quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O centro ganhou? Especialistas discordam de principais análises sobre as eleições de 2024

Após o resultado do segundo turno, os principais portais brasileiros publicaram suas análises das eleições municipais: a maioria é unânime em declarar a vitória do centro político. Contudo, a situação política do país não é tão transparente assim.

Ao Jabuticaba Sem Caroço, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Arthur Neto e Thaiana de Oliveira, especialistas mostram suas reticências quanto a uma análise pouco aprofundada feita por grande parte dos veículos brasileiros.

Vitória do centro?

Ao todo, o Brasil possui 5.570 cidades e, de fato, partidos considerados de esquerda como PT, PV, Rede, PCdoB, PDT, PSB, PSOL e PSTU obtiveram 752 prefeituras. Já os demais 4.817 municípios restantes foram divididos entre partidos considerados de centro e de direita.

Tamanha disparidade deixa evidente a derrota eleitoral sofrida pelo chamado setor progressista, tendência iniciada em 2016, quando, em meio aos escândalos da Lava Jato, o Congresso decidiu pelou impeachment da então presidente Dilma Rousseff, acusada de editar decretos de créditos suplementares sem autorização do parlamento e de ter atrasado repasses de recursos para equilibrar as contas e bancar programas como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida.

O leitor atento, que fizer a conta, perceberá que a soma resulta em 5.569. Isso se deve ao fato de que o gestor de Brasília, DF, não é considerado um município e, portanto, não tem nem prefeito nem vereadores.

A partir disso, a análise são apenas dados. O que cada portal noticioso difere é no posicionamento dos demais partidos dentro de um espectro político. Poder 360 e UOL, por exemplo, discordam em como categorizar partidos como PP, Avante, Rede, Cidadania e outros.

Com isso, uma avaliação de vitoriosos e derrotados se torna mais difícil.

Ao programa, Rosemary Segurado, cientista política e professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a definição de centro é contenciosa.

Para ambos os portais, o Partido Social Democrático (PSD), de Gilberto Kassab, é definido como um partido ao centro. A especialista, no entanto, discorda, afirmando que esta e outras legendas são referidas assim devido às suas participações no centrão, arranjo no Congresso Nacional de partidos que negociam apoio com o Poder Executivo.

"Mas, ideologicamente, são partidos de direita […]. Não acho que dê para chamar o MDB ou o partido do Kassab de centro."

Da mesma forma, ainda que se fale em derrota da esquerda, o maior partido progressista do país viu seu número de prefeituras aumentar, ainda que de maneira "tímida". "Aquém, inclusive, do que o partido projetava nesse momento."

Em Natal, por exemplo, cidade onde o PT não colocava um candidato no segundo turno há 28 anos, a aposta, a deputada federal Natália Bonavides, quase desbancou Paulinho Freire (União) em uma disputa apertada, que terminou em 55,3% contra 44,7% da petista.

Robson Carvalho, pesquisador do Instituto de Ciência Política (Ipol) da Universidade de Brasília (UnB), destaca, por sua vez, que embora não seja possível apontar um vencedor de maneira clara, há um grande derrotado: o bolsonarismo.

Segundo o especialista, candidatos que se utilizaram de um radicalismo e um extremismo em seu discurso foram preteridos por aqueles que se mostraram mais moderados. A única exceção foi Cuiabá, onde um "bolsonarista raiz", Abilio Brunini (PL), foi eleito.

"É caso da eleição do [Eduardo] Leitão (PT) em Fortaleza. Sem dúvida, ele foi eleito na reta final pelo radicalismo muito forte e pelo comportamento de violência política muito expressivo adotado pelo outro candidato."

Da mesma forma, a vitória de Ricardo Nunes (MDB) pode ser vista sob esse ângulo. O candidato à reeleição usou Pablo Marçal (PRTB) para diminuir sua própria figura direitista e se apresentar como um moderado frente a Marçal e Guilherme Boulos (PSOL).

A disputa paulistana também demonstrou o efeito limitado dos apoios presidenciais. Por um lado, Bolsonaro mal participou da campanha de Nunes. Do outro, a votação deste ano de Boulos praticamente não se ampliou em relação a 2020. Este ano, mesmo com um leque de alianças por trás, o candidato psolista obteve 40,65% dos votos válidos, enquanto no pleito anterior foram 40,62%.

Nesse sentido, Carvalho lembra que há monitoramentos e pesquisas que indicam que há eleitores de Lula que votam em Ricardo Nunes, por exemplo. "Uma coisa é votar em Lula, outra coisa é votar em Guilherme Boulos."

Da mesma forma, o pesquisador da UnB destaca que não se pode extrapolar o resultado municipal para a corrida presidencial. "Mas, em relação ao Congresso Nacional, pode-se esperar um reflexo."

"Essas eleições municipais são base para a projeção de deputados federais, senadores e deputados estaduais."

 

•        Aprender com a derrota. Por Luis Felipe Miguel

O segundo turno das eleições não trouxe surpresas. Os principais vitoriosos foram políticos dos partidos oportunistas tradicionais, que se apresentaram com um discurso à direita. Para a esquerda, sobrou um consolo de comemorar a derrota de alguns bolsonaristas raivosos e, no mais, chorar as pitangas.

Era uma derrota anunciada, mas nem por isso foi menos sofrida. Na capital paulista, a eleição mais importante do país pelo peso que tem na política nacional, o fracasso de Boulos sintetiza o esgotamento de uma fórmula que já apresentava problemas há muito tempo. A questão é saber se há força e disposição para virar a chave.

No discurso em que admitiu a derrota diante de seus apoiadores, Guilherme Boulos disse que sua campanha recuperou “a dignidade da esquerda brasileira”. Não é possível concordar com este veredito.

Sim, a campanha foi dura. O efeito do domínio do Centrão sobre o orçamento se fez sentir no Brasil todo, inclusive em São Paulo. As máquinas da prefeitura e do governo estadual operaram sem limites – bem como a máquina de desinformação da extrema-direita. A cereja do bolo foi a mentira criminosa lançada pelo governador Tarcísio de Freitas na manhã de ontem.

Seria caso de cassação de mandato. Mas ele está tranquilo, porque sabe que não terá consequências. Afinal, em 2022, a encenação que montou em Paraisópolis teve até um morto – e todos continuam impunes. A democracia que lutamos tanto para reconstruir depois do golpe de 2016 sempre teve limites – e, sobretudo, sempre teve lado.

O problema não é a derrota nas urnas. Ela faz parte do esperado, uma vez que a esquerda disputa sempre em condições de inferioridade. O problema é que a campanha de 2024 não levou a nenhum acúmulo para o campo da esquerda. Na verdade, o saldo parece ter sido negativo.

Boulos não foi apenas derrotado nas urnas. Por conta da campanha errática e sem fibra, sofreu um desgaste importante em sua imagem como liderança política e desperdiçou uma oportunidade de ouro para tentar reapresentar um projeto de esquerda no Brasil.

O desempenho do candidato do PSOL foi praticamente igual ao de 2020: na proporção de votos válidos no segundo turno, a diferença é vista apenas na segunda casa depois da vírgula. Mas ele estava disputando com o adversário muito mais fraco, Ricardo Nunes, desprovido de qualquer charme, sem o peso político ou o sobrenome de Bruno Covas, pilotando uma administração considerada medíocre por todos e com uma coleção de telhados de vidro que iam do roubo de dinheiro de merendas à violência contra a mulher.

Talvez ainda mais importante, Boulos fez uma campanha muito rica, com orçamento superior aos 80 milhões de reais – algo que um candidato à esquerda nunca teve numa eleição municipal no Brasil. Com todo esse dinheiro, não foi capaz nem de vencer a eleição, nem de promover uma ampliação do nível do debate político que permitisse incrementar a consciência crítica do eleitorado. Seu discurso foi marcado pela capitulação permanente diante do senso comum mais rebaixado, já que nunca havia um momento de educação política.

Boulos foi derrotado, segundo as análises correntes, por sua taxa de rejeição. Há verdade nesse veredito. Por isso, sua campanha identificou como alvo principal reduzir a rejeição do candidato. O caminho escolhido foi tentar modular sua imagem, em vez de questionar as formulações ideológicas que geravam a rejeição a alguém que vinha do movimento popular e tinha um histórico de embates contra as estruturas vigentes de opressão.

Não é uma questão que se resolve no curso de uma campanha eleitoral, é claro. À medida em que se rendeu completamente à política eleitoral, tornada o alfa e o ômega de suas principais organizações, a esquerda brasileira viu diminuir a capilaridade de seus canais próprios de comunicação, vinculados ao trabalho de base, e passou a depender cada vez mais de burocracia, mídia e publicidade. Mas, sem resolver, a campanha proporciona uma importante janela de visibilidade, para disputar representações da realidade e oferecer projetos diversos para a construção de novas vontades coletivas. Essa oportunidade foi desperdiçada.

A diferença da candidatura de Boulos não era um discurso de esquerda, mas o lulismo – isto é, um programa de mudanças tímidas (mas nem por isso desimportantes), com recusa a qualquer enfrentamento, esperançoso de seduzir as classes dominantes para um projeto civilizatório. A capacidade de transferência de votos de Lula se mostrou muito menor do que o esperado, mas a campanha ficou presa à defesa incondicional do governo federal, assumindo os ônus tanto de sua rejeição visceral por parte de um eleitorado ideologizado (o “antipetismo”) quanto dos limites impostos por suas políticas de ajuste fiscal e acomodação com o privatismo.

Faz tempo, aliás, que a esquerda partidária brasileira está pronta a recuar em tudo, com medo de enfrentamento. Nada de discurso anticapitalista, mal se fala de imperialismo, luta de classes sumiu, o “empreendedorismo” e a “inovação” tomaram conta do vocabulário, direito ao aborto é tabu, assim por diante. A rendição do PSOL ao lulismo, que Boulos encarna como ninguém, retirou o último elemento significativo de tensão na adesão a essa estratégia.

A única exceção é a lacração identitária, que na campanha de Boulos surgiu no triste episódio do “hine nacionale”. Tanto esforço para evitar discussões urgentes e necessárias – para depois abraçar o desgaste de uma polêmica inútil. Lacração, convém sempre lembrar, não tem nada a ver com educação política. É uma ferramenta a serviço exclusivamente do narcisismo inconsequente de uns poucos.

Depois de um primeiro turno dominado por fofurices, em que parecia falar mais de Taylor Swift do que de especulação imobiliária e em que passou de favorito a azarão, conquistando a vaga no segundo turno no olho mecânico, Boulos teve que mudar de postura.

Ainda assim, nunca apostou na politização. Tentou se aproximar do eleitor de Marçal, mas mimetizando os acenos ao “empreendedorismo”. Quando o apagão lhe entregou de mão beijada um tema capaz de sacudir a campanha, optou por reduzi-lo à gestão da prefeitura (poda de árvores) deixando em segundo plano a questão da privatização. E assim por diante.

O desespero do final da campanha fez Boulos aceitar participar da “sabatina” de Marçal. Uma decisão – reconheço – difícil. Por um lado, seria a chance de falar a uma fatia importante do eleitorado, normalmente refratária a ele. Por outro, seria violar um necessário cordão sanitário, aceitando como interlocutor legítimo um bandido, alguém que tinha se utilizado das piores baixarias, culminando na infame falsificação de um laudo médico contra o próprio Boulos.

Ao participar da “sabatina” sem sequer confrontar Marçal, Boulos aceitou, como disse o ex-deputado federal Milton Temer, posar de “figurante em lançamento de campanha para presidente em 2026”. É difícil saber se ganhou algum voto com isso. Mas deu seu aval a mais uma volta na espiral de degradação da política brasileira.

Já faz bastante tempo que é evidente que o projeto de Boulos é repetir a trajetória de Lula: do movimento social para a política eleitoral, das margens para o mainstream, da derrota para a vitória. Tudo isso em fast track, claro, percorrendo em três ou quatro anos aquilo que, com Lula, demorou uma década e meia.

Não está dando certo. Talvez porque faltem o carisma e a autenticidade do original. Certamente porque as circunstâncias mudaram. A fórmula lulista está desgastada e precisamos não é de quem a imite, mas de quem ajude a encontrar caminhos para superá-la.

O discurso após a derrota, mostra que a ficha ainda não caiu para Boulos. Mas, se não mudar de rumo, ele não vai ser Lula – vai ser Freixo.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Blog da Boitempo

 

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