadas, muitas vezes em anúncios que simulam entrevistas e programas televisivos para conferir um ar de autenticidade.

Em entrevista à Rádio USP Ribeirão Preto, o médico Drauzio Varella fez duras críticas ao uso indevido de sua imagem e voz em propagandas manipuladas por inteligência artificial que circulam pela internet. Ele classificou essas práticas como um “crime contra a saúde pública”, destacando que muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, acabam acreditando que ele está de fato promovendo os produtos. “Essas propagandas de supostos medicamentos com meu nome, algumas delas até com a minha voz montada por IA, são um crime”, afirmou.

Varella também mencionou o papel das plataformas de redes sociais na disseminação dessas informações falsas. Ele destacou a Meta como uma das principais responsáveis por permitir a circulação desses conteúdos. Para o médico, essas quadrilhas atuam em conivência com as plataformas, especialmente a Meta, que distribui isso para todos os lados, acrescentando que “as plataformas não têm interesse em remover os vídeos, já que lucram com a divulgação”.

O médico também revelou que está movendo uma ação contra a Meta, em função do uso da sua imagem, mas é cético quanto ao sucesso da iniciativa. “A chance de ganhar é muito pequena, porque, claro, eles são muito poderosos”, disse Varella. Apesar disso, ele mencionou uma denúncia ao Ministério Público que, segundo ele, já conseguiu identificar duas quadrilhas envolvidas nesse esquema. Para Varella, as plataformas são “tão criminosas quanto aqueles que divulgam essas falsidades”.

Já a especialista em Vigilância Sanitária da Gerência de Fiscalização da Anvisa, Alessandra Pessoa, também em entrevista à Rádio USP Ribeirão Preto, destacou que o monitoramento do comércio eletrônico e da publicidade de produtos de saúde na internet se intensificou após a pandemia. “A Anvisa iniciou em 2021 o monitoramento ativo de propaganda na internet, utilizando inteligência artificial para rastrear produtos fiscalizados em plataformas de comércio on-line 24 horas por dia, sete dias por semana. Com essa iniciativa, chamada Epinette, já foram rastreadas mais de 100 milhões de páginas, das quais mais de 200 mil continham algum tipo de conteúdo irregular”, informa a especialista.

Entre os principais desafios enfrentados pela Anvisa, Alessandra aponta a grande quantidade de sites e perfis que fazem publicidade de produtos regulados, além da dificuldade de caracterizar como publicidade alguns conteúdos postados nas redes sociais por figuras públicas, como artistas e esportistas, ou mesmo por profissionais de saúde de destaque.

•        Saúde em risco

A análise indicou que 31,77% das publicidades eram relacionadas à saúde sexual masculina, fazendo promessas de aumento de potência e tratamentos milagrosos para disfunção erétil. Em segundo lugar, estavam os anúncios focados em diabete (12%), que incentivaram os pacientes a abandonar medicamentos tradicionais, como a insulina, em favor de soluções “naturais” sem eficácia comprovada. Em seguida, vieram os anúncios de emagrecimento (9%) e tratamentos de próstata (8%).

Essas áreas são especialmente preocupantes, pois os produtos prometem soluções rápidas e fáceis para problemas sérios de saúde, desviando as pessoas dos tratamentos médicos apropriados. Além dessas categorias, outros temas incluem tratamentos para visão (7%), que prometem curas milagrosas para catarata e glaucoma; dermatologia (6%), com produtos que alegam reverter sinais de envelhecimento e eliminar cicatrizes; e medicamentos para gordura no fígado e dores nas articulações (6%), que geralmente têm como alvo os idosos. A análise mostra que algumas dessas propagandas chegam a afirmar, inclusive, que o produto cura o câncer.

O professor Rodrigues lembra que também há um uso indiscriminado de polivitamínicos e suplementos que, segundo ele, são amplamente propagados como essenciais para a saúde geral, o que, em muitos casos, é enganoso. “Os polivitamínicos têm indicações específicas, como em casos de deficiência vitamínica ou dificuldades de absorção, mas não são indicados para uso generalizado”, critica. Ele destacou que muitos suplementos vendidos em academias não entregam o que prometem. “A proteína de um suplemento não é melhor do que a que vem do leite, do ovo ou da carne”, pontua.

O professor Rodolfo Borges dos Reis, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Urologia e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, vê com preocupação o crescente uso de suplementos alimentares divulgados na mídia. Segundo ele, esses produtos, por não se enquadrarem na categoria de medicamentos, não passam pelos rigorosos testes de eficácia ou regulamentação da Anvisa, o que resulta na ausência de estudos científicos que comprovem seus benefícios. “A população muitas vezes se deixa fascinar por remédios naturais que, além de serem ineficazes, podem causar danos, já que não foram devidamente testados”, alerta o professor.

O professor, que é especialista em Urologia Oncológica, também destaca que a comercialização desses suplementos, muitas vezes feita por meio de plataformas digitais e impulsionada por ferramentas de inteligência artificial, seleciona grupos-alvo suscetíveis a determinadas doenças. Essa prática, segundo o professor, é preocupante, especialmente no caso de produtos que afetam o eixo hormonal e são vendidos como fitoterápicos. Ele reforça a importância de consultar um médico especialista, como um urologista, para obter orientações adequadas. “Existem medicamentos eficazes para tratar e aliviar os sintomas urinários da hiperplasia prostática benigna, além da necessidade de descartar o câncer de próstata em estágios iniciais ou avançados”, explica.

•        Máquina de desinformação

O levantamento mostra que 83% dessas propagandas estão no formato de vídeos e 17% utilizam imagens estáticas tradicionais. Em relação aos vídeos, fortes evidências indicam que 62% usam manipulação por IA com informações falsas. “Esses fatores revelam uma preferência clara pela produção de vídeos, que são mais eficazes para atrair e engajar o público. É um mecanismo sofisticado que se apropria da confiança depositada nas figuras públicas e no suposto selo de aprovação da Anvisa para vender produtos duvidosos e, muitas vezes, ineficazes”, destaca Rafael Junior.

A análise também revelou que 96% dos anúncios direcionam os usuários para conversas no WhatsApp, onde o vendedor mantém contato direto com a pessoa, aumentando a vulnerabilidade e a possibilidade de golpes. “Essa tática é extremamente perigosa porque o usuário é incentivado a fornecer seus dados pessoais e, muitas vezes, efetuar compras sem qualquer garantia de segurança ou qualidade”, afirma Rafael Junior.

•        Dados preocupantes

Dos 513 anúncios coletados, 73% foram veiculados simultaneamente no Facebook e no Instagram, mostrando que a Meta está diretamente envolvida em promover esses produtos. Apenas 26% dos anúncios ficaram restritos ao Facebook e 1% dos anúncios foram exclusivos do Instagram. Essa ampla distribuição é facilitada pela própria empresa, que fornece as ferramentas para segmentar e atingir diversos públicos, gerando lucros significativos com essas campanhas. O analista também chama a atenção para o fato de o Facebook, o Instagram e o WhatsApp serem produtos da empresa Meta.

Os dados evidenciam que o Facebook e o Instagram hospedam essas propagandas e lucram com elas, devido ao uso intensivo de suas ferramentas de publicidade. Rafael Junior destaca que, apesar das limitações impostas pela plataforma, como a restrição de anúncios de medicamentos, que exigem prescrição médica, essas regras são facilmente contornadas pelos anunciantes. Alguns desses produtos, anunciados como naturais ou cosméticos, escapam das regulações permitindo a proliferação de informações duvidosas.

Além disso, os dados também revelam que quase 80% das páginas que promovem essas propagandas são novas, criadas ainda em 2024, e cerca de 90% delas possuem menos de 2.500 seguidores, evidenciando que os responsáveis operam de maneira estratégica para evitar detecção. Caso uma página seja denunciada ou bloqueada, rapidamente outra é criada, mantendo o esquema ativo. “Esse perfil, de página pequena e recém-criada, de maneira alguma seria capaz de atingir um público mais amplo se o conteúdo não fosse impulsionado”, diz Rafael Junior.

Para o analista, a prática evidencia um problema sistêmico: “O próprio Facebook se beneficia ao permitir a criação de páginas, lucrando com as propagandas enquanto alega promover segurança e regulamentação”.

Apesar dos esforços de regulamentação nas plataformas digitais para conter anúncios enganosos, o professor Rodrigues acredita que tais medidas são insuficientes. “As notícias falsas continuam circulando impunemente e há uma dificuldade tanto jurídica quanto técnica para responsabilizar os autores dessas fraudes.”

A gerente de fiscalização da Anvisa alerta para os riscos associados ao consumo de produtos de saúde sem a devida orientação. “O primeiro ponto é não usar medicamentos ou produtos de saúde sem a orientação de um profissional habilitado. Outro ponto fundamental é desconfiar de produtos que prometem resultados milagrosos, como emagrecimento rápido ou cura de doenças crônicas, porque geralmente não passaram por testes ou comprovação científica”, ressalta Alessandra, enfatizando a importância de verificar se o produto está regularizado junto aos órgãos de vigilância sanitária.

Para combater essas práticas, a Anvisa estabeleceu uma aproximação com diversas plataformas de comércio eletrônico, orientando-as sobre como verificar a regularização de produtos antes de serem expostos para venda. “Essa parceria já permitiu melhorias nos critérios de exposição desses produtos nos sites”, afirma.

•        Consequências para a saúde pública

O impacto desse tipo de propaganda é profundo nas pessoas que abandonam tratamentos convencionais para adotar as soluções milagrosas apresentadas nos anúncios. Produtos que prometem cura para diabete incentivam pacientes a suspenderem o uso de insulina, enquanto remédios que alegam tratar a próstata são vendidos como alternativas aos procedimentos médicos aprovados. Em outro exemplo alarmante, medicamentos para cura de problemas de visão incentivam a suspensão de cirurgias oftalmológicas, o que pode resultar em complicações graves para os pacientes.

Sobre os tratamentos milagrosos para catarata e glaucoma, a professora Cássia Senger, do Departamento de Oftalmologia e Anomalias Craniofaciais da Faculdade de Medicina de Bauru (FMBRU) da USP, alerta para os perigos de confiar em promessas de cura rápida e soluções não comprovadas. “É fundamental que as pessoas entendam que não há uma cura milagrosa para as doenças crônicas degenerativas”, enfatiza. Ela destaca a importância de buscar informações seguras, consultando a literatura científica e verificando se o tratamento sugerido é regulamentado pelos órgãos de saúde.

A professora também chama a atenção para os riscos do abandono de tratamentos convencionais, especialmente no caso do glaucoma, uma doença degenerativa e irreversível. “O paciente que para o tratamento indicado e adota medidas alternativas acaba perdendo o acompanhamento adequado. O glaucoma é uma doença silenciosa, sem dor ou incômodo, e quando o paciente percebe, a perda da visão já ocorreu e é irreversível.”

Além disso, ela ressalta que, no caso da catarata, a única solução viável atualmente é a cirurgia. “Não existe colírio, exercício ou medicação oral que resolva a catarata. A cirurgia é o único tratamento eficaz, e o atraso na realização desse procedimento pode aumentar os riscos.”

A oftalmologista reforça a necessidade de campanhas de conscientização. “A comunidade oftalmológica busca colaborar e combater a desinformação, promovendo acesso a informações corretas e seguras sobre as doenças oculares, especialmente através do Conselho Brasileiro de Oftalmologia.”

•        Caminhos para o combate à desinformação

Pelos riscos que oferecem, as plataformas digitais precisam ser responsabilizadas e reguladas com maior rigor para impedir que continuem lucrando com anúncios que promovem desinformação e produtos duvidosos. “Além disso, campanhas de conscientização e verificação de informações, especialmente em temas relacionados à saúde, devem ser ampliadas”, enfatizam todos os entrevistados.

Sobre a importância de uma legislação mais rigorosa para combater a desinformação na área da saúde, a professora Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP e líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial do CNPq-USP, destacou que a disseminação de informações falsas, especialmente durante crises sanitárias como a pandemia da covid-19, motivou a apresentação de projetos de lei no Brasil. “Um exemplo é o PL 693/2020, que trata da responsabilidade sanitária das autoridades públicas e tipifica o crime de divulgação de informações falsas que coloquem em risco a segurança sanitária.”

Segundo a professora, embora já existam iniciativas como o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o “PL das Fake News”, que visa à responsabilização das plataformas digitais, a eficácia dessas medidas depende da conscientização da população. “Podemos criar leis rigorosas, mas, sem educação, o combate à desinformação será limitado, especialmente na área da saúde”, alerta a professora.

Cristina Godoy também ressaltou o papel das plataformas digitais na disseminação de informações falsas e como estas devem ser responsabilizadas ao serem notificadas judicialmente sobre conteúdos nocivos à saúde. Ela explicou que, além de remover o conteúdo prejudicial, as plataformas devem estar sujeitas a uma regulamentação mais rígida. “O debate sobre o papel dessas plataformas está presente em fóruns nacionais e internacionais, como exemplificado pela União Europeia, que já adotou medidas para impor responsabilidades mais severas às empresas digitais.”

A professora Cristina, que também coordena o Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia (TechLaw) do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP, enfatizou que, além de uma legislação adequada, é essencial o desenvolvimento de estratégias educacionais para que a sociedade saiba identificar e evitar a desinformação, principalmente no campo da saúde. Ela citou, como exemplo, o guia virtual elaborado em parceria com a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, voltado para a capacitação de agentes de saúde no combate às notícias falsas.

 

Fonte: Jornal da USP

 

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